O Piolho Viajante/L
Julguei que a cabeça de um vinagreiro era uma cabeça temperada. Tinha ele dado no grande segredo de fazer um vinagre que temperava tudo. E, senão, vejam vossas mercês. Era jogador e temperava este vício com vinagre. Era bêbedo e tornava o vinagre em vinho. Gostava de obsequiar senhoras e o vinagre servia-lhe para isso mesmo. Era preguiçoso e temperava a preguiça com vinagre. E todo este segredo consistia numa bagatela. Por exemplo: perdia uma noite uma moeda ao jogo, vinha muito satisfeito para casa e perguntava ao caixeiro: — Que tal foi a venda de hoje? — Menos má, senhor meu amo. — Bem, qual é a pipa que está mais vazia? —- Tal pipa. — Bom, vai botar-lhe cinco almudes folgados de água. O vinagre vendia-se, por canada, a quatro vinténs, são dois cruzados-novos o almude, cinco almudes fazem uma moeda. Aí estava salva a perda e ainda se ganhava a folga que se tinha mandado dar na água. Noutra ocasião, bebia dez canadas de vinho, que era o segundo vício, vinha para casa muito alegre da sua vida e mandava botar trinta de água, no vinagre. Ei-lo aí sem ter bebido nada nesse dia. Vinha outra hora em que gastava mais dinheiro do que devia: mais água no vinagre. De forma que ele tinha dois poços em casa, tinha mandado fazer uma cisterna para aproveitar a água da chuva e a fábrica estava situada ao pé de um chafariz com cinco bicas a que já ninguém ia beber porque o gasto da água para a fábrica não deixava tempo a ninguém e ali ninguém bebia uma sede de água, nem para molhar o bico, ainda que fosse uma galinha. Por aqui podem vossas mercês conjecturar que tal era o negócio. Sabia fazer um vinagre tão doce que, ainda que se botasse uma canada dele em dez réis de salada, não se percebia. Ultimamente, em sua casa, o chá, o café e os xaropes com que se adoçavam, era com vinagre. De uma pipa de vinagre bem azedo, fazia trinta, doce de tal forma, que vinagre da sua fábrica nunca azedou o estômago a ninguém. Por isso, era muito procurado. A única coisa para que ele não prestava era para conservas. Não conservava nada. A única coisa que conservava era o dono. Também sabia fazer um vinagre de ervas, outro de vaízes, outro com madeira e muitos mais que, a falar verdade, não eram muito bons para a saúde mas vendiam-se bem. Ele, destes, não os botava no seu comer.
Tinha achado no vinagre a pedra filosofal. Em tudo o convertia. Mandava vinagre para lhe vir pão. Mandava vinagre para azeite. Vinagre para carne. Vinagre para fato. Vinagre para dinheiro. Enfim, vinagre para o que quer que fosse, até para quedas era o vinagre bom. Vejam que negócio! Se eu negociasse, era no género em que pegava. Vinagre e petas. Porque vinagre, todo o mundo o bebe e petas todo o mundo as come. Até os mais espertos. Eu, que graças a Deus, não sou dos que tenho mais juízo, tenho pregado os meus ópios menos maus. É certo que também os tenho mamado de bom calibre. O mundo é uma cadeia, vão pegando os fuzis uns nos outros e os homens também enganando uns aos outros. Numa palavra, cada um faz o que pode. Ora eu não estranhava que o meu vinagreiro botasse água no vinagre. É porventura a água alguma porcaria? Mas temos mais que contar neste artigo e vem a ser que não era só o amo que botava água no vinagre. Os criados também faziam a sua obrigação conforme a necessidade que tinham. Abençoada água e abençoado vinagre! É um gosto ter um negócio assim, porque chega a todos, e, no vinagre, é raro o negociante que quebra. O negócio é tal que até dá quebras a quem o vai comprar!
