O Gaúcho/IV/III
Um mês já tinha decorrido depois que Manuel partira de Piratinim para cumprir a missão que lhe dera Bento Gonçalves.
Era meio-dia. Francisca e a filha jantavam, quando ouviram o tinir de chilenas; o gaúcho entrava. Jacintinha saltou-lhe ao pescoço dando gritos de prazer; a mãe ergueu-se, mas não podendo correr por causa da emoção, de longe mesmo abençoava o filho enquanto não o podia abraçar.
— Por cá não houve novidade? perguntou Manuel sentando-se.
— Só muitas saudades suas, respondeu Jacintinha.
— E cuidados, acrescentou a velha.
— Então lembraram-se de mim?
— Pois isso se pergunta Manuel? disse a moça com doce exprobração. Está vendo que ingrato mãezinha?
— O compadre já venceu?
— Ainda não, mas não tarda.
— Então ainda voltas?
— Parto esta noite. Venho de Buenos Aires, onde meu padrinho mandou-me levar uma carta a Rosas. Aproveitei para lhe dar um abraço, não posso demorar-me.
Jacintinha, que tinha corrido ao terreiro para festejar e abraçar Morena, Juca e os outros amigos, entrou pálida, com os olhos úmidos:
— E o Morzelo, Manuel? disse a moça.
O gaúcho ergueu os olhos ao céu.
— Coitado!
Houve um instante de silêncio.
Durante o jantar a conversação rolou já sobre os sucessos da revolução, já sobre os acidentes da casa durante a ausência de Manuel. Terminada a refeição veio o mate, e o gaúcho, preparando um cigarro de palha, foi pitar no alpendre, onde o acompanharam a mãe e a irmã.
Antes de se aproximarem de Manuel, as duas mulheres trocaram entre si em voz baixa algumas palavras que acenderam nas mimosas faces de Jacintinha vivos rubores.
— Agora, quando as coisas se arranjarem, a mãe há de ir a Porto Alegre.
— Eu, meu filho? Daqui para a cova de teu pai. Não presto mais para nada.
— Ora deixe-se disso. E quem há de criar os seus netos... quando a Jacintinha casar?
— Sim, é tempo de pensar nisso; já está uma moça.
— E bonita, que faz gosto!
— Muito obrigada. Foi você que me pegou essa moléstia.
Não deixaram as duas mulheres de sentir no trato e na expressão de Manuel grande mudança; mas entregue ao prazer de o ver, não tinham tempo de reparar no tom expansivo e meigo com que falava o gaúcho; tão diverso do gênio seco e ríspido de outrora.
Continuando a conversa por algum tempo, observou Manuel que Jacintinha não cessava de fazer à mãe sinais misteriosos.
— Jacintinha tem algum segredo!
A velha sorriu e a moça fez-se de lacre.
— Fala, menina!
— Não! Fale você, mãezita!
— Pois sim.
— O que é?
— Espere! exclamou Jacintinha fugindo confusa e envergonhada.
Ficando só, Francisca referiu a Manuel que um moço castelhano de passagem por Ponche-Verde, gostara de Jacintinha e a pedira em casamento; porém ela respondera que nada decidia senão pela vontade de seu filho. Então ficou assentado esperarem pela volta dele, Canho.
— Jacintinha está caída pelo diacho do rapaz e ele merece porque é muito galante e tem alguma coisa de seu.
— Que faz ele?
— É mascate.
— Castelhano... mascate... Como se chama? perguntou o gaúcho com ansiedade.
— D. Romero Garcia.
— Ele!... exclamou o gaúcho erguendo-se arrebatadamente.
Por algum tempo Manuel percorreu o alpendre com passos agitados, até que dominado seu abalo, aproximou-se da mãe, que o observava surpresa, sem ânimo de fazer-lhe uma pergunta.
— Com esse homem é impossível! Jacintinha seria desgraçada. Ela que se esqueça desse sujeito; não faltam noivos galantes, sobretudo quando a noiva é de fazer inveja.
