Saltar para o conteúdo

História do Brasil (Frei Vicente do Salvador)/V/XXX

Wikisource, a biblioteca livre

Melhor Páscoa cuidaram os holandeses que tivessem, quando a véspera dela pela manhã, a hora que na igreja se costuma cantar Aleluia, tiveram vista da armada imaginando ser a sua, que esperavam, porem tanto que a viram por de largo em fileira e meia-lua, que quase cercava da ponta de Santo Antônio até a de Tapuípe toda a enseada em que está a cidade, e virem-se os barcos dos portugueses do recôncavo meter entre ela, conheceram ser de Espanha, e se começaram aparelhar com muito cuidado, chegaram as suas naus à terra junto das fortalezas, e meteram três das mercantis, que tinham tomadas, no fundo diante das suas, para entupirem o passo às da nossa armada, que lhes não pudesse chegar , tiraram os marinheiros portugueses, que tinham a bordo, e os trouxeram para a cidade, notificando a eles, e aos mais, que nela estávamos que não saíssemos de casa; trouxeram algumas peças de artilharia para o colégio, e outras partes, per onde lhes pareceu que os poderiam entrar. Despejaram o forte de São Filipe, que esta uma légua da cidade, entendendo que lhes não eram 60 homens, que lá tinham, de tanto efeito coma nela.

Os da nossa armada neste tempo iam-se desembarcando junto ao forte de Santo Antônio dois mil castelhanos, 1500 portugueses, e 500 neopolitanos com seus mestres de campo, que eram dos castelhanos d. Pedro Osório, e d. João de Orelhana; dos portugueses d. Francisco de Almeida e Antônio Moniz Barreto, e dos neopolitanos o marquês de Torrecusa, dos quais deixou o general no quartel de S. Bento a d. Pedro Osório, d. Francisco de Almeida, e o marquês, cada um com o seu terço, que todos continham dois mil soldados, e ele se passou ao do Carmo com os mais, e logo se foi trazendo a artilharia para pôr em ambos, porque ambos estão em montes, e são quase os últimos de outros, que tem a cidade da banda da terra por padrastos. O que pressentindo os holandeses, e receando o dano, que dali lhes podiam fazer, saíram aos que estavam alojados em São Bento trezentos mosqueteiros à terceira oitava da Páscoa às 10 horas do dia, donde se começou uma batalha, que durou duas horas, na qual foram mortas dos nossos 80, porque como os vieram retirando até os fazerem recolher à cidade, da porta dela, e de outras fortalezas lhes tiraram tantas bombardadas com cargas de munição miúda, e de pregos, que puderam fazer toda esta matança, e ferir a muitos, do que os holandeses vieram mui contentes, e trouxeram por troféu uma coura de um capitão castelhano, cujo corpo, com cobiça dela, que era toda apassamanada de ouro, trouxeram arrastando até ao pé da ladeira onde do muro podiam chegar com qualquer arcabuz, e muito melhor com os mosquetes, de que eles usam, e assim vindo os nossos a buscá-lo de noite para lhe darem sepultura, lhes tiraram algumas mosquetadas, mas contudo o levaram, e o enterraram em sagrado com os mais, que neste assalto morreram pelejando animosamente que foram os de mais conta d. Pedro Osório, mestre de campo do Terço do Estreito, o capitão d. Diogo de Espinosa, o capitão d. Pedro de Santo Estevão, sobrinho do marquês de Cropani, João de Orejo, secretário do mestre de campo, d. Fernando Gracian, d. João de Torreblanca Francisco Manuel de Aguilar, d. Lucas de Segura, e d. Alonso de Agana, junta ao qual se achou na batalha d. Francisco de Faro, filho do conde de Faro, com um holandês a braços, e o matou, como também foram outros mortos e feridos, posto que poucos em comparação aos nossos, os quais com esta cólera sem mais aguardar assentaram logo a artilharia, e no dia seguinte, que foi quinta-feira 3 de abril, começaram com ela a bater a cidade, porque (sic) aquela parte fronteira a São Bento, abrindo-lhe grandes buracos no muro, que os holandeses tornavam a tapar de noite com sacos de terra, que para isto fizeram, mas não tanta a seu salvo, que cada noite lhes não matassem e ferissem alguns, com o que eles não desmaiavam, tendo esperança que viria cedo a sua armada, como um inglês feiticeiro lhes havia certificado, e por esta causa puseram uma grande bandeira com as suas armas no pináculo da torre da Sé, que está no mais alto lugar da cidade, para que vindo os seus a vissem, e pudessem entrar confiadamente conhecendo que estava a terra por sua. E a esta conta se defendiam, e nos ofendiam por todas os modos, que podiam, entre os quais foi um, que largaram duas naus de fogo uma noite com vento em popa, e maré para que fossem abalroar às nossas, e queimá-las, uma das quais pôs em risco a nossa almeiranta de Portugal, e sem falta se queimara se não ficara amarra, e largara o traquete, com que quis nosso Senhor que se livrasse do perigo.

A outra investiu com a almeiranta do estreito com tanto ímpeto, que se começava a derreter o breu, e chamuscar alguns soldados, mas também foi livre pela diligência e indústria de d. João Fajardo, a cujo cargo estava a armada, e a canoa em que cuidaram escapar três holandeses, que governavam o fogo, foi tomada com um deles por uma chalupa de Roque Centena.

Nem deixavam com toda esta ocupação os holandeses todos os dias, manhã e tarde, de se ajuntarem à Sé a cantar salmos, e fazer deprecações a Deus que os ajudassem: donde um domingo pela manhã deu um pelouro, que vinha da nossa bateria de S. Bento, e passando a parede da capela de S. José levou as pernas a quatro, que estavam assentados em um banco, ouvindo a sua pregação, de que morreram dois.

Assistiam neste quartel de S. Bento, donde esta boiada se fez, e outras muitas, d. Francisco de Almeida, mestre de campo de um terço português e almirante da Armada Real da Coroa de Portugal, e com ele militaram d. João de Souza, alcaide-mor de Thomar, Antônio Correa, senhor da Casa de Belas, d. Antônio de Castelo Branco, senhor de Pombeiro, Rui de Moura Teles, senhor da Póvoa, d. Francisco Portugal, comendador da fronteira, d. Álvaro Coutinho, senhor de Almourol, Pedro Correa Gama, sargento-mor deste terço. O capitão Gonçalo de Souza, o capitão Manuel Dias de Andrade, o capitão Salvador Correa de Sá e Benevides, o capitão Jerônimo Cavalcanti de Albuquerque, seus irmãos, e outros nobres portugueses.

Assistia também com o seu terço de neopolitanos Carlos Caraciolos, marquês de Torrecusa, enquanto se não mudou a outro sítio. E do terço do estreito muitos fidalgos e capitães, que todos uns, e outros a inveja no cavar da terra para os valos pareciam cavadores de ofício, no carregar da faxina para as trincheiras mariolas, mas no disparar dos mosquetes, e muito mais em esperar os dos inimigos, valorosos soldados.

N. B. — Este capítulo trigésimo oitavo foi copiado das adições e emendas a esta História do Brasil, que existem no Real Arquivo da Torre do Tombo.