O Homem/IX

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Sonhou com ele a noite inteira; mas que sonhos! E o melhor é que então o pobre diabo lhe já aparecia não por um prisma repugnante; ao contrário imaginando-se ao lado daquele corpo robusto, Magdá sentia todo o seu organismo rejubilar de satisfação; ainda melhor do que quando se aninhava no colo de Justina. Perto dele gozava, em sonho, um bem-estar de calmo conforto, como o dos tísicos junto aos bois, na morna atmosfera dos currais.

Tanto o amaldiçoara acordada, quanto o estremecera durante o sonho; este contudo nem sempre foi agradável e em certas fases até pelas horripilações do pesadelo.

Começou vendo-se no alto da pedreira, a olhar para o espaço, justamente como acontecera na realidade; mas a pedreira afigurava-se-lhe agora três ou quatro vezes maior. De repente, falta-lhe o terreno debaixo dos pés, e ela cai, não para trás e sim bem de frente — no ar. Nisto, uma garra fortíssima empolga-lhe as roupas das costas, sustentando-lhe a vertigem da queda, sem todavia impedir que ela continuasse a resvalar; mas já não cai, desliza suavemente, como se estivesse voando. Um braço musculoso cinge-lhe as curvas dos joelhos, outro toma-a pela cintura e o seu colo é recebido em cheio por um largo peito nu, onde há cabelos que lhe põem cócegas na pele: Magdá ri com as cócegas, e sua cabeça repousa num táureo pescoço de Hércules, cujo suor lhe umedece as faces. E, assim abraçados, deslizam voluptuosamente no espaço, descendo numa embriagadora delícia de vôo contínuo.

O vôo dura um tempo infinito. E ela, como receiando ficar desamparada, trata de agarrar-se ao outro o melhor que pode. Estreitam-se mais.

E mais.

Há já um princípio de frenesi no modo por que se estreitam. A moça procura com ânsia unir-se bem ao corpo do cavoqueiro; quer que seus peitos lhe fiquem bem colados ao peito; quer que os seus braços sintam em toda a extensão a carne das espáduas do homem; que a sua barriga se ajuste à dele e que as suas coxas lhe apalpem os rins.

E continuam a descair, a descair, sem para nunca. Magdá sente nas faces uma impressão desagradável de frio; sela imediatamente o rosto contra o outro rosto, e deixa-se aquecer, ao calor de beijos. Então os seus olhos desmaiam de gosto; as suas narinas arfam com mais força, porque ela não pode respirar pela boca, que está toda tomada pela outra boca. Um arrepio percorre-lhe o corpo, agitando-o até na mais pequenina fibra; e o seu sangue enlouquece; e os suspiros quebram-se-lhe na garganta, desfazendo-se em gemidos.

E estreitam-se mais. E unem-se. E confundem no ar os membros enleados e trêmulos. O cavoqueiro soluça, arqueja; ele já não tem uma só parte de si em que não o sinta. E, de improviso, um violento sopro de vida a invade toda, esquentando-a por dentro, penetrando-lhe as vísceras, soprando-lhe nas veias um calor estranho, alheio, que a ressuscita e faz saltarem-lhe dos olhos lágrimas de gozo.

Terminaram caindo, ainda abraçados, aos pés do Conselheiro, que os esperava lá em baixo, vestido com uma túnica vermelha e agitando na mão, colericamente, a sua grossa bengala de cana da Índia. Magdá escondeu o rosto. Mas desta vez não era o moço da pedreira quem lhe fazia vexame, era o próprio pai; não foi, pois, o colo deste que ela agora procurou para ocultar o orvalho do seu pudor, foi o colo do outro.

Houve um duro silêncio, durante o qual S. Ex., cujas barbas haviam crescido muito, e cuja calva reluzia que nem a de um patriarca da Bíblia, olhava, ora para a filha, ora para o rapaz, como se estivesse a compará-los.

— Com efeito!...

E sacudia a cabeça, e esticava os beiços, sem desviar a vista. No capricho do sonho, o pobre Conselheiro tinha perdido as suas maneiras distintas e afáveis, e até no modo de se exprimir era grosseiro e burguês.

— Com efeito!... repisou ele, estalando um riso de sarcasmo. — É até onde pode chegar o aviltamento!... Dar-se a um trabalhador da mais baixa espécie!... É inacreditável!

— A culpa não foi minha, papai...

— Cale-se! Não sei onde estou, que lhe não quebre esta bengala nas costas!

