História do Brasil (Frei Vicente do Salvador)/V/XXXIII
Aos 26 dias do mês de abril, que era um sábado, dia dedicado à Virgem Sacratíssima Senhora Nossa, em que costuma fazer particulares mercês a seus devotos, favoreceu sinaladamente aos que estavam na sua bateria, e trincheira do Carmo, dando-lhes este dia tanto ânimo e coragem, que alguns sem temor da artilharia e mosquetes, que disparavam os inimigos, chegaram até à porta da cidade, e um soldado aragonês chamado João Vidal, da companhia de d. Afonso de Alencastre, chegou a tomar a bandeira, que estava sobre a porta, e por entre as balas, que os inimigos lhe tiravam a levou ao seu capitão, e dele ao general, que inda que repreendeu a sorte, por se fazer sem ordem sua, recebeu o caso como o merecia o valor dele, e fez acrescentar ao soldado oito escudos de vantagem.
Sucedeu também que sacudindo, no mesmo tempo, o morrão um holandês, que estava de guarda naquela parte, deram as faíscas em um barril de pólvora, com que se chamuscaram 25 de tal maneira, que não puderam mais manear as armas, coisa que eles diziam naquela ocasião sentir mais que a própria morte, porque morrendo, só os mortos faltavam na peleja, mas sendo lesos e feridos, faltavam também os cirurgiões, e enfermeiros, que com sua cura se ocupavam, tão desejosos andavam da vitória, que a antepunham às suas próprias vidas; e porque a seu coronel acudiu tarde a este rebate, e já em outras ocasiões o haviam notado de descuidado, e tratava de cometer concerto, segundo o descobriu a uma sua amiga portuguesa, se conjuraram trinta soldados, e foram para o matar dentro em sua casa, e a Estevão Raquete, capitão da Companhia de Mercadores, que com ele estava, mas este fugiu, e feriram o coronel com uma alabarda na cabeça e nas mãos, o que dizem se fez com consentimento dos capitães, cuja prova é não se prender alguns dos ditos soldados, e logo as do Conselho privarem o ferido do cargo, e elegerem por coronel o capitão-mor chamado Quife, e em seu lugar por capitão-mor, ou mestre de campo o capitão Buste.
Incrível é a insolência com que nisto se houveram estes soldados, pois não bastou o novo coronel mandar prender a Estevão Raquete na cadeia pública para se quietarem, senão que ainda lá foram dois para o matarem, e o houveram de fazer se lhe não acudiram outros presas, e o próprio coronel, o qual os mandou prender; os outros se foram à casa da portuguesa também para a matar se lhes não fugira para casa de um português casado, que a escondeu e vingaram-se em lhe roubarem quanta lhe acharam, que não era pouco o que o coronel lhe havia dado.
Não é menos incrível a vigilância e cuidado, com que a novo coronel de dia e de noite trabalhava recolhendo-se com as trincheiras para dentro, para assestar nela a artilharia, quando as de fora fossem de todo rotas, e traçando outros ardis, e invenções de guerra, com que se pudessem entreter até lhes vir o socorro da sua armada, que esperavam, e em que tinham toda a sua confiança.