Ia ali uma mulher comprar vinagre para o tornar a vender e trazia um burro consigo. Era um regalo ver as meiguices que ela lhe fazia. Chamava-lhe o seu tudo, que era o seu amparo, que o estimava como se fosse seu irmão. Indagado o caso, dizia ela que aquele burro a ajudava a ganhar a vida e, por consequência, o seu sustento, havia mais de sete anos, sem nunca ter tido uma dor de cabeça, nem uma só vez cair, de modo que lhe entornasse a carga. Andava sempre com ele na rua, carregado com dois odres em cima do espinhaço, os quais nunca trazia vazios. Porque, mal vendia de algum deles três canadas deitava-lhe outro tanto de água do primeiro chafariz que encontrava. E o burro já estava tão acostumado a este estilo que, passando por sítio onde sentisse correr água, logo parava e olhava para a dona, como quem lhe dizia e aconselhava que aproveitasse aquela aguinha para vender. Depois de tudo isto apareceu um homem que ainda era mais inteligente no negócio pois que todo o vinagre de que tenho agora falado, era tirado de vinho mas o tal de novo aparecido fazia-o logo de seu princípio com água. Dava-lhe duas fervuras, punha-a depois a esfriar, fazia-lhe não sei que tratos e ei-la aí vinagre em pessoa, sem que ninguém tivesse que lhe dizer. Em algum também lhe botava água salgada que isso não achava eu muito mau, porque ficava logo de uma vez o comer com sal e vinagre. Ora, a respeito de consciência, também era limpíssima. Parecia-se muito com aqueles que vendem galão fino e que, se acaso lhes pedem que botem mais um bocadinho, dão mais um ou dois palmos. Porque, como se há-de pesar, não tem perigo a liberalidade. Assim era o tal no vinagre. Se lhe diziam: — Meça bem, senhor fulano, acabava de fazer a medida e botava depois um ou dois goles, a olho, razão por que lhe acudia muita freguesia e cada vez Nosso Senhor o ia ajudando mais com a sua água.
Por fim, entrou também no intento de acrescentar o azeite com água e deu na descoberta por este meio: encheu até meio, meia dúzia de pipas e acabou de as encher com água. Vendeu-as a um estrangeiro, o qual provou e viu primeiro o azeite, mas foi por este modo: abriram-se as pipas por cima, pelo batoque e como a água descia abaixo e o azeite vinha ao de cima, provaram-no e não se deu pela falta. Nem creio que o mesmo estrangeiro daria por ela senão depois que, acabado o azeite, desse com a água. Mas isto não são coisas que estejam mal. São chistes de negócio e mesmo não sei que haja razão que mande o contrário. Se não é proibido botar-se água no vinagre, porque não se há-de botar no azeite? E, demais, a água bota-se em tudo, bota-se no comer, bota-se no estômago, bota-se nos craveiros e até se bota na rua. O outro dia, ou, para melhor dizer, a outra noite, pela volta das onze, me botaram a mim uma pouca que nem eu quis indagar se era só. A água em tudo faz bem, o caso está em que seja botada a tempo. Porque, fora de tempo, nada de bom. Também me esquecia de dizer que o meu vinagreiro era casado e tinha cinco filhos, três machos e duas fêmeas. Era alguma coisa rezingueiro e, muitas vezes, não estava pelos ajustes com os filhos acerca do que eles lhe pediam. E que faziam os rapazes? Pilhavam-no fora, saltavam-lhe no vinagre, vendiam-lho e a falta ficava suprida também com água. Ali não havia vinagre que pudesse servir a um Mouro. Todo era baptizado. Parece-me que já é bastante teima falar na água que se botava no vinagre. Mas também é certo que tudo quanto tenho dito a esse respeito é a pura verdade e que não ponho nada da minha casa. Antes eu deixo de contar algumas coisas. Mas também, se não as