Mistério do Natal/X
O velho era Jericó.
Esperava naquele retiro a passagem das caravanas que se encaminhavam a Jerusalém e sempre recolhia uma azinhavrada moeda, um punhado de tâmaras ou um esgarçado albornoz em que se enrolava, bendizendo com palavras humildes e agradecidas, a generosidade dos homens, recomendando-os ao deus de Abraão, de Isaac e de Jacó e indicando-lhes os melhores e mais seguros caminhos pelos montes.
José ajuntou as folhas espalhadas e fez uma alfombra onde Maria adormeceu revendo, em sonha, a sua alegre Nazaré, as moças à beira da fonte, os pastores nos cerros, à hora macia da tarde, quando as cotovias baixam e desaparecem nas searas e as águas das levadas cantam.
Conversaram os dois velhos – José falou da sua viagem, o cego falou da sua cegueira.
- Estava assim desde moço, um raio cegara-o no campo, sob um sicômoro. Já se habituara à treva como um prisioneiro que se houvesse acostumado ao cárcere.
Um mágico de Suza oferecera-se para curá-lo. Pedira cem dracmas, baixara a cinqüenta; faria por vinte se ele lhas oferecesse.
Tinha ainda a sua cabana e ovelhas, vendendo-as reuniria uma soma, mas, pensando, resolvera deixar-se ficar na cegueira. E suspirou:
- Ilude-se que julga que, ao voltar aos antigos lugares, encontrará as coisas como deixou: as próprias pedras modificam-se e não são várias como as almas.
Quando me anunciaram a morte de meu filho, pedi que me pusessem junto do cadáver, apalpei-o, beijei-o; ouvi os passos dos que o levavam a enterrar, mas não vi o enterro.
Ouvi o estrondo da queda do cedro que cobria de sombra a minha eira e, ainda hoje, vou sentar-me no sítio em que ele avultava e sinto-me agasalhado pela ramagem que não existe e ouço a alegre voz dos passarinhos de outrora.
As coisas foram desaparecendo uma a uma; eu mesmo envelhecia, mas a cegueira conserva a visão do passado.
O sol parou para mim na mocidade como parou sobre os muros de Jericó à voz do batalhador.
Vejo dentro de mim tudo quanto deixei: as gentes, os animais, as árvores, os lugares com suas cabanas e os seus campos floridos.
Sou como a ave aprisionada, de pequenina, em uma gaiola, que não olha senão a limitada paisagem que fica em torno da sua vivenda triste. Soltai-a, esvoaçará atordoada e, se não regressar à prisão, morrerá de fome perdida nas florestas frondosas, se não cair nas garras dos abutres.
O homem de Suza queria dar-me a liberdade. Para que? Para eu morrer de saudosa tristeza sentindo o deserto em volta de mim? Não!
Vivo no passado, o meu tempo já foi.
Não caminho para a morte. Espero-a, sentado no limiar da mocidade, ouvindo o rumor do tempo devastador, sem ver os desastres, sem ver as lágrimas, sem ver os enterros.
Perdi-me dos meus, dei em uma furna e nela vivo. Já agora estou habituado à sombra. Para que hei de sair se, lá fora, me esperam ossadas? Se o próprio Deus me oferecesse a luz eu lhe pediria a morte.
Voltar atrás...! A erva cresce, o vento revolve a areia desmanchando as nossas pegadas.
O campo, que conhecemos florido, mudou-se em carrascal; a gente envelheceu ou morreu. Só há um meio de não caminhar chorando – é seguir sempre em frente e se eu recobrasse a vista teria de retroceder e cegaria de novo com os olhos afogados em lágrimas. Aonde vos dirigis?
- A Belém.
- Casa do pão. É ali que deve nascer o Anunciado. Casa da abundância, celeiro do Senhor, Belém da fertilidade! De lá é que nos há de vir o Messias. O campo de Booz dará o trigo que há de fartar as almas.
- É para lá que vamos.
- Que as estrelas vos sejam propícias, como foram a Ruth, a moça de Moab.