O Homem/VIII
Com a morte da velha Camila, despedira-se da casa a mulher que estava ao serviço de Magdá e fora substituí-la uma rapariga ali mesmo da vizinhança.
— Justina, uma sua criada, para a servir.
Portuguesa, das ilhas, forte, rechonchuda e muito amiga de conversar. Teria trinta anos, era viúva, com três filhos: o mais velho já encaminhado numa oficina de encadernador; o imediato morando com a madrinha em Belém, e o mais novo, que ainda mal se agüentava nas pernas, acompanhava para onde ela ia.
— Não! que isto de crianças, quando estão pequenas, as mães devem aturá-las! como não?
Diziam que fora sempre mulher de bons costumes, e com efeito parecia, ao menos pela cara. Muito risonha, corada, dentes claros e olhos castanhos, um pouco recaídos para o lado de fora com uma natural expressão de lástima, que aliás não perturbava em nada a alegre vivacidade da sua fisionomia. Tinha papadas, e fazia roscas no cachaço; uma penugem de fruta na polpa do queixo e dois pincéis de aquarelas nos cantos da boca. Quando andava tremiam-lhe os quadris como imensos limões de cheiro feitos de borracha.
Logo às primeiras palavras que ela trocou com Magdá mostrou-lhe simpatia. É que era justamente uma dessas criaturas vindas ao mundo para cuidar de doentes; naturezas que só amam deveras àquelas a quem devem muitas canseiras; que só amam depois de grandes sacrifícios; depois de muita noite perdida e muito sono interrompido. Nascera enfermeira, nascera para os fracos; gostava de encarregar-se de crianças e, quanto mais achacadinhas fossem estas tanto melhor. Os raquíticos, os aleijados, eram gente da sua predileção. Com o leite do seu último pequeno criara um fedelho, que estava morre-não-morre quando lhe foi parar às mãos; pois ela, depois de salvar-lhe a vida, a custo de longos meses de desvelo sem descanso, tomou-lhe tal carinho que o queria mais do que ao próprio filho, um maroto este, forte e sadio como um bezerro. "Um coisinha ruim! afirmava sorrindo.— Não há mal que lhe entre! Nunca vi! — nem chora, o brutinho, Deus me perdoe!"
Magdá quis saber onde é que ela estivera até então empregada; qual a casa donde vinha.
— Em parte alguma, não senhora. Morava com a tia Zefa ali mesmo defronte, naquela casinha de duas janelas com entrada pela estalagem.
— Que gente vem a ser essa?
— A tia Zefa é filha da velha Custódia; lavadeiras, como não? Vem já de trás estas amizades! Nós, por bem dizer, fomos criados pela tia Zefa; foi de lá que eu saí para casar, e minha mana, a Rosinha, vosmecê não conhece, essa ainda mora com ela.
— Ah! tem uma irmã...
— Então! Muito mais nova do que eu. Solteira, mas já tem o seu noivo. Não é por ser minha irmã, porém é uma rapariga que se pode ver! O Luiz...
— Bem, bem! Você então traz um filho em sua companhia!
— Ora coitado! Não há de incomodar... E, se se fizer tolo, carrego-o logo lá pra defronte, que a velha é perdida por ele. Se o é! Dá-lhe um tudo! Não viu vosmecê aquele chapeuzinho de pluma com que ele veio ontem? Pois quem foi que o deu? Foi ela!
E riu-se toda.
— Bem, bem, trate de ir buscar o que é seu e tome conta desse quarto aí ao pé, porque, não sei se sabe, você tem de fazer-me companhia à noite. Ando muito doente e às vezes é preciso que me dêem o remédio, compreende?
— Como não, minhalma? Pode vosmecê ficar descansada por esse lado, que esta que aqui está não lhe dará razões de queixa!
E já parecia radiante com aquela expectativa de ter uma enferma à sua guarda. Uma enferma nas condições da filha do Conselheiro era o seu ideal. E, por cima de tudo, "bom ordenado, comida com fartura, seu copo de vinho ao jantar e daí até, quem sabe? talvez seu vestidinho de vez em quando..."
— Não há dúvida, foi um bom achado!
Um achado! Ela é que foi um bom achado para Magdá. Esta nunca houvera tido criada tão alegre, tão amorosa e tão diligente no serviço..
Além do que: muito sã, muito limpa e muito séria. Perto daquela figura socada, de carne esperta e luzente, a pobre senhora ainda parecia mais magra e mais pálida; gostava, porém, de senti-la ao seu lado, aquecer-se naquele calor de saúde, parasitar um pouco daquele húmus ressumbrante de seiva, sorver aquela forte exalação sanguínea de fêmea refeita e bem adubada.
