O Gaúcho/IV/II

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Terminara a festa.

Manuel, encostado à ombreira da porta de Fortunata, estava olhando o azul do céu aljofrado pelo esplêndido luar.

A rótula abriu-se.

— Que me quer você, Manuel? disse uma voz suave.

— Dizer-lhe adeus, Catita. Vou a Buenos Aires! Já estou de partida.

— Que viagem é essa agora? exclamou a moça com voz trêmula. E para tão longe?

— O coronel mandou.

Catita sabia o poder que Bento Gonçalves exercia sobre o gaúcho.

— Quando se quer bem...

— Acabe, Catita.

— Não; para quê?

Manuel travou da mão da moça e falou-lhe com um tom rápido, apontando para o canto da rua onde se percebiam vultos de animais.

Ali está Juca e Morena. Vem, deixemos o mundo; o pampa será nossa pátria; ele é imenso; nós o encheremos com o nosso amor. Lá seremos nós dois unicamente; ninguém poderá separar-nos. Vem!

— Não, murmurou a menina assustada daquelas palavras e do tom em que eram proferidas. Tenho minha mãe.

— Ah! Então bem vê que devo partir. O coronel conta comigo.

— Mas volte depressa, eu lhe peço!

— E é preciso pedir-me, Catita?

A conversa prolongou-se; os dois amantes retardavam a hora da partida repetindo os protestos e as juras de seu afeto. Afinal chegou o instante da separação.

Adeus, Catita. Lembra-te que hoje só tenho a ti no mundo. Minha vida é teu amor; tu podes matar-me com uma palavra, com um olhar, como aquele que esta noite vi em teus olhos...

— Manuel!

— Aquele homem... disse Canho com a voz surda. Desde o primeiro instante em que o avistei, tive um pressentimento de que hei de matá-lo; e nunca ofendeu-me.

— Que me importa ele? Vai descansado, Manuel; tu levas minha alma, porque eu só vivo para ti. Lembra-te que eu já te amava com paixão, quando tu nem sequer me olhavas!

Um beijo selou estas últimas palavras; e Manuel arrancou-se dos lindos braços que lhe cingiam ternamente as espáduas.

Quando ele afastava-se, viu à claridade da lua um vulto que o fitava com um só olho, pois o outro, bem como grande parte do rosto, estava coberto de parches. Essa pupila única chamejando no meio daquela máscara tinha um aspecto sinistro.

Canho reconheceu Félix; e apoderou-se dele um sentimento de compaixão por aquele infeliz. Podia ser morto o inimigo, depois que o vencera em combate; mas desonrá-lo marcandolhe a fronte com o estigma de seu ódio, não devia.

Foi com um aperto de coração que Manuel deixou Piratinim. Ainda o galope de seu cavalo reboava ao longe; Félix que o vira partir apalpou na cinta o cabo de uma navalha que trazia, e sorrateiramente foi se aproximando da rótula onde Catita se conservava absorta na saudade de tão repentina separação.

Como voltara Félix a Piratinim, depois do que era passado?

O mesmo ódio que o levara ao campo dos legalistas, o trazia de novo para os rebeldes. Desde que não se tratava de ensinar os castelhanos, pouco se importava que vencessem os caramurus ou os farroupilhas; contanto que ele se vingasse do homem a quem detestava.

Deixado por Canho no meio do campo, com um golpe que lhe fendera o rosto transversalmente, vazando o olho esquerdo e rasgando os lábios, o rapaz conseguira transportar-se a um rancho próximo, habitado por um peão com a mulher e os filhos. Aí ficou alguns dias curando-se.

Félix sabia que tinha de ficar horrivelmente desfigurado com o gilvaz. Nunca mais Catita o poderia amar, nem mesmo vê-lo sem repugnância. Que valia a vida para ele? Estava pronto a dá-la toda pela vingança: já não tinha neste mundo outra esperança, outro fim, outro destino.

Qual seria porém essa vingança? Queria uma, estupenda, medonha, feroz como nunca houvesse antes dele. Foi no delírio da febre de sangue, quando o cérebro fervia-lhe como o chumbo na retorta, que se gerou o horrendo aborto, jamais concebido pelo rancor, em uma imaginação alucinada.

Manuel amava Catita, embora negasse. Não tinha ele, Félix, em seu rosto a marca indelével desse amor cruel? Pois bem; quando o namorado estivesse de todo rendido pela moça; quando pusesse sua ventura em olhar para aquele rosto feiticeiro, então se levantaria a mão implacável da vingança, e...

— Eu farei dela, o que ele fez de mim; uma caveira viva! murmurou o enfermo estorcendo-se no delírio da febre. Catita ficará horrível. E eu matarei assim de fome a alma do cão, como ele matou-me a esperança de minha vida! Quem poderá amar a fúria? Só eu; como só ela me poderá amar!

