O Gaúcho/IV/I

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Que bela noite de luar jaspeia os cerros de Piratinim!

Há uma festa na vila. O regozijo das primeiras vitórias da revolução associa-se ao prazer da novena. Lá no adro da matriz passeiam os bandos de moças e rapazes por baixo das arcadas e palmeiras iluminadas com lanternas de papel de várias cores.

Próximo ao coreto, no terreiro cingido por festões e colunas enramadas com folhas de canela, dançavam a tirana que é o lundu gaúcho. As violas trinavam no meio do coro formado pelas risadas, pelos ditos joviais, e pelo rosetear das chilenas.

Catita, de pouco chegada, acompanhava com vivo interesse as evoluções graciosas do par, que sapateava no meio do terreiro. Amiúde seu corpinho gentil arfava com a súbita expansão do passarinho que abre as asas para voar; o pezinho buliçoso e sôfrego calcava o chão com ímpeto, como se o quisesse repelir.

Ao lado da moça estava um mancebo elegante vestido a primor: tinha jaqueta curta de veludo azul com botões de prata; a calça larga da mesma fazenda rematava em franja de renda branca, pouco abaixo do joelho; o xale de touquim amarelo que servia de faixa, apertava à cintura um punhal com cabo de nácar e uma pistola de coronha tauxiada a ouro. Sobre as preguilhas de cambraia do peito da camisa, caíam as pontas do lenço de garça escarlate, que ele trazia como gravata. As botas acamurçadas de couro de terneiro, copavam-se de modo a mostrar a perna bem torneada que debuxava a meia de seda cor de castanha.

Esse casquilho era o nosso conhecido D. Romero, cujo semblante gentil e talhe garboso davam mais realce ao lindo traje. Atirando o pala e o bolívar em cima de um banco, o mancebo dirigiu galanteios à Catita, convidando-a à dança.

Enlevada com os elogios que fazia o mancebo à sua beleza, a moça pagava-lhe em ternos sorrisos; mas recusava o convite, apesar da tentação da viola. Afinal tanto insistiu o chileno que ela rendeu-se.

— Pois sim! murmurou a medo.

Catita não queria tomar parte da função por causa da ausência de Manuel; porém não pôde mais resistir. Há na natureza humana dessas excentricidades; o coração que nas grandes lutas atinge ao heroísmo, é de uma tibieza incrível nas pequenas contrariedades.

Essa moça, que já uma vez arrostara a morte por causa de Manuel; que em um acesso de ciúme não recuara ante o maior sacrifício; que, para receber o primeiro beijo de seu amado, atravessara sorrindo por entre uma chuva de balas, seria capaz ainda em um assomo da paixão de repetir qualquer daqueles atos de intrepidez e abnegação, porém não tinha forças para cerrar os ouvidos aos dengues de um casquilho, nem para esquivar-se ao delírio do bailado voluptuoso.

O que é a vaidade na mulher, senão essa mesma vertigem que alucina o homem sob o nome de glória? Sede insaciável de luz, embriaguez de admiração, na qual muitas vezes afogam-se a honra e a virtude.

D. Romero saltara no terreiro, e bailava com a graça e a bizarria andaluza. Ninguém sapateava com mais garridice, fazendo retinir as rosetas das chilenas ao ritornelo cadente do fandango.

— Assim, roseteiro! diziam os rapazes com entusiasmo.

— Por vida que a Catita fica pelo beiço.

— Que esperança! E Canho?

— Leva carona!

O chileno tinha chegado a Piratinim quinze dias antes, e era novidade da terra. À tarde, quando ele saía a gauchar no seu lindo cavalo castanho não havia moça que não entreabrisse a rótula para deitar-lhe olhadelas matadoras. D. Romero, embora apreciasse e retribuísse essas demonstrações, assestara seus fogos sobre a filha do Lucas.

Depois de algumas voltas, o chileno atirou o desafio a Catita em um passo novo e floreado que todos lhe invejaram.

— Como arrasta a asa o peralta!

— Mas não pilha!

— Pois eu aposto.

Catita havia recusado o desafio de todos os rapazes da roda; e sabia-se o motivo, que era a ausência de Manuel. Agora estavam ansiosos por ver o que ela fazia. Uns apostavam pelo Canho, outro por D. Romero.

— Então!

Essa exclamação partiu dos últimos, vendo o talhe feiticeiro da menina colear-se, como o pescoço de um cisne.

Mas o frêmito de um corcel fendera os ares, atravessando por esse rumor festivo como lâmina buída que traspassasse um coração em júbilo. Um raio de lividez perpassou no semblante da moça, que retraiu-se por um supremo esforço. Para disfarçar o movimento e responder à atenção geral, travou da guitarra, que a seu lado acabava de afinar um cantor de modinhas.