Nunca entravam em confidências e palestras, que a orgulhosa filha do Conselheiro não dava para essas coisas; mas a mesquinha enferma gostava de deitar-se sobre um tapete no chão, defronte da janela do quarto, a aí ficar, cismando nos seus tédios, com a cabeça pousada no morno e carnudo regaço da criada. Às vezes adormecia assim e então abraçava-se com ela e enterrava o rosto entre as almofadas dos seus peitos, respirando com um regalo inconsciente de criança que já não mama, mas ainda gosta de sentir ao pegar no sono a calentura do colo materno.
Em breve, a Justina era tão indispensável para Magdá, quanto uma ama a um orfãozinho recém-nascido. A infeliz moça passava assim muito melhor; conseguia ficar com algumas coisas no estômago e tinha certa regularidade no sono. Um dia, em que a rapariga lhe pediu licença para ir a Belém ver o filhinho que estava à morte, ela quase teve um ataque, tal foi a sua contrariedade.
— É por pouco tempo... esclareceu aquela — Eu volto logo. Três ou quatro, quando muito; de mais deixo uma outra no meu lugar...
Foi, sempre foi, mas à senhora tanto custou a sua ausência que jurou nunca mais consentir que de novo se separassem. Ficou nervosa e impertinente que causava pena. Veio-lhe outra vez a mania das rezas, voltaram-lhe os monólogos à meia voz e os sobressaltos sem causa aparente.
— Maldito pequeno! lembrar-se de cair doente! e logo agora!
A Justina demorou-se mais do que contava. Uma semana depois da sua partida Magdá, que não havia comparecido ao almoço, fez voltar o lanche das duas da tarde, que o pai lhe mandara levar ao quarto.
— Não me aborreça! Gritou ela à substituta da Justina; uma sujeita alta, ossuda, de nariz comprido e mal encarada. Cheirava a morrinha de cachorro, Magdá não a podia ver.
— Saia daqui! Não ouviu?
A mulher observou com a sua voz grossa e compassada:
— O senhor disse para a senhora não deixar de tomar ao menos o caldo, que foi temperado por ele.
— Papai que me deixe em paz! Ponha-se lá fora! Ponha-se lá fora!
A criada saiu, tesa que nem um granadeiro, a resmungar com a bandeja nas mãos; e Magdá fechou a porta sobre ela, com estrondoso ímpeto, atirando-se depois no divã e sacudindo a cabeça como se estivesse sufocada.
— Que gente, meu Deus! Que gente!
E levou uma boa hora a fitar um só ponto, com os olhos apertados e as sobrancelhas franzidas e mais retorcidas que um recamo japonês. Ergueu-se afinal, inteiriçada num espreguiçamento suspirado e longo, deu em seguida alguns passos indolentes pela alcova, tomou um resto de leite frio que havia numa xícara sobre a mesa, e encaminhou-se sonambulamente para a janela. Aí encostou o rosto entre os dois varões da grade e segurou-se com as mãos nos outros que ficavam mais próximos.
— Ah!... respirou, igual ao cego que obtém, depois de grandes esforços, chegar ao ponto que deseja. E olhou à toa para os fundos do céu que se estendiam lá por detrás do horizonte. E seu olhar errou pelo espaço, perdido como andorinha doida a que roubassem o ninho, percorrendo inquieta e tonta, de um só vôo, léguas e léguas de azul, até ir afinal cair prostrada, de asas bambas, no cimo da pedreira que lhe enfrontava com a janela.
Prendeu-lhe toda a atenção o que se passava ali; os trabalhadores suspendiam por instante o serviço, alvoroçados com a chegada de uma raparigona que lhes levava o jantar. Que alegria! A cachopa era sem dúvida mulher de um deles, o mais alto e mais barbado, porque ela, mal soltou no chão o cesto de comida, lhe arrumou uma carícia de gado grosso um murro nos rins, e retraiu-se logo, a rir, toda arrepiada, esperando que o macho correspondesse. Este cascalhou uma risada de gozo alvar e ferrou-lhe na anca a sua mão bruta de cavoqueiro, tão escrostada e escamosa, que se não podia abrir de todo. Depois; acercaram-se de um pedaço de pedra, em que a mulher foi depondo o que trouxera na cesta; e de cócoras, ao lado uns dos outros, puseram-se todos a comer sofregamente, no meio de muito rir e palavrear de boca cheia.
Magdá, sem conseguir escutar o que eles tanto conversavam, não lhes tirava os olhos de cima, profundamente entretida em ver aquilo. E, coisa estranha, em tal momento daria de bom grado os melhores diamantes que possuía para ter ali um pouco do que eles comiam lá no alto da pedreira com tamanha vontade. Ela, que já não podia sofrer os imaginosos acepipes da mesa de seu pai, sentia vir-lhe água à boca pela comida dos trabalhadores, e até parece incrível, tinhas desejos de beber da mesma garrafa em que eles bebiam pelo gargalo, fazendo questão para que nenhum lograsse ao outro.
