O Homem/X
O cavoqueiro ficou a esperar no jardim, encostado prali numa árvore, e a fazer de lá suas considerações.
— Que macacos o lambesse se entendia aquela gente! A tal dos "me deixes" ficara a modos que assanhada quando ele lhe pôs as vistas em riba! Pois estava que não havia razão de zangar, antes pelo contrário — havia pragradecer: Sim! Prestara-lhe um serviço; que não era lá nenhum grande serviço; mas enfim, que diabo, na ocasião, ela não tinha quem a pusesse cá em baixo!
Tecia este raciocínio quando sentiu no ombro uma palmada de mão polpuda.
— Estás a cismar, ó Luiz!
— Olá, Sóra Justina! Bons olhos a vejam! Como chegou vosmecê?
Ela chegara bem, graças a Deus.
— E o pequeno? Como ficou?
— Ora! Pronto pra outra!
— Vosmecê está chegando agora!
— Não. Já estive lá na estalagem com a tua gente. Estão muito apertadas de serviço com a roupa de uma família que embarca depois damanhã. E tu! Não foste hoje ao trabalho?
— Já se vê que sim, Pus o casaco para vir aqui, mas volto.
— Isto é novidade...
— Não é nada, é que ontem a senhora aí de cima...
— Minhama...
— Deve ser — foi passear lá na pedreira e...
— Ah! Ela subiu à pedreira...?
— Subiu, mas caiu, logo com um faniquito: eu carreguei-a cá pra baixo... Vai então o pai — disse-me que lhe aparecesse para me dar ma gorjeta, e eu vim. Ora aí tem vosmecê!
— Sta direito. Já falaste?
— Já, mas não entendo esta gente. Se a Sora Justina chega um bocadinho antes, havia de presenciar o mais bonito!
— Quhouve?
— Pois a moça não fez aqui umas partes?...
— Que foi, Luiz?
— Pois não! Vinha descendo muito bem a escada e assim que me bispou - zás!
— Zás — como?
— Abriu a chorar que nem uma criança, e agora o verás.
— Coitada! Eu sei — é moléstia!
E a Justina comoveu-se. Sempre que lhe tocavam na ama, apertava mais as sobrancelhas e ficava com uma cara de profunda lástima.
— Arrenego de tal moléstia! replicou o trabalhador. — Uma coisa dá para espantos, nem que a gente fosse alma do outro mundo! Olhe que se o pai não me dissesse para esperar aqui, juro-lhe que já cá não estava! Diabo de uma esganiçada, que parece que está parte não parte pelo meio! Ontem, quando a trouxe, tive medo de chegar cá embaixo com um pedaço em cada mão!
— Não sejas má língua, Luiz! Não seria a primeira vez que perdesses por falar de mais! Se não fosse semelhante balda, estarias a esta hora casado já com a Rosinha...
— Ora, sua mana mesmo foi que teve a culpa! Ela gosta mais de falar do que eu!
— Como teve a culpa, se tu és que andavas todo o santo dia a debicar o Comendador? Pois não dizias a todo mundo que ele era um sapo-boi e não o arremedavas lá na estalagem para quem queria ver?... A caçoada chegou aos ouvidos do homem, e ele de o dito pelo não dito - não quis mais ajudar o casamento da afilhada... Fez muito bem! Tu, no caso dele, farias o mesmo! Como não?
— Sim, mas se sua irmã não fosse lá contar o que se fazia na estalagem, o homem não bufava e teria caído com os cobres para o enxoval!
— Fez de tola!
— Ah! mas deixe estar que o casório há de ser, mesmo sem a ajuda do sapo velho! O pobre também vive!
A outra era do mesmo parecer: — Como não? que isto de raparigas, a gente deve despachá-las logo, antes que o demo as tente!
E, vendo que um escravo do Conselheiro descia a escada. — Olha! Aí vem o negro com a tua gorjeta.
Com efeito, eram dez mil réis que o pai de Magdá mandava ao cavoqueiro.
— Que fico muito obrigado, ouviu? E quando precisar, lá estou às ordens.
O escravo afastou-se.
— Vê lá agora se te metes hoje nalguma bebedeira!... observou Justina, a bater-lhe no ombro. — E até logo, que ainda não me apresentei à patroa!
Já a certa distância, parou, para gritar:
— Olha! dize à tia Zefa que não me deixe o pequeno socar-se muito de aipim, que foi isto o que derrubou o outro!
