O Homem/XI

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O sonho ligava-se ao da véspera. Tornou a ver-se no colo do rapaz, abandonando a casa paterna e dirigindo-se vagarosamente para a montanha; esta, porém, surgia-lhe adora defronte dos olhos, não como pedreira esbrugada, mas em plena efervescência de verdura e toda coberta de flores.

Começaram a subir. Uma floresta virgem abria-se diante deles, para lhes dar passagem, e logo se fechava sobre os seus passos, como cortinas de um leito de folhas. O moço parecia não cansar com o peso que levava, e Magdá por sua vez sentia-se leve, muito vaporosa; e, à proporção que se afastava de casa e ia-se entranhando na mata, fazia-se melhor, mais satisfeita e feliz.

Afinal, deram com uma planície. Haviam chegado ao cimo da montanha; aí o círculo de verdura que os guardava abriu em clareira, destoldando o azul, onde o sol resplandecia, transbordante de ouro por entre espumas de prata. Reinava na luz um meio tom suave e comunicativo; tudo era doce, temperado e calmo; as vozes da natureza chegavam aos seus ouvidos apenas balbuciadas; as folhas e asas cochichavam, como se temessem acordar alguém; perto corria um regato sussurrando.

O moço pousou Magdá sobre a relva e assentou-lhe ao lado dela, tomando-lhe as mãos entre as suas.

— Como te sentes agora, minha flor! Segredou-lhe, aproximando o rosto.

— Muito, muito melhor... respondeu a filha do Conselheiro com um suspiro. — Sinto-me ainda um pouco fraca, mas conto que estes ares me restituam as forças...

— Em breve estarás perfeitamente boa e serás completamente feliz! disse o outro, e soltou-lhe um beijo na boca. Magdá percebeu então que o hálito do moço tinha o perfume de murta, e que as barbas dele eram agora mais macias do que os arminhos da sua saída de baile. E, encantada com a descoberta, notou ainda que as mãos do cavaqueiro já não eram tão duras e mal tratadas, mas bem torneadas e de uma flexibilidade muito enérgica e nervosa; que o cheiro do seu corpo já não tresandava a cavalo suado, mas rescêndia a um odor fecundo de carne sadia e limpa, lembrando o cheiro de leite fresco; que os seus dentes eram alvos e puros como as areias da praia; que o seu peito era mais branco e mais rijo que o granito da pedreira; que os seus cabelos, roçando nela, acordavam desejos, e que seus braços eram cadeias de fogo em que toda ela se abrasava de amor.

— Gostas de me ter a seu lado?... perguntou ele.

— Tu restitues-me a vida... respondeu Magdá, cingindo-o pelos rins e pousando o rosto abatido e frio sobre o colo vigoroso e largo do amigo. — Oh! balbuciou depois, aconchegando-se mais — como eu me sinto bem assim! Com a cabeça aqui! A gozar nos meus peitos o calor do teu corpo! Deixa-me ficar ainda! Deixa-me ficar um instante, meu senhor e meu amado!

E apertava-o nos míseros braços, fechando os olhos e aspirando com força, como se quisesse sorver de um só hausto, a vitalidade que ele de si exalava, mais capitosa que o vapor de um vinho velho fervendo ao fogo.

— Tu és só meu?

— Todo teu e para sempre!

— Nunca amarás outra mulher?

— Não, Magdá, nunca!

— Se me esqueces por outra, eu morreria de ciúmes, antes que as feras me devorassem aqui! Olha! vê como, só com pensar nisto, tremo toda...

Ele puxou-a de vez para o seu colo e afagou-a.

— Não chores, disse. — Descansa, que nunca mais nos separaremos. Eu serei eternamente o teu companheiro, o teu amigo, o eu esposo! Quando te sentires com força, irás a pé, pelo meu braço, passear ao outro lado da montanha, que ainda é mais belo do que este. Depois chegaremos até lá em baixo, no vale, onde encontrarás tudo o que de melhor há na vida: os mais saborosos frutos, as flores mais mimosas, as aves mais lindas, as águas mais puras, o sol mais carinhoso e os seres mais benfazejos da natureza. Lá tudo é nosso amigo; tudo nos ama; nenhuma ente da terra te fará mal, porque aqui tu és rainha e eu sou o rei. Não tenho para te oferecer aposentos como os de teu pai; não tenho carruagens, nem sedas, nem baixelas de prata; mas, em compensação, nenhuma outra te disputará o poder sobre estes teus domínios, nem o amor deste teu escravo! Quando sentires vontade de comer, eu irei buscar os pomos mais suculentos e gostosos; quando tiveres sede, eu trarei nas minhas mãos a água mais cristalina das nossas fontes; quanto te sentires cansada, eu te carregarei nos meus braços. Eu percorrerei o mundo inteiro para te matar um desejo! E, quando dormires, estarei a teu lado, pedindo a Deus que te dê bons sonhos e encha tua alma de consolações.