O sonho dessa monstruosa paixão entre dois monstros brilhou nas alucinações do enfermo como o laivo sinistro de um relâmpago no meio do vermelho clarão de um incêndio.

O sobrinho de Lucas tendo chegado à vila na véspera, inventou facilmente um motivo para explicar sua presença no acampamento de Silva Tavares. Encontrando-se com alguns bombeiros inimigos, os acompanhara para obter esclarecimentos, que deviam servir de muito a Bento Gonçalves e Neto. Depois de alguns dias, desconfiados, os companheiros quiseram matá-lo, e ele batendo-se com valentia conseguira escapar-se.

— Mas ficaste ferido? perguntou o furriel.

— E logo no rosto! disse Catita com sincera compaixão.

— Isto foi depois! respondeu o rapaz secamente.

— Conte! insistiu a moça.

Félix cravou nela a solitária pupila, com uma expressão cruel.

— Eu lhe contarei um dia!

Missé que estava presente surpreendeu esse olhar torvo, e sentiu a repercussão do que passava na alma do peão.

Desde a noite do pacau, a existência livre e descuidada da rapariga sofrera uma alteração profunda. Não fora porém o fato de ter o Chico feito dela uma parada de jogo, que produzira o abalo; longe de a ofender, aquela ação a enobrecera; sentia orgulho em sacrificar-se por seu amante, e prazer vendo a confiança absoluta com que seu homem dispunha dela, como de uma coisa inteiramente sua.

O que a humilhou cruelmente foi o desdém de Canho; depois de a ter ganho em uma partida tão disputada, deixou-a como uma coisa à-toa, que não valesse a pena abaixar-se para apanhar do chão. De que lhe servia ser bonita e sedutora, se um homem se julgava com o direito de escarnecê-la?

Este despeito seria passageiro talvez se não sobreviesse uma circunstância para avivá-lo a cada hora. Missé observou nas maneiras do Chico sensível mudança; as ardentes efusões e as repetidas carícias de outrora iam amortecendo. A causa desse resfriamento, a rapariga o pressentira logo: era o desdém de Canho, que influía indiretamente sobre o peão.

Quem não conhece os efeitos desse contágio moral, sobretudo quando uma organização elevada domina as individualidades inferiores? Chico, depois da indiferença do gaúcho, começou a achar sua amantes menos formosa, e a subtrair-se à fascinação que a rapariga tinha exercido sobre ele. Cada manifestação desse arrefecimento era um espinho que traspassava o coração de Missé.

Desde então gerou-se na alma da rapariga um desejo veemente e irresistível de ser querida pelo Canho, ao menos um dia, uma hora, quanto bastasse para aplacar sua vaidade ofendida. O amor de Manuel por Catita causava-lhe ciúme implacável.

Nestas condições a Missé devia compreender o olhar de Félix; havia uma afinidade entre as paixões que tumultuavam no seio de ambos.

Tal era a disposição de ânimo em que Félix espreitava da rua deserta o vulto da filha do Lucas, reclinada na janela, com a fronte pensativa apoiada na rótula. Um raio da lua, passando pela aberta do telhado fronteiro, esbateu contra a parede; e o lindo semblante da menina desenhou-se naquele limbo de luz com enlevadora suavidade.

O peão que cerrava com a mão convulsa o cabo da navalha, preparando o salto, ficou imóvel e extático ante aquela doce aparição que emergira da sombra. A beleza da menina ainda exercia sobre ele uma poderosa fascinação: sua coragem vacilou; a mão tremeu horrorizada. Então apagando-se a lembrança do que o trouxera ali, o rapaz embebeu-se na contemplação daquela imagem querida.

Quanto tempo esteve assim não o soube. De repente foi arrebatado àquele sonho inefável por uma dor cruciante. Catita gazeou na ponta dos lábios o estribilho da cantiga do gaúcho, que Manuel costumava repetir ao som da viola.

Toda aquela admiração, que sentia Félix um momento antes, se transformou em raiva. Cerrando outra vez o cabo da navalha com terrível frenesi, arrojou-se ébrio de cólera e cego de furor.

Mas a imagem de Catita desaparecera. Tão fora de si estava o rapaz que não percebeu a causa. Um vulto se aproximara da rótula interceptandolhe a vista, e proferira em voz baixa uma palavra castelhana:

— Señorita!

A moça assustada bateu precipitadamente a rótula: e D. Romero atordoado achou-se em frente de Félix que brandia a navalha. Quando o chileno sacava rapidamente da cintura o cuchillo para defender-se, o peão que tivera tempo de compreender a situação, recuou:

— Desculpe; não era o senhor que eu procurava.

E sumiu-se.