E galgou de carreira a escadaria do Conselheiro, num ativo remeximento de quadris em evidência.
— Vou comprara um bilhete inteiro! Deliberou consigo Luiz, guardando a cédula na algibeira.
Luiz era filho da tia Zefa, e morava com esta, mais a avó e mais a Rosinha, irmã de Justina e noiva dele, na tal casita de duas janelas, com entrada pela estalagem que ficava em frente da chácara do Sr. Conselheiro. Viera novo para o Brasil, onde se achava perfeitamente aclimado; não sabia ler nem escrever; tinha, porém, força e saúde, "que é o principal para quem deseja ganhar a vida". O seu casamento estava já para se realizar havia um ano, porque Luiz queria fazer coisa aceiada. "Não! Que para um homem atrasar a vida, junto com a da mulher, antes fique solteiro! A pequena que esperasse , que o que tinha de ser dela às mãos lhe chegaria! Com outra não se casava — isso é que era dos livros! Ah! se a fortuna se lembrasse dele, já tudo estaria feito; mas o diabo da sorte andava arisca; todos os vigésimos da loteria, que ele comprara às ocultas da mãe e da avó, saíram-lhe brancos... Só mesmo podia contar com o triste peculiozinho do trabalho; o verdadeiro, por conseguinte, era ir se preparando aos poucos — hoje com uma coisa, amanhã com outra, conforme desse o cobre e conforme as pechinchas que aparecessem. Seu padrinho de batismo, um velhote apatacado que emprestava dinheiro a juros, esse prometera entrar com uma famosa cama de jacarandá, que tinha em casa e da qual não se servia desde a morte da mulher. Ah! esse não era o Comendador! Muito seguro, muito apertado, não havia dúvida! mas, também, prometendo, podia a gente contar com o bruto — a cana era certa! Ora, pois, com o dinheiro que lá estava na Caixa Econômica, ele teria um fato novo e um arranjo de roupa branca. Vinte e cinco mi réis seriam para um relógio de prata dourada, dos modernos. — Isso era sagrado! Porque ele não admitia que ninguém se casasse sem ter relógio e corrente. Corrente já tinha — cordão de ouro que foi do pai e que vivia fechado na cômoda da tia Zefa ao lado dos ouros da família."
E estava a ver defronte dos seus olhos todo aquele tesouro: grandes rosetas redondas e abertas, do tamanho de moedas de vintém; anelões de chapa em cima; um crucifixo de trazer ao pescoço em dias de festa; uma figa que era uma riqueza, no peso; um alfinete de peito representando um anjo a tocar trombeta; três pulseiras lisas e polidas; outras de coral com fecho de ouro; vários objetos de filigrama de prata fabricados no Porto; um paliteiro e dois castiçais também de prata, sem contar com dois diamantezinhos que a vovó ganhara aos vinte anos, quando se casou, e que fazia questão de levá-los às orelhas para a sepultura. "Era lá mania da velhinha — respeitava-se!"
"Ora... a Rosinha, além de tudo, tinha também os seus cobritos juntos; por conseguinte, Luiz, com mais algum tempo de economias, bem que podia casar com ela". Foi sacudido por este risonho raciocínio que o cavoqueiro, já de volta do serviço, entrou em casa às sete da noite, mais satisfeito que de ordinário, graças à gorjeta do pai de Magdá, e talvez por haver tomado depois do trabalho alguns martelos de vinho com os companheiros.
A pequena sentiu-lhe cheiro de bebida logo que ele entrou.
— An... an...! Você hoje entortou o cotovelo, hein, seu Luiz? Muito bonito!
— Um nada! Foi para beber à saúde da moça dali defronte...
— A filha do Conselheiro... Ah! E deram a molhadura?
— Já se deixa ver que sim, Mas aviem-me esse jantar, que estou a tinir!
E assentou-se à mesa, que tia Zefa cobria nesse instante com uma toalha de linho grosso, enquanto a Rosinha corria a buscar á dentro a tigela de sopa. A avó chegou-se também para vê-lo comer, como fazia todos os dias. Uma velhinha engraçada, a vovó Custódia! — seca, pequenita, a pele enrugada que nem um jenipapo maduro; a cabeça que era um algodão; a boca fechando e abrindo sempre, e toda cheia de pregas, tal qual a boca de um saco fechado. Mas toda ela ainda esperta, agarrando-se à vida com as unhas, que os dentes já á se tinham ido.