No dia seguinte, justamente àquelas horas, apresentou-se ao pai, já vestida e pronta para sair.
— Bravo! Exclamou o Conselheiro, surpreendido pela novidade — Bravo! muito bem!
E marcou apressado a página do livro que estava lendo e, como se temesse que a filha mudasse de resolução, correu logo a buscar o chapéu e a bengala. "Ora até que enfim aquela preguiçosa se resolvia a passear!"
Quando se achavam na rua, Magdá foi tomando a direção da pedreira; o pai acompanhou-a sem proferir palavra. Só pararam lá perto.
O morro, com as suas entranhas já muito à mostra, arrojava-se para o céu, como um gigante de pedra violentado pela dor; via-se-lhe o âmago cinzento reverberar à luz do sol, que parecia estar doendo. E enormes avalanches de granito, ruídas e arremessadas pela explosão da pólvora, acavalavam-se em ciam à base da rocha, lembrando estranha cachoeira que houvera-se petrificado de súbito. Cá em baixo, daqui e dali, ouviam-se retinir ainda o picão e o macete, e lá no alto, no escalavrado cume do penhasco, quatro homens, agarrados com todos os dedos a um imenso furão de ferro, abriam penosamente uma nova mina no granito, gemendo em tom monótono e arrastando uma toada lúgubre.
De cada vez que eles suspendiam a formidável barra de ferro para deixarem-na cair novamente dentro do furo, recomeçava o choro lamentoso que, de tão triste, parecia uma súplica religiosa.
— Vamos lá?... propôs Magdá ao pai, depois de admirar de perto aquele monstro que ela contemplava todos os dias da janela gradeada do seu quarto.
— Onde, minha filha?... perguntou o Conselheiro, sem ânimo de acreditar no que ouvia.
— Lá em cima, onde aqueles homens estão brocando a pedra. Quero ver aquilo.
— Estás sonhando, ou me supões tão louco que consinta em tal temeridade? Esta pedreira é muito alta!
— Não faz mal...
— Sentirás vertigens antes de chegar ao fim!
— Mas eu quero ir!
— Deixa-te disso.
— Ora que me hão de contrariar em tudo!
— É que é uma imprudência sem nome o que desejas fazer, minha filha!
Já amuada, soltou-se do braço do pai e correu para os lados por onde se subia à montanha.
— Espera aí! gritou o velho tentando alcançá-la! espera aí, caprichosa! Eu te acompanho!
A caprichosa havia galgado o primeiro lance de pedra.
A subida foi penosa.
Ah! o caminho era muito estreito, irregular e coberto de calhaus. O pé às vezes não encontrava resistência, porque o cascalho rodava debaixo dele.
Mas subiam. Magdá, sem querer dar parte de fraca, segurava-se arquejante ao braço do pai; este mesmo, porém, sabe Deus com que heroísmo conseguia não perder o equilíbrio.
— Vamos adiante! Vamos adiante! Dizia ela, quase sem fôlego.
— Descansemos um pouco, minha filha.
Não, ela não descansaria, enquanto não alcançasse o morro. Felizmente o caminho em cima era quase plano e com pequeno esforço chegava-se daí ao lugar onde trabalhavam os quatro homens. Mais um arranco, e lá estariam.
Afinal conseguiram chegar. Mas, ah! quando a pobre Magdá, toda trêmula e exausta de forças, já no tope da pedreira, defrontou com o pavoroso abismo debaixo de seus pés, soltou um grito rápido, fechou os olhos, e teria caído para trás, se o Conselheiro não lhe acode tão a tempo.
— Magdá, minha filha! Então! então!
Ela não respondeu.
— Está aí! está aí o que eu receava! Lembrar-se do subir a estas alturas!... E agora a volta...?
— Pode voscência ficar tranqüilo por esse lado, arriscou um dos cavoqueiros, que se havia aproximado, a coçar a cabeça. — Se voscência quiser, eu cá estou para por esta senhora lá em baixo, sem que lhe aconteça a ela a menor lástima.
— Ainda bem! respondeu S. Ex. com um suspiro de desabafo.
O trabalhador que se ofereceu para conduzir Magdá era um mocó de vinte e tantos anos, vigoroso e belo de força. Estava nu da cintura para cima e a riqueza dos seus músculos, bronzeados pelo sol, patenteava-se livremente com uma independência de estátua. Os cabelos, empastados de suor e pó de pedra, caíram-lhe sobre a testa e sobre o pescoço, dando-lhe uma satírica feição de sensualidade ingênua.
— Vamos! Vamos! Apressou o Conselheiro, entregando-lhe a filha.