Depois de alguns prelúdios, soltou Catita esse descante:

Entre tantos que me querem
A nenhum posso querer:

Sorte que todos preferem
Só um soube merecer.
 Ai! ai! não vejo meu bem.
 Já tarda, por que não vem?:

Repetia ela segunda vez o estribilho, quando abriu-se a roda, e um vulto, arrebatando a viola das mãos do tocador, saltou da sela no terreiro. Era Canho.

Não tarda, faceira, não
Tu chamaste; ele chegou;
Arreava o alazão
Quando a viola chiou.
 Ta-ri, ta-la-ri, tá-tá.
 Teu bem, caramba, aqui está.

Manuel já não era o mesmo homem. O amor tinha domado o rei do deserto, o centauro dos pampas: e o atirava de rojo aos pés de uma mulher. Ele dançava com bastante graça, fazendo ruflar as chilenas; e ninguém improvisava melhor no desafio. Entretanto quem o conhecesse passava por uma estranha surpresa, vendo aquele caráter indômito e rígido tão fora de sua natureza. O gavião real, arrulhando como a juriti, não produziria igual impressão.

Por sua vez Catita lançou-se de uma pirueta no torvelinho, com a veemência de um desejo por muito tempo sofreado. Não se imagina a rapidez das evoluções, a flexibilidade dos requebros, e a sutileza do passo, que meneavam esse corpinho gentil nas ondulações voluptuosas da dança gaúcha.

Quem disse, que eu lhe chamei,
Enganou-o, meu senhor;
Se meu coração já dei,
Não sou cigana de amor.
 Ai! ai! não vejo meu bem;
 Já tarda, por que não vem?

O desafio continuou por algum tempo entre Manuel e Catita:

Ai, vida que me maltratas
Com este fino bailar;
Por que logo não me matas
Se tu me queres matar.
 Ta-ri, ta-la-ri, tá-tá.
 Teu bem, menina, aqui está.

Já se queixa que o maltrato;
Quem foi que me fez assim?
Todo o homem que é ingrato
Não se chegue para mim.

Ai! ai! não vejo meu bem.
 Se ele tarda, é que não vem!

Machuca este coração,
Machuca, bem machucado,
Que tu não bailas no chão,
Mas neste peito chorado.
 Ta-ri, ta-la-ri, tá-tá.
 Teu bem, menina, aqui está.

Coração de meu benzinho,
Não havia machucá-lo;
Que lhe fiz aqui seu ninho
No meu peito pra guardá-lo.
 Ai! ai! não vejo meu bem
 Tarda tanto; é que não vem.

Requebra, vidinha, assim,
Requebra-me esse corpinho,
Não tenhas pena de mim,
Que estou feito um cavaquinho.
 Ta-ri, ta-la-ri, tá-tá.
 Teu bem, menina, aqui está.


O cavaco é boa isca,
Chegando ao fogo se inflama;
Mas se meu peito faísca,
Não há quem lhe sopre a chama.

Ai! ai!, que perdi meu bem;

 Não espero mais ninguém.

Tirana, meu bem, tirana,
Tirana de meu amor;
Por que assim você me engana
A fingir este rigor.

Ta-ri, ta-la-ri, tá-tá.

 Já me vou, não torno cá.

Quem me dera, ser tirana,
Pois havia ser querida;
Nem daria a quem me engana,
Tanto amor e minha vida!
 Ai, não fuja, não, meu bem,
 Que me mata esse desdém!

O último verso de Catita foi um rasgo admirável da tática feminina.

Reparando que D. Romero de arrufado se afastava, a faceira improvisou aquele estribilho, que respondia a Manuel, e ao mesmo tempo consolava o chileno, a quem ela o enviou em um olhar provocador.

Quando Manuel cheio de prazer voltava à roda, depois da dança, avistou pela primeira vez o chileno, que nesse momento falava a Catita.

O coração do gaúcho confrangeu-se. A vista de uma serpente, elando-se ao corpo de sua amada e cingindo-lhe o colo, não produziria nele a angústia que sentiu.

Alguém, batendo-lhe no ombro, suspendeu talvez seu primeiro ímpeto.

Deste pancas na tirana. Gostei!

Era o Chico Baeta que trazia de braço a Missé. A rapariga saudou o gaúcho com um sorriso malicioso, lançando um olhar para o lado de Catita.

Então? Vens tomar uma guampa?

— Obrigado, respondeu Canho afastando-se.