Meu Captiveiro entre os Selvagens do Brasil (2ª edição)/Capítulo 18

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CAPITULO XVIII
De como fui apresionado pelos
selvagens

Eu tinha commigo um selvagem carijó, que era meu escravo; caçava para mim e acompanhava-me ao matto. Aconteceu, porém, que um hespanhol de S. Vicente veio visitar-me em Santo Amaro; em companhia de um allemão, Heliodoro Hesse, gerente do engenho de assucar do genovez José Adorno. Já me conheciam de S. Vicente e a razão de virem ver-me foi constar-lhes que es estava enfermo.

No dia anterior tinha eu mandado o carijó á caça, e como o escravo se demorasse fui-lhe ao encalço, porque naquella terra pouco mais havia além do que o matto fornece.

Internei-me na floresta; de repente, dos dois lados do caminho ouvi uma grita e me achei cercado de selvagens com as flechas apontadas. Gritei: Valha-me Deus! e fui logo derribado e ferido numa perna.

Agarraram-me e despiram-me. Um tirou-me a gravata, outro o chapéu, outro a camisa, emquanto dois delles disputavam a minha posse: o que me agarrara primeiro e o que me derrubara. Bateram-se lá entre si a pauladas de arco e emquanto isso os outros me agarraram pelos braços e levaram-me a cor- rer, nú como estava, para o sitio onde tinham suas canôas.

Chegando ao mar vi, á distancia de uma pedrada, duas canôas que os indios tinham varado em terra para debaixo de uma moita. Rodeavam-nas muitos selvagens, que, quando me avistaram daquelle modo conduzido, correram ao meu encontro, mordendo os braços como a indicar que iam devorar-me.

Deante de mim postou-se o morubichaba,[1] armado da clava com que matam os prisioneiros. Fez um discurso e contou aos outros como re haviam apanhado, e assim escravisado um pero[2] para se vingarem da morte dos seus.

Levaram-me depois para as canôas, com algumas bofetadas pelo caminho, e apressaram-se em pol-as a nado, receiosos de que na Bertioga já estivessem alarmados com a minha ausencia. Antes, porém, de arrastarem as canôas amarram-me as mãos.

Como não fossem todos esses indios da mesma taba puzeram-se a disputar sobre a minha posse; por fim foi proposto que eu fosse trucidado e cada qual levasse um quinhão da minha carne. Eu orava, esperando o golpe fatal, mas o cacique declarou por fim que me levaria vivo á sua taba para que as mulheres me vissem e se divertissem commigo; depois matar-me-ia e:

Kauiuim pipeg! isto é, muito cauim haveria de correr! Significava com isto que ia elle preparar o cauim, devendo reunirem-se todos para me devorarem conjunctamente.

Assim combinados, amarram-me ao pescoço quatro cordas e metteram-me na canôa, emquanto permaneciam ainda em terra. Depois ataram as pontas da corda á canôa e cuidaram de partir.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.
  1. Chefe indigena, cacique.
  2. Os indigenas chamavam os portuguezes peros, e aos fracezes mair.