O rapaz passou um dos braços na cintura de Magdá e com o outro a suspendeu de mansinho pelas curvas dos joelhos, chamando-a toda contra o seu largo peito nu. Ela soltou um longo suspiro e, na inconsciência da síncope, deixou pender molemente a cabeça sobre o ombro do cavoqueiro. E, seguidos de perto pelo velho, lá se foram os dois, abraçados, descendo, pé ante pé, a íngreme irregularidade do caminho.
Era preciso toda atenção e muito cuidado para não rolarem juntos; o moço fazia prodígios de agilidade e de força para se equilibrar com Magdá nos braços. De vez em quando, nos solavancos mais fortes, o pálido e frio rosto da filha do Conselheiro roçava na cara esfogueada do trabalhador e tingia-se logo em cor de rosa, como se lhe houvera roubado das faces uma gota daquele sangue vermelho e quente. Ela afinal teve um dobrado respirar de quem acorda, e entreabriu com volúpia os olhos. Não perguntou onde estava, nem indagou quem a conduzia; apenas esticou nervosamente os músculos num espreguiçamento de gozo e estreitou-se em seguida ao peito do rapaz, unindo-se bem contra ele, cingindo-lhe os braços em volta do pescoço com a avidez de quem se apega nos travesseiros aquecidos para continuar um sono gostoso e reparador. E caiu depois num fundo entorpecimento, bambeando as pálpebras; os olhos em branco, as narinas e os seios ofegantes; os lábios secos e despregados, mostrando a brancura dos dentes. Achava-se muito bem no tépido aconchego daquele corpo de homem; toda ela se penetrava do calor vivificante que vinha dele; toda ela aspirava, até pelos poros, a vida forte daquela vigorosa e boa carnadura, criada ao ar livre e quotidianamente enriquecida pelo trabalho braçal e pelo pródigo sol americano. Aquele calor de carne sã era uma esmola atirada à fome do seu miserável sangue.
E Magdá, sentindo no rosto o resfolegar ardente e acelerado do cavoqueiro, e nas carnes macias da garganta o roçagar das barbas dele, ásperas e mal tratadas, gemia e suspirava baixinho como se estivesse a acarinhá-la depois de longa e assanhada pugna de amor.
Quando o moço, já em baixo, a depôs num banco de pedra que ali havia, a enferma abriu de todo os olhos, deixou escapar um grito e cobriu logo o rosto com as mãos. Agora não podia encarar com aquele homem de corpo nu que ali estava de fronte dela, a tirar com os punhos o suor que lhe escorria em bagas pela testa.
Chorou de pejo.
O seu pudor e o seu orgulho revoltaram-se, sem que ela soubesse determinar a razão porque. Uma cólera repentina, um sôfrego desejo de vingança, enchiam-lhe a garganta com um novelo de soluços. O pranto parecia sufocá-la quando rebentou.
— Eu maguei-a, ó patroazinha?... perguntou o trabalhador, com humildade, quase sem poder vencer ainda o cansaço. E o imprudente tocou com a mão no ombro de Magdá, procurando, coitado, dar-lhe a perceber o quanto estava consumido por vê-la chorar daquele modo. Ela estremeceu toda e fugiu com o corpo, nem que se houvessem chegado um ferro em brasa; e abraçou-se ao pai, escondendo no peito deste os soluços que agora borbotavam sem intermitência.
O pobre cavoqueiro, ainda com o peito para cima e para baixo, quedava-se a olhar para os dois com uma cara palerma de desgosto. E assim que ele fazia o menor movimento de corpo, a senhora retraía-se assustada e enterrava mais a cabeça entre os braços do Conselheiro. Foi preciso que este o afastasse dali, dizendo-lhe que lhe aparecesse logo mais em casa para receber uma gorjeta.
Mal se pilhou no quarto, Magdá foi estraçalhando as roupas, como se as trouxera incendiadas; mas sentia também nos seus cabelos, no seu rosto, em toda ela, o mesmo cheiro de animal suado, o mesmo enjoativo bodum de carne crua. Parecia-lhe mais — que a sua própria transpiração já tresandava àquele mesmo fartum do mocó da pedreira.
— Diabo! diabo! diabo!
E os movimentos que fazia par sacar a camisa eram tão violentos, que ela parecia querer arrancar até a própria pele do corpo.
Um mal querer desnorteado, contra tudo e contra todos, apoderou-se do seu espírito. Estava furiosa e mais ainda por não saber contra quem e contra o que.
Não podia queixar-se a ninguém, nem de ninguém, e sentia-se no entanto ofendida, ultrajada, no seu orgulho e no seu pudor. A vontade que tinha era de mandar matar no mesmo instante aquele maldito homem — para nunca mais o ver, para nunca mais o sentir.
Só depois de muito bem lavada e coberta de perfumes, recolheu-se à cama, ainda estrangulada de raiva. Também, foi só adormecer e começou logo a sonhar com o amaldiçoado cavoqueiro.