Sentia-se ali um cheiro especial de roupa engomada e de roupa lavada. Justificando esse cheiro, viam-se acumulada por toda a parte, sobre as mesas, sobre as cadeiras, pilhas de camisas dobradas, montões de peças de roupa branca, e, dependuradas de uma corda, pelo cós, muitas anáguas, e muitas saias, penteadores bordados e vestidos de linho com guarnições de renda. Um candieiro de querosene iluminava a pobre sala de duas braças de largura e três de comprimento, toda caiada de cima a baixo, e com uma pequena barra de roxo-terra. Havia um armário de pinho sem pintura, onde se guardava a louça, aquela grossa louça de doze vinténs o prato, e aquelas canecas de pó de pedra, onde eles tomavam café antes de levantar o dia. Na parede — uma gaiola de pindoba com um gaturamo. A casa constava ainda d duas alcovas e outra salinha; ao fundo um pequeno quintal que dava para o cortiço. Era propriedade da mãe do Luiz; deixou-lha o marido, um ferreiro, que morreu de desastre.
O rapaz, enquanto jantava, falou a respeito das esquisitices da filha do Conselheiro, causou grande impressão na sua gente. Quiseram pormenores; crivaram-no de perguntas: "Se Magdá tinha cara de doida; se era bonita; se se dava ao respeito". Luiz respondia a tudo, devorando colheradas de feijão amassado com farinha.
— Pois mana Justina diz que ela é muito boa, observou Rosinha. — E o caso é que lhe tem dado muita coisa! Ainda há dias mostrou-me um anel, que...
— Um anel? De ouro?
— Sim, senhora, de ouro! Juro por esta luz! Eu vi! Lindo! Com umas pedrinhas em ciam!
A notícia do anel abriu um silêncio comovido.
A tia Zefa observou afinal:
— Aquela chorou na barriga da mãe! Tem muita sorte o diabo da rapariga! Hão de ver que ainda encontra marido, apesar dos filhos...
— Ora se encontra! respondeu Luiz. — Isso é tão certo como me achar eu aqui! Pois não se vê como está o Manoel das Iscas por ela?... Não fala noutra coisa! "Porque a Sóra Justina pra cá! A Sóra Justina pra lá!" Até já fede!
— Que me estás tu a dizer, rapaz?
— Ora! Caidinho! E, se ela o souber levar, apanha-o mesmo!
— Uma sorte grande! O Iscas já tem alguma coisa de seu!
— Olá! Só aquele correr de casas, que ele fez agora, dá-lhe com que passar mais duas vidas!...
Depois do Iscas, a filha do Conselheiro tornou a entrar para assunto da conversa, e discutiram-se com assombro os presentes dados por ela à Justina. Por fim o cavoqueiro ergueu-se da mesa, tomou a sua viola e foi esperar pela hora de dormir, assentado à porta da estalagem, repinicando o seu fado favorito. Rosinha acompanhou-lhe logo e instalou-se ao lado dele como costumava fazer; ao passo que as duas velhas, tomando cada qual a sua cadeira, ficaram defronte uma da outra, a falar; entre bocejos e cochilos, no que tinham trabalhado esse dia e no que iam trabalhar no dia seguinte. Daí a pouco já não diziam palavra, e a própria Rosinha dava marradas no noivo, cabeceando de sono. Só a viola do cavoqueiro continuava bem acordada, quebrando o denso recolhimento das nove e meia com o seu "tir-lim-tim-tim" monótono e embebido de saudade.
Luiz cantava:
"O sol prometeu à lua
Uma faixa de mil cores;
Quando o sol promete à lua,
Que dirá quem tem amores!...
"Tir-lim-tim-tim! Tir-lim-tim-tim!
"Tia a amar-me, e eu a amar-te,
Não sei qual será mais firme!
Eu como sol a buscar-te,
Tu como sombra a fugir-me!"
Essa cantilena chegava até a casa do Conselheiro reduzida a uma toada errante e tão lânguida que entristecia. Magdá escutava-o da sua alcova, deitada no colo de Justina, à espera do sono.
E quando, lá pela meia-noite, conseguiu adormecer, continuou logo a sonhar com o moço da pedreira.