— Porém, Manuel...
— Não se fale mais disto.
Sabendo da resolução de Manuel, Jacintinha chorou amargamente; mas uma só queixa não proferiram seus lábios contra o irmão, que ela amava.
O Canho selava o Ruão, preparando-se para a partida, quando chegou-se a irmã que vinha despedir-se da Morena e dos outros animais. Havia em seus olhos os traços do pranto recente e na fronte uma sombra de mágoa.
— Você está triste, Jacintinha? perguntou o Canho, lembrando-se de Catita.
— Não, balbuciou a menina, debulhando-se outra vez em lágrimas.
Manuel amava, e sua alma passava então por aquela fase de bem-aventurança, que anuncia o despertar do coração e é por assim dizer a aurora suave do amor. Como podia ele ser de todo indiferente às mágoas de uma alma enamorada?
Esquecendo o mascate, Manuel pediu à irmã que lhe contasse como nascera sua afeição. Se fosse feliz, Jacintinha não teria forças para satisfazer a curiosidade de Manuel, mas era desgraçada. Referindo o romance de seu amor, a ingênua menina mal pensava que expunha o plano de sedução empregado pelo chileno, e do qual felizmente a salvara sua austera virtude.
A Canho, porém, não escaparam as intenções de D. Romero; e foi estremecendo de horror que ele ouviu estas palavras, com as quais a irmão concluiu:
"Na véspera da partida, ele ceou aqui; eu pedi-lhe muito que ficasse até você chegar; mas recusou, dizendo que só uma coisa o faria não sair de madrugada como esperava. Não sei o que era. Quando estava para se despedir, disse-me que havia de passar a noite no rancho com os olhos fitos na janela de meu quarto e por isso me pedia que a deixasse aberta.
Depois que ele se foi, eu me encostei na janela, para que me visse; mas comecei a sentir tanta fraqueza que não me podia ter; cuidei que ia desmaiar. De repente, não sei como, ele estava junto de mim, abraçando-me; eu queria fugir e chamar por mamãe, mas não tinha forças. Então me deu um beijo, que me fez desmaiar de todo, soltando um gemido. Mãezita correu para ver o que era e não viu mais ninguém. Ela diz que eu sonhei; mas eu ainda sinto aqui o beijo, que me queimou."
O pudor, esse anjo da guarda da menina casta, salvara Jacintinha, arrancando-lhe aquele gemido profundo que assustou a mãe. Canho compreendeu perfeitamente o perigo por que passara a irmã, e por vezes seus olhos dardejaram. De repente sentiu congelar-se o coração, lembrando-se que deixara Romero em Piratinim, perto de Catita.
Jacintinha, muda e palpitante, esperava com os olhos fitos na fisionomia do gaúcho, onde perpassavam os vislumbres das paixões que se agitavam nessa alma vigorosa.
— Não fiques triste, Jacintinha. Se esse homem for digno de ti, casará contigo. E te prometo que antes de um mês voltarei com ele. Estás contente?
— Mas o que acha você nele?
— Eu não o conheço; vou tirar informações.
Manuel dizia a verdade. Ele nada sabia desse indivíduo a quem encontrara por momentos quatro vezes apenas em sua vida, e de quem nunca se lembrara de indagar. E para quê? Antipatizara com aquela figura desde o primeiro momento em que a vira; e até onde ia essa ojeriza, ele o disse a Catita.
Uma idéia, porém, lhe acudira, que mudou o curso de seus pensamentos. Se o mascate não fosse um bandido, por que não o obrigaria a cumprir a promessa feita a Jacintinha, casando-o com ela? Assim ao menos esse ente inútil, senão prejudicial, serviria para dar alguma felicidade à mulher que o amava sinceramente.
Uma hora depois Canho montava a cavalo e partia à desfilada.
Ao despedir-se, já na sela, disse à Francisca, sorrindo com intenção:
— Daqui a um mês cá estou de volta!
Jacintinha corou.