— Creia, patrão, que... ia arriscar o rapaz.

— Ó tratante! berrou o velho. — Ainda te atreves a abrir o bico? Ora espera que te ensino!

E cresceu para o moço, que o esperou sem tugir nem mugir, com o aspecto resignado de uma besta que tem dono. Magdá, porém, já se havia metido entre os dois e , de joelhos, chorando, abraçava-se às pernas do patriarca.

— Piedade, meu pai! piedade!

— Qual piedade, nem qual carapuças! Não fosse tão assanhada!

— Tenha compaixão de dois infelizes, cuja falta foi só uma e única...

— E acha pouco, sua desavergonhada? Acha talvez que esta não basta para me fazer subir ao arame! Tem graça!

E, enquanto a filha soluçava, sem erguer os olhos: — Ingrata! Eu a matar-me para a fazer gente; para lhe ar uma certa educação — e ela a meter-me os pés! Criar uma filha com tanto carinho, para vê-la depois entregue a um homem de pedreira!...

— Perdoe, meu pai!

— Não perdôo nada!

— Juro-te que não tenho culpa do que sucedeu...

— Perversa! Eu a sacrificar-me a instruí-la e arranjar-lhe um futuro, e ela a sujar-se de lama e a cobrir-me de vergonhas!

— Não fui eu, papai, foi a minha natureza; foi a minha carne; foram os meus sentidos!...

— Qual carne, nem qual sentidos! A patifaria tem sempre desculpas!

Fez uma pausa e prosseguiu depois, comovendo-se, mau grado seu: — Dei-lhe tudo o que se podia desejar! Foi já o professor de piano; foi já o professor de canto; foi já o mestre de desenho! E venha o explicador de francês! E venha outro para história e geografia pátria! E outro para isto! E outro para aquilo! E compre-se mais este dicionário! E assine-se mais este jornal! E corra-se aos Castelões a buscar o camarote do Lírico! E olhe o carro que não esqueça! E veja essa luva de vinte botões que saia! E venha a bela da jóia! E venha o belo vestido de seda! E olhe o chapéu à Sarah Bernhardt! E olhe as regatas! E olhe as corridas! E dêem-se festas todos os meses! E façam-se viagens à Europa! — E tudo isto afinal p’ra que? — Sim! tudo isto p’ra que?! Só quero que me digam de que serviu tanto sacrifício!

— Perdoe-me!

— Não! não perdôo, nem devo perdoar! Se queria casar, há muito tempo que o podia ter feito; o que não lhe faltou foram pretendentes! A senhora torceu o nariz a todos! E, logo que o Dr. Lobão me fez ver a necessidade urgente de uni-la a alguém, trouxe-lhe o meu amigo José Furtado!

— Um velho!

— Não será uma criança, mas também não é nenhum bisavô! Outra qualquer a teria agarrado com unhas e dentes! Um homem de conta, peso e medida!

— Pudera! Principiou a vida a limpar pesos e balanças!

— E que tem isso? Um homem honrado, trabalhador e econômico. Entrou na vida com um barril nas costas, mas hoje é uma das mais sólidas fortunas do Rio de Janeiro!

— Não é de dinheiro que eu preciso!

— Pois então casasse com o Dr. Tolentino...

— Um defunto!

— Defunto! Não terá uma saúde perfeita, coitado, mas é uma das mais bem constituídas cabeças do Brasil. Muito talentoso, muito ilustrado! Membro da Sociedade de Geografia de Lisboa, e consta até que vai receber diploma de sócio não sei que importante congregação científica da Bélgica!

— Também não é de ciência que eu preciso!

— Nesse caso, porque não aceitou o Conde do Valado?

— Um libertino!

— Não é tanto assim.

— Um vicioso comum que, se deixa de falar um instante em cavalos, é para discutir cocotes.

— Que exagero! Não direi que os seus costumes sejam tão puros como os do comendador José Furtado ou como os do Dr. Tolentino, mas é um mocó ilustre, descendente em linha reta de uma das mais importantes casas de Portugal. Seus avós figuraram todos na história e o seu nome tornaria fidalga a mulher que o possuísse!

— Eu não preciso de nobreza!

— Não precisas de nobreza; não precisas de ciências; não precisas de dinheiro! Então de que diabo precisas tu?

— De um homem...

— Um homem! Quanta desfaçatez! De que precisavas, grandíssima desavergonhada, era de uma boa carga de pau, para te apagar o fogo do rabo!

E o velho, possuindo-se de novo acesso de cólera, estendeu o braço, enxotando a filha e mais o moço da pedreira.

— Já! Rua seus bandalhos! E que eu nunca mais lhes ponha a vista em cima! Estão amaldiçoados!

— Meu pai! meu pai!

— Aqui já não há pai, nem mãe! Não sou pai de mulheres à-toa! Ponham-se a andar, e que sejam muito felizes! Boa viagem!

— Deixe-me ao menos ir lá dentro buscar as minhas jóias, um pouco de roupa e os meus livros...

— Jóias, roupas, livros! para que? A senhora já não tem tudo quanto deseja, para que mais?... As boas roupas fizeram-se para os nobres, as jóias para os ricos e os livros para os sábios! A senhora nada tem que ver com esta gente e com estas coisas! Só queria "um homem", pois já o tem! É andar! Ele que lhe compre jóias; que se encarregue de vesti-la, de sustentá-la e de consolá-la. Tem obrigação disso; e, se não dispõe de meios, invente-os — trabalhe! Se não puder tratá-la a bicos de rouxinol, comam feijão com carne seca, que a senhora tem obrigação de contentar-se com o que ele lhe der! É o "seu homem" e, por conseguinte, é quem de hoje em diante a governa com direito de vida e de morte! Acompanhe-o submissa para onde ele for, seja para o inferno ou seja para o paraíso! A partir desse momento— o seu destino é o dele! E deixem-me!

— Meu pai!

— Foi tempo! Nada mais há de comum entre nós! Para continuar a ser seu pai, seria preciso que eu me fizesse pai também daquele pedaço d’asno; e eu não quero ter filhos de tal espécie!

E S. Ex,. notando que Magdá não se resolvia a largar-lhe as pernas e continuava a chorar, ordenou, voltando-se para o cavoqueiro:— Olá, seu coisa! Tome conta dessa mulher! É sua! Pode levá-la para onde bem entender!

— Ah! exclamou a filha, caindo por terra, de borco, com os braços estendidos no chão, enquanto o velho, arrepanhando a sua túnica da cor simpática às histéricas, se afastava para casa, muito fresquinho e senhor de si, assoviando, de cabeça impertigada, nem como se a coisa tivera sido com ele.

Magdá permanecia de bruços, a soluçar. Então o mocó da pedreira inclinou-se sobre ela e deu-lhe com toda delicadeza u ósculo nos cabelos. Depois tomou-a ao colo e pôs-se a caminhar, vagarosamente, muito vagarosamente, na direção da fatal montanha onde ele trabalhava. E toda a natureza, que parecia haver entristecido e tomado luto com a maldição do velho, começou a reanimar-se, a rir de novo, tingindo-se de luz purpúrea e entoando em voz baixa epitalâmeos sensuais. E os dois, abraçados, formando um só grupo, lentamente penetraram numa deliciosa alameda de laranjeiras, cujos galhos se vergavam na sua passagem para lhes beijar a fronte, derramando-lhes sobre a cabeça uma odorífera chuva de flores desfolhadas. E do céu baixava doce harmonia religiosa, que parecia balbuciada por uma nuvem de anjos.

Nisto — despertou.

Circunscreveu o olhar em torno de si, reconhecendo a custo a própria alcova. O seu pequeno relógio Luiz XV, de bronze dourado, marcava, no mostrador de porcelana de Sèvres esmaltada, meia hora depois do meio-dia. Uma cortina cinzenta, de seda de Leão, quebrava na janela a luz que batia de fora, e dava ao quarto o tom opalino de um crepúsculo de inverno. Magdá suspirou, espreguiçando-se. O drama fantástico de toda aquela noite dissolveu-se: teatro e personagens desapareceram. Mal ouvia-se, ainda, bem distintamente, o tal coro religioso que baixara dos céus para solenizar a sua passagem na encantada alameda; a moça soergueu-se no leito, concheando a mão no ouvido que ficava do lado da janela e, meio maravilhada, pôs-se a escutar com atenção aquela tristonha cantilena que persistia ali, na vida real, como um prolongamento do sonho.

Caiu logo em si: era a toada melancólica dos trabalhadores que minavam a pedreira. E ali deixou-se tombar de novo sobre os travesseiros e aí permaneceu, com os olhos muito quietos, enquanto duas lágrimas lhe serpeavam ao comprido das faces.