— Como sou feliz agora, meu amigo...

— Sim, tu serás muito feliz, porque aqui não haverá ódios nunca, nem invejas, nem ambições, nem vícios; aqui só o amor existe! Este é o seu reino; nada aqui vive senão dele e para ele! Amarmo-nos será o nosso único destino e o nosso único dever. Desde que o não fizéssemos, seríamos logo expulsos deste paraíso por indignos e maus, e teríamos de ir chorar a nossa miséria lá na outra existência, onde os homens se detestam e atraiçoam a todo momento. Vês estas árvores, estes pássaros, todo este mundo alegre e feliz que canta em torno dos nossos beijos! pois todo ele vive só para se amar! Vê! repara como todos crescem aos pares; como concebem e como produzem! Olha para cima da tua cabeça; olha para debaixo dos teus pés; olha para os lados e observa! — Está tudo amando? Em cada beijo que damos, um infinito de vidas se forma entre nossos lábios!

— E há quanto tempo vives aqui neste reino encantado do amor?

— Não sei; não me lembra como vim ao mundo, nem conheci o autor dos meus dias; porém, à força de pesquisas, cheguei a crer que sou o mais recente produto de uma geração privilegiada, que chegou mais depressa do que as suas congêneres ao meu estado de aperfeiçoamento. O fundador da minha dinastia era de sílex, nasceu com o mundo, e, no entanto, meu pai era já nada menos que um quadrúmano; de mim não sei ainda o que sairá...

— Mas tu estão não é o moço da pedreira?...

— Tolinha! Aquilo foi um disfarce que tomei para te poder alcançar.

-- Como assim?

— Desejei-te e jurei que havia de possuir-te. Mas como me aproximar de ti?... Lembrei-me da pedreira que fica defronte da tua janela, tomei a forma de um cavoqueiro e comecei a namorar-te, a empregar todos os meios para atrair-te. Tu a princípio te negaste; eu, porém, não desanimei e todos os dias te chamava cantando. Afinal, uma bela tarde, não pudeste mais resistir, e lá foste. Estava ganha a vitória! Fiz logo com que perdesses os sentidos; ofereci-me a teu pai para transportar-te nos meus braços e, assim que te pilhei no colo, penetrei-te com o meu desejo e com o meu amor; enleei-te toda no meu querer, e então, quando já te não possuía, fui buscar-te num sonho, e hoje és minha para sempre!

— Sim, sou tua. toda tua, não há mais dúvida; és o meu dono, pertenço-te; mas uma coisa não compreendo...

— Que é?

— A razão porque, para me seduzires, tomaste a forma de um grosseiro trabalhador de pedreira e não de elegante e gentil cavalheiro, que houvesse penetrado nas salas de meu pai e de mim se apossado licitamente, por meio do casamento...

— Tão tolo sou eu que caísse na asneira de namorar-te sob a forma de um homem de sociedade; porque, se assim o fizesse, lograria apenas impressionar-te o espírito, já tão viciado pela própria sociedade; e não conseguiria por em jogo os teus sentidos, como obtive disfarçado em simples trabalhador, de corpo nu, forte, inteiro, e de homem para toda a mulher! Se eu tomasse a forma de um janota, não estarias a estas horas aqui comigo, porque tu não me seguiste seduzida pela minha inteligência, que te não mostrei; nem pela minha riqueza de caráter, que escondi; vieste pura e simplesmente arrastada pela minha beleza varonil e pela masculinidade do meu corpo! Se eu me tivesse apresentado a ti sob a forma de um elegante rapaz, desconfiarias de mim, como desconfiaste de tantos que te pretenderam; havias de supor-me tão corrompido e tão inutilizado como os outros; não acreditarias na integridade do meu sangue, na sinceridade de minha saúde, e ainda menos na do meu amor. E, quanto ao fato de justificar a nossa união pelo casamento, para que e porque semelhante formalidade pueril e ridícula... O casamento é a prova pública do amor, e nós por enquanto não temos público! Deixa isso lá para a tua mesquinha sociedade, onde se casam enganando-se uns aos outros; onde se casam sempre por qualquer interesse, que não é o da procriação...

— Não! Lá também há casais que se amam...

— Muito raros. Além disso, o meio que os cerca é quanto basta para corrompê-los em pouco tempo e fazê-los tão ruins como os outros. Viverão a primeira lua de mel em pleno amor, mas na seguinte já o marido procura com quem trair a esposa, e esta já precisa chamar em seu socorro toda a energia de que é capaz para ver se consegue não enganar o marido! Ah! — Uma gente adorável, não há dúvida!

— E achas que Deus não se zangará comigo por eu não ter ido à igreja receber a sua benção antes de acompanhar-te?

— Zangar-te contigo! Quem! Deus? Que loucura! Ele, ao contrário, filhinha, longe de amaldiçoar-te porque me amas deste modo, mais ainda te estimarás por isso. Ele quer que as suas criaturas se amem como nós dois nos amamos! O seu coração é um grande manancial de ternura, que se derrama noite e dia, a todo o instante, sobre as nossas almas, para fecundá-las, como o sol se derrama sobre a terra. Quando, em longas noites de luar, ficavas cismando esquecida à janela do teu quarto e suspiravas sem saber por quem, era ele que me trazia de longe os teus beijos errantes e solitários com o mesmo sopro benfazejo com que conduz a cada momento de uma a outra flor o pólen dourado e fecundo!

— Deus?

— Sim, Magdá, tudo o que vem das suas mãos de pai trás o gérmen do amor, que é a vida. A própria terra nada mais é do que um grande ovo, que ele incuba com a calentura do seu amor eterno! O Criador deu ao homem vesículas seminais, o ovário à mulher, para que eles se correspondessem, e se amassem, e se reproduzissem. Só nos amando assim, como agora nos amamos, podemos glorificá-lo, porque o amor é a perpetuidade da sua obra! E ainda me vens falar em cerimônias de igreja!... Mas aqui, minha amada, eu não sou o mocó da pedreira, nem tu és a filha de um Conselheiro; aqui somos apenas um casal que se ligou pelos únicos laços que Deus criou para unir o homem à mulher — a cópula! Aqui somos o macho e a fêmea; aqui somos iguais porque somos e seremos igualmente puros, castos e eternos! A única substância da nossa vida nestas infinitas e deliciosas regiões do amor, é o próprio amor! nosso Deus — o amor! nosso ideal — o amor! Só por ele e para ele nos achamos aqui reunidos os dois, assim abraçados e presos nos lábios um do outro!

E com estas palavras o moço estreitou Magdá contra todo seu corpo. E calaram-se ambos.

— Sim, disse ela afinal, quando recuperou a fala — sim, que me importa a outra vida, se tudo o que é de melhor concebem o meu coração e o meu cérebro é o teu amor? Desapareça tudo o mais; arrazem-se todos os mundos; apaguem-se todas as paixões; sufoquem-se todas as crenças; aniquilem-se todos os instintos; e este amor ilimitado, ardente, sempre novo e sempre vivo, há de sobreviver, como um espírito imortal, como um príncipe incriado, uma força mais arbitrária e mais indomável do que a força impulsiva da matéria!

E seus lábios uniram-se de novo aos lábios dele, e seu corpo de novo estrebuchou na relva em convulsões de amor. Em volta a natureza festejava aquelas núpcias com uma orquestra em surdina de beijos e arrulhos. Um crescendo ansiar de suspiros estalados ia-se formando lentamente; até que, de súbito, um geral espasmo se apoderou de toda a montanha, levantando4he pela raiz a cabeceira verde. Encrespou-se-lhe o dorso. Às arvores, com as folhas arrepiadas, extorciam-se, atirando-se umas às outras e rangendo os galhos; as flores palpitavam sob o doudejar das borboletas; os répteis corriam de rojo por toda a parte, rondando, seguros e assanhados; vermes esfervilhavam, brotando aos cardumes do solo úmido; as rolas acoitavam-se, gemendo de gosto e ruflando as asas no chão; ouviam-se rouxinolar duetos de amor no fundo azul das matas; insetos zumbiam voando, agarrados no ar; aos pares; uma nuvem de poeira cor de fogo remoinhava no espaço, embebedando as plantas; e o sol, vitorioso e potente, resplandecendo na sua armadura de ouro, emprenhava a terra na esplêndida fornicação da luz.