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O Homem/VII

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A mudança estava marcada para daí a quinze dias. Iriam refugiar-se na Tijuca, num casarão, que o Conselheiro possuía para essa bandas. Sobrado muito antigo e de aparência tristonha, todo enterrado no fundo de uma chácara, enorme e destratada, que em alguns pontos até aprecia mato virgem. Janelas quase quadradas; paredes denegridas pela chuva e pelo tempo; nas grades da escadaria principal heras e parasitas grimpavam livremente; as trapoerabas cobriam os degraus e alastravam por toda a parte; e lá no alto, à beira desdentada do telhado, habitava uma república de andorinhas.

Para chegar à casa, tinha-se de atravessar uma longa e tenebrosa alameda de mangueiras, que começava logo no portão da entrada e se ia estendendo por ali acima lúgrebe como um caminho de cemitério. Era triste aquilo com os seus altos muros de pedra e cal, pesados, cobertos de limo, e transbordantes de copas de árvores velhas. O casarão, olhado pelas costas ou pelo franco esquerdo, deixava-se ver em toda a sua grosseira imponência, porque dava esses lados para a rua, fazendo esquina com as suas próprias paredes. Metia aflição entrar lá; um pavoroso silêncio de igreja abandonada enchia os enormes quartos nus e enxovalhados de pó; um ar frio e encanado, como o ar de corredores de claustro, enregelava e oprimia o coração naqueles longos aposentos sem vida. Tudo aquilo transpirava cheiro de velhice, cheiro de moléstia; sentia-se a friagem da morte e a fedentina úmida das catacumbas.

O Conselheiro, porém, mandou correr uma limpeza geral na casa; fez ir para lá os móveis e objetos necessários; e, uma bela tarde, meteu-se afinal num landeau com a filha e mais a velha Camila e abandonaram Botafogo.

Foram com o carro fechado até certa altura do caminho, porque Magdá, de tão incomodada que passara a noite da véspera, não tivera ânimo de por outra roupa e apenas enfiara um sobretudo de casimira e agasalhara a cabeça e o pescoço com uma saída de baile.

Chegaram pouco antes do crepúsculo. O sol acabara de retirar-se, mas a terra ainda palpitava na luz. As aves iam-se chegando aos seus penates; toda a natureza se aninhava para dormir; só as vadias das cigarras continuavam espertas, a cantar, fazendo sobressair o seu interminável lá menor dentre os pacatos bocejos da mata que se espreguiçava ali mesmo, a dois passos da casa, tranqüila e submissa somo um animal doméstico. Magdá sentiu-se ternamente impressionada pelo taciturno aspecto do casarão que, lá naquelas alturas, se lhe afigurava um velho mosteiro ignorado. A circunstância da hora também contribuiu para isso; aquela hora sem dono, que não pertence ao dia nem à noite — era dela; chamou-a a si, como se recolhesse um enjeitado, e tomou-lhe carinho. Era o momento predileto para as suas concentrações e para seus êxtases: em tudo descobria a essa hora o carpir de uma saudade; cada moita de verdura ou cada grupo de árvores tinha para a filha do Conselheiro suspiros e queixumes de amor. Parecia-lhe a terra, nesse lamentoso e supremo instante em que o sol morre, se vestia de luto e chorava a perda do esposo que além se afogava, em pleno horizonte, atirando-lhe de longe os seus últimos beijos de fogo. Magdá ouvia então os abafados soluços da viúva e sentia-lhe o frio orvalhar do pranto.

— Bem, minha filha, vamos para cima, que já cai sereno.

Ela havia escolhido para seus aposentos uma sala e dois cômodos do andar superior. O quarto da cama era quadrado, muito singelo, uma verdadeira cela, em que o inseparável crucifixo de marfim assentava ao ponto de impressionar; tinha uma só janela, essa mesma gradeada de ferro e sem vista, porque ficava justamente de fronte de uma grande pedreira em exploração. O Conselheiro teve de contrariar a filha para dar a estas salas um pouco de conforto e elegância.

— Para que? dizia ela, não é preciso! em qualquer parte a gente vive e morre...

Como estava transformada! Ainda assim notava-se-lhe nas maneiras a mesma correção fidalga e nos gestos a fina escolha e apurada sobriedade, que dantes a distinguiam tanto entre as suas amigas. D. Camila foi também para o andar de cima, fazendo-se acompanhar por uma corte de santos de várias espécies, tamanhos e virtudes. Além dos escravos, levaram apenas uma criada branca, para tratar de Magdá.

Instalados, o Conselheiro tomou um homem para arranjar o jardim e ocupou os seus negros na reparação da chácara, acompanhando ele próprio o serviço, na esperança de despertar igual desejo no ânimo da filha.

Mas qual! Ela, desde o momento que se enterrou ali, parecia até mais desanimada, mais triste e metida consigo. Agora dava para não ir à mesa e fechar-se no quarto, comendo pedacinhos de pão de instante a instante, roendo queijo seco, chupando frutas ácidas e mastigando goiabas verdes. E sempre a cismar.

O pai embalde protestava contra isto; embalde lhe dizia que ela estava-se preparando para uma séria irritação do estômago; embalde queria arrastá-la par a mesa nas horas da comida; embalde lembrava passeios pela manhã ou ao cair da tarde, a pé, a cavalo, de carro, como ela escolhesse. Era tudo inútil: Magdá continuava agarrada ao quarto — cismando.

— Então, ao menos, que acordasse mais cedo, fosse para baixo conversar com ele na chácara; tomar leite mungido na ocasião; ver o pombal que se estava fazendo; dar uma vista-d’olhos pelo galinheiro e pela horta.

Magdá prometia, resmungava: — Que sim, que sim, porque não? Do outro dia em diante estaria de pé logo ao amanhecer!

Mas, no dia seguinte, quando iam chamá-la ao quarto, à uma hora da tarde, respondia de mau humor:

— Deixem-me em paz! Oh!

— Nesse caso vamos de novo para Botafogo! Exclamou afinal o Conselheiro, perdendo a paciência. — Eu, se vim enfurnar-me aqui, foi na esperança de fazer-te mudar de regime e com isso alcançar-te algumas melhoras! Vejo, porém, que é muito pior a emenda que o soneto!

Ela teve um tremor de músculos, e ficou muito impressionada com o tom quase áspero que o pai pusera nestas palavras.

— Não sei que desejam de mim!... disse.

— Desejo que fiques boa. Aí tens tu, o que desejo!...

— Só parece que julgam que me faço doente para contrariar os outros! Se estivesse em minhas mãos, seria mais agradável a todos; não me ponho melhor e bem disposta, porque não posso!...

— Está bom, está bom, balbuciou o Conselheiro, acarinhando-a, arrependido por não ter sido tão amável desta vez como das outras. — Não vás agora afligir-te com o que eu disse... Aquilo não teve a intenção de magoar-te...

Ela prosseguiu em tom infeliz e ressentido: — Se vim para cá, foi porque me trouxeram... não reclamei nada... Não me queixei de coisa alguma... Sinto-me aqui perfeitamente... dou-me até muito bem, e só peço e suplico que não me contrariem; que me deixem em paz pelo amor de Deus; que não me apoquentem; que...

Vieram os soluços e Magdá principiou a excitar-se.

— Então, minha filha, que tolice é essa?

— É que eu não posso ouvir falar assim comigo!... bem sabem que estou nervosa! bem sabem que estou doente!

— Sim, sim, tens razão... Passou! Passou!

E o Conselheiro, deveras surpreso com aquelas esquisitices da filha, espantado por vê-la fazer-se tão humilde, tão coitadinha, puxou-a brandamente para junto de si e afagou-a como se estivesse a consolar uma criança.

— Acabou! Acabou!

Magdá chorava com a cabeça pousada no colo dele.

— Então, então, não te mortifiques... Aqui ninguém faz senão o que for do teu gosto... Vamos, não chores desse modo...

Qual! o resultado foi passar pior esse dia e aumentarem as suas rabugices no dia imediato; — Que desejava morrer! — Acabar logo com aquela miserável existência! Que ali todos já estavam fartos de a suportar! Que todos se aborreciam com ela e procuravam meios e modos de contrariá-la, só para ver se a despachavam mais depressa! Que bem quisera recolher-se a um convento, mas não lhe deixaram! Pois antes tivessem consentido, porque agora até a própria criada parecia fazer-lhe um grande obséquio, quando era obrigada a ter um pouco mais de trabalho com ela.

No fim de contas apareceu-lhe de novo a tal febre de caráter especial; agora, porém, com delírios e movimentos luxuriosos, sobrevindo uma profunda letargia, contra a qual eram inúteis todos os recursos do médico.

Parecia morta. No fim de longas horas de esforços, o Dr. Lobão, já desesperado, teve, a contra gosto, de aceitar o conselho de um colega ainda moço e de idéias modernas — a compressão do ovário.

Efeito pronto: Magdá tornou a si depois da operação, livre já das impertinências e infantis rabugices, que tivera antes da febre. Voltara à sua habitual gravidade, às suas maneiras austeras de fidalga enferma; mas começou a sentir-se vagamente magoada nos melindres do seu pudor: queria parecer-lhe adivinhava que, durante a inconsciência da sua anestesia, o insolente do médico a devassara toda; sentia ainda nos lugares mais vergonhosos do corpo a impressão de mãos estranhas que os apalparam e comprimiram. E a idéia de que alguém a vira descomposta e que lhe tocara nas carnes, revoltou-a como imperdoável ultraje feita à sua honra e ao seu orgulho de mulher pura. Todavia não se achava com coragem de interrogar ninguém a esse respeito, e, foi tal o seu vexame, que a infeliz escondeu-se no quarto, a chorar de acanhamento e raiva.

— Oh! exclamou o doutor, enquanto o Conselheiro lhe deu conta disto: — Eu punha-a esperta e sã em pouco tempo, se me dessem carta branca para isso! A questão dependia toda do enfermeiro que lhe arranjasse! Aquelas lamúrias e aquelas lágrimas ir-se-iam logo embora com a primeira semana de lua de mel!

No entanto, Magdá continuava a sofrer: a tosse não a deixava senão quando ela se recolhia à cama; deitada não tossia nunca, mas, em compensação, aparecia-lhe uma espécie de asma. Agora, uma das suas manias era pôr-se à janela do quarto e aí permanecer horas e horas esquecidas, a ver o serviço da pedreira que ficava defronte, olhando muito entretida para os cavoqueiros, e ouvindo a toada que eles gemem quando estão minando a rocha para lhe tocar fogo. Parecia gostar de ver os trabalhadores; como se lhe aprazia aquela rica exibição de músculos tesos que saltavam com o peso do macete e do furão de ferro, e daqueles corpos nus e suados, que reluziam ao sol como se fossem de bronze polido.

E, quando alguém ia chamá-la para a mesa ou para conversar com o pai, respondia zangada, sem tirar os olhos da pedreira:

— Não posso ir! Deixem-me!

E se insistiam: — Ó senhores, que maçada! Não posso ir, já disse! Estou doente! Oh!

Depois do ataque de letargia, foram voltando pouco a pouco s esquisitices de gênio e os caprichos de crianças estragadas com mimos; quase nunca se desprendia do quarto e, nas poucas vezes que lhe surgia por lá alguma camarada dos bons tempos, por tal modo se mostrava seca e até grosseira, que a amiga tratava de abreviar a visita e saía sem a menor intenção de voltar.

Nem mesmo a própria criada queria já suportá-la, apesar de muito bem paga. "Pois não! Era uma impertinência todo dia! um rapelão por dá cá aquela palha! — Se a gente não ia logo correndo saber o que serrazina queria quando chamava — tome sarabanda! — Oh! Insuportável! Uma verdadeira fúria! De mais a mais a "barata velha" ultimamente também dera para ficar pior, e havia quase duas semanas que se não desgrudava da cama nem à mão de Deus Padre!"

Pobre velha! Consumia-se numa infernal complicação de moléstias; eram intestinos, era cabeça, eram pernas, era o diabo! Parecia uma decomposição em vida: fedia como coisa podre! Já se não alimentava pela boca; os seus gemidos eram arrotos de ovo choco, e os humores que ela expelia por toda a parte do corpo empesteavam a casa inteira.

— Essa não tem mais que esperar! declarou bem alto o Dr. Lobão, olhando-a desdenhosamente por cima dos óculos, como se a mísera fosse já um defunto e não pudera ouvir-lhe a desumana profecia. — Está despachada! A consumpção deu-lhe cabo do canastro!

Metia dó. Veio uma velhinha, sua camarada de muitos anos, ajudá-la a morrer, e consigo trouxe duas escravas, especialistas em servir a enfermos desenganados, porque a senhora tinha mania de acompanhar os últimos instantes de todas as amigas que se iam antes dela. A casa parecia um hospital: sentia-se cheiro de enfermaria e andavam todos sarapantados, cheios de terror pela morte; de manhã à noite faziam-se rezas em torno do doente. O Conselheiro quis que a filha se afastasse daquele espetáculo e fosse passar algum tempo em outra parte; Magdá opôs-se de pé firme e deixou-se ficar ao lado da tia, rezando com tamanho empenho que fazia crer que só com seus esforços contava para salvar-lhe a alma.

O médico dissera a verdade: quatro dias depois da sentença lavrada por ele, D. Camila pediu um padre, muito aflita. Era já a morte que pegava de agoniá-la.

Correu-se a chamar Nosso-Pai.

Não veio logo; e a moribunda, como quem está com o pé no estribo para uma longa viagem e arrisca a partir sem levar um objeto que lhe há de fazer muita falta em caminho, remexia inquieta a cabeça sobre os travesseiros, lançando contínuos olhares de impaciência para a porta do quarto.

O Viático demorava-se.

O Conselheiro ia de vez em quando até a janela de uma das salas que davam para a rua e passeava ansioso pelo segundo andar.

— Chegou! Disse por fim, retornando ao aposento da irmã.

Houve uma enternecida agitação. Ouviu-se o toque de uma campainha ecoando nos corredores da casa, e a velha Camila teve um suspiro de alívio. — Já não partiria sem a sua extrema unção!

O padre entrou com os ajudantes, muito cerimonioso debaixo do pálio, agasalhando a hóstia consagrada junto ao peito, com os cuidados de quem traz uma vasilha cheia até as bordas e não quer entorná-la. Fez-se em redor dele e da paciente respeitoso silêncio; apenas se ouviam, além dos roncos da moribunda, a voz abafada do sacerdote, que resmungava numa alternativa de sussurros, ora mais alto, ora mais baixo, sem fazer pausas, como se estivesse contando intermináveis algarismos.

A cerimônia durou pouco e, quando o religioso se retirou com a sua comitiva, a velha parecia tranqüila, nem que houvesse tomado um milagroso remédio de efeito imediato. Magdá, por detrás dos pés da cama, orava, ajoelhada defronte de uma mesinha coberta por alva toalha de rendas sobre a qual um crucifixo, entre duas velas de cera que ardiam com pequenos estalinhos secos; tinha os olhos muito abertos e postos sobre a imagem do Crucificado, transbordando lágrimas que lhe rolavam silenciosas pela face; as mãos cruzadas sobre o peito numa postura de êxtases. O Conselheiro puxou uma cadeira para junto do leito da irmã e assentou-se, colocando a sua mão direita por debaixo do úmido crânio da agonizante; esta começou a agitar-se de novo nos travesseiros. Então, a velhinha amiga dela ajoelhou-se do lado oposto e obrigou-a a segurar nos dedos já sem vida uma das velas, que acabava de tirar de cima da mesa, e pôs-se a rezar em voz baixa. Camila rouquejava gemidos que iam se transformando num pigarro contínuo; as suas pupilas estavam já imóveis e veladas; escolhia-lhe das ventas e da boca aberta, como um buraco feito na cara, uma grossa mucosidade esverdinhada e fedentinosa. Assim levou algum tempo, arquejando; até que afinal a respiração lhe foi aos poucos amortecendo na garganta, e até que os olhos espremeram a última lágrima e os pulmões sopraram o derradeiro fôlego.

Nessa ocasião, Magdá acabava de levantar-se e marcava compassos de música com o dedo sobre a mesinha, dançando com o corpo de um para o outro lado, numa cadência inalterável, em tirar a ponta dos pés do mesmo lugar e movendo os calcanhares suspensos do chão.

— Um! dois! — Um! dois! — Um! dois!

Era um novo ataque de coréia.