Oh! Sentia-se profundamente envergonhada do que sonhara a noite inteira.

— Minha’alma, rosnou a nova criada, afastando o reposteiro da porta com a cabeça — o senhor mandou perguntar como vosmecê passou de ontem p’ra hoje.— Diga-lhe que pode vir daqui a pouco, e você volte já para me vestir.

Quando se achou preparada, foi esperar o pai na sal contígua à sua alcova.

— Então, minha filha, como passaste a noite.

— Bem, respondeu ela, beijando-lhe a mão.

— Dormiste?

— Bastante.

— Pareces-me, no entanto, fatigada... Como te sentes hoje de humor! — No mesmo.

— Aquela loucura de ontem...

Magdá estremeceu e abaixou as pálpebras. Dir-se-ia que o pai lhe lançava no rosto uma falta humilhante.

— Ficaste tão apreensiva com a tal subida da pedreira que...

— É melhor não falarmos mais nisso...

E tomou as mãos do Conselheiro, fazendo-o chegar-se para bem junto dela. E, depois de contemplá-lo em silêncio com um meio sorriso, abraçou-o, demoradamente, como se procurasse ficar convencida por uma vez de que aquelas tolices do sonho não tinham o menor fundamento, e que seu pai, o seu extremoso pai, a quem tanto queria do fundo do coração, ainda ali estava a seu lado, para amá-la como sempre e protegê-la contra o maldito intruso que habitava dentro dela e que a consumia para alimentar-se.

— O senhor é muito meu amigo, não é verdade, papai?...

— Ora, que pergunta, minha filha!

— Diga!...

— Pois ainda não tens certeza disso?

— E o senhor seria capaz de abandonar-me, capaz de desprezar-me, fosse lá pelo que fosse?

— Mas que lembrança é esta, Magdá? Desprezar-te, eu? Enlouqueceste!

— Ama-me muito, não é verdade? Por coisa alguma desta vida seria capaz de enxotar-me da sua companhia, não é assim? Responda.

— Deixa de criancices, minha flor, e olha! — toma o teu chocolate que ali está esfriando há meia hora. Mas que é isto?... Choras?... Então! então! Que tu sentes, Magdá? Fala, meu amor.

Ela começou a soluçar.

— Nada! nada! nervoso! Acordei hoje muito nervosa!

— Mas não te aflijas deste modo. Vamos — toma o teu chocolate e desce comigo ao jardim. Anda! Vê se consegues não pensar em coisas que te façam mal... Não sejas crianças...

O Conselheiro, à força de carinhos, conseguiu que ela tomasse, além de meia chavena de chocolate, uma colherada do xarope de Esston, que o Dr. Lobão havia receitado.

A arrastou-a para a chácara.

Mas, pobre senhora! mal acabava de descer a escada do jardim, deu logo, cara a cara com o moço da pedreira, que ia buscar a espórtula prometida pelo Conselheiro.— Ah! exclamou toda trêmula, corando e abaixando as pálpebras. E tratou de abraçar-se ao pai e esconder a cabeça no colo deste, como na véspera, depois da síncope.

O bom velho não pode compreender o que era aquilo.

— Tens alguma coisa? perguntou. — Sentes alguma novidade? Fala.

— Voltemos para cima! Voltemos para cima! Dizia a moça, aflita, sem mostrar o rosto.

O trabalhador, muito rendido, continuava defronte deles, com os olhos em terra, a torcer vexadíssimo entre as mãos e o seu seboso casquete de pele de lebre.

— Ó patrão, se quer, eu apareço noutra ocasião...

— Sim, sim, é melhor, volveu o Conselheiro, muito ocupado com Magdá.

— Não! acudiu esta, sempre com o rosto escondido. — Despache-o de uma vez! Para que fazer este homem voltar ainda aqui?

Ao perceber uma pequena parte destas palavras, o cavoqueiro fez uma careta que tanto podia ser de surpresa como de lástima, e resmungou meio sentido:

— Voscência queira desculpar, mas eu, se aqui vim, foi porque me disseram p’ra vir... Tinha que com isso não ofendia pessoa alguma... mas, a vista de que ando mal, peço desculpa e o mais que posso fazer — é não tornar cá!

— Não! opôs S. Ex. — Espere um instante. E, passando o braço pela cintura da filha, segredou ao ouvido desta: — Vamos, vamos lá para cima. Creio que hoje não estás boa...