O Livro de Esopo/O lobo e o cão nedio

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XL. [O lobo e o cão nedio]

[Fl. 28B-v.][P]om o poeta este emxemplo por noso amoestramento, e diz que andando hũu lobo sseu camynho, encontrou com hũu cam. Ho lobo ho ssaudou e mostrou-lhe boo ssenbramte, e disse que queria ser sseu companheyro. O cam disse que lhe prazia d’elo muyto.

Andando anbos de companha, o lobo compeçou de olhar o cam, e disse-lhe:

— Como tu estás guordo e fremoso?!

Ho cam lhe rrespondeo:

— Porque de noute eu guardo a casa de hũu senhor com que viuo, e non leixo acheguar a ella nhũu[1] ladrom. E por tamto meu senhor me ama muyto, e dá-me de comer e de beber quanto me faz mester.

Diz o lobo:

— Eu me quero vĩjr com tiguo[2], porque me faças poer na graça do teu ssenhor.

O cam disse que lhe prazia d’ello muyto.

Amdando assy anbos, o llobo esguardou e vio que o cam avia o pescoço pelado, e preguntou-lhe[3] por que avia o pescoço pelado. O cam lhe disse que o sseu senhor o tijnha leguado o dya porque nom mordesse a gemte, e aa noute ho leixaua andar ssolto, por lhe guardar a casa. Quando o lobo ouuyo que legauam o cam de dia, disse:

— Nom quero hir com tiguo. A mym praz mays viuer em mynha liberdade e comer[4] mall, que bem comer e sseer /[Fl. 29-r.] sempre seruo.

E loguo sse partio do cam.

E este emxempllo sse concorda com este vesso que diz: Ne ssyt alterius[5].




Diz este poeta per este emxemplo, querendo-nos amaestrar, que o homem proue que viue em ssua liberdade he mays rrico que o rrico quando viue e he seruo alheo. E o homem que seruo he nom he ssenhor de ssy meesmo, nem he senhor do que tem; ho homem que he em ssua liberdade, e em ella viue, nom póde cobrar ssemelhamte tesouro; e quem seruo sse faz, esperando de sseer rrico, tal como este se póde chamar proue. Ha liberdade nom sse póde comprar por todo o auer do mundo; ha liberdade he hũa graça celestriall, a quall passa todalas rriquezas do mundo.

Notas[editar]

  1. Leia-se nhehũu (ou nem hũu)
  2. No ms. com tiguo em duas palavras.
  3. No ms., por extenso, preguntou, sem a abreviatura usual.
  4. No ms., por engano, comemer, com reduplicação da syllaba.
  5. Tradução do latim: Não sejas (servo) de outro.