conto, é porque me parece impossível para que vossas mercês as cressem. Se eu lhes dissesse, porventura, que lhe botavam pimentões, vossas mercês haviam de crê-lo? Não. Se eu lhes dissesse que lhe botavam raiz de quássia, macela e limão azedo, haviam vossas mercês de julgar que era verdade? Não. Se lhes dissesse que lhe botavam azedas, cinza, sêmeas fervidas, não haviam de dizer que era uma grande mentira? Sim. Pois então antes não o quero dizer e guardá-lo para mim. Saibam-no vossas mercês, lá por onde quiserem mas não o saibam porque eu o disse. Botassem o que botassem, nem isso me pertence a mim nem a ninguém. Eu, ao que me propus, foi contar que o homem vendia vinagre e que lhe botava água. Lá como o vendia, nem como o fazia, não é da minha conta nem da conta de ninguém. Fazia-o como podia e vendia-o da mesma forma. Tomara muita gente sabê-lo fazer para o vender. Ganhar a vida nunca pareceu mal, antes muito bem. Antes ter que dar que ter de pedir. Os preguiçosos, quase sempre, são os que dizem mal porque, como não querem trabalhar, aborrece-lhes ver os outros luzidos. Não sucede assim aos aguçosos que gostam de ver todo o mundo ocupado e a moleza é só o que lhes aborrece. Aqui estou eu, no meu ser de piolho, que não passo o meu tempo ocioso porque trabalho de corpo e de espírito: de corpo, para poder passar a vida, escolhendo o melhor passadio o que, às vezes, custa muito bem; de espírito, porque sempre é preciso andar cuidando no modo de escapar que não se seja apanhado. É rara a noite que durmo sossegado. Uma pequena volta que dê a cabeça, onde eu estou, logo estou acordado, parecendo-me que sou apanhado. Porque há criaturas que sempre estão com a mão, ou na boca ou na cabeça e há tactos de mil demónios. Há amigo que, em levando a mão à cabeça, vai buscar o lugar onde lhe morde com tanta certeza que, muitas vezes, pilha o pobre piolho que não é senhor de si. Por isso, eu tenho muito cuidado de nunca me pôr na raiz do cabelo. Sempre firmo os pés em cabelo e dali mordo, porque sucedendo, por minha desgraça, porem-me a mão em cima, como há o embaraço do cabelo, este enleio dos dois dedos, dos cabelos e do piolho dá tempo a uma escapatória. Assim me tenho eu salvado muitas e muitas vezes.
O meu vinagreiro era tão má rês que, quase sempre adormecia com a mão na cabeça e, por duas vezes, me teve pilhado. De uma pôs-me o dedo em cima, deixou-se ficar assim, e chamou uma filha para que lhe viesse tirar aquele piolho. O que me valeu foi ser isto a uma janela e, defronte, morar um sujeito que gostava da rapariga e a quem ela dizia que sim. De forma que, em vez de olhar para a cabeça do Pai, apenas se viu na janela, não fez mais que olhar para defronte e fingia que estava procurando o piolho. Mas, assim mesmo, sempre me deu incómodo, porque, como ela gostava de estar ali por amor da janela, e o pai gostava que o catassem, demorou-se mais de uma hora a mexer na cabeça e eu, pelo sim pelo não, estava com todo o cuidado porque podia haver um descuido num abrir e fechar de olhos e eu, já se sabe, se lhe caísse nas unhas, era morte certa. Ali não havia apelação nem agravo. Ainda ela pilhou três dos meus companheiros e de um tive eu muita pena, porque era um bom piolho e deixou uma família ao desamparo que também poucos dias depois foi apanhada e passou pela mesma sorte. Cheguei a estar só e mais outro companheiro, perto de cinco meses. Mas, por isso mesmo, que éramos poucos, éramos mais procurados e eu tratava com toda a diligência de sair dali. Mas queria uma cabeça capaz e ocasião própria para o poder fazer. Ali, pelo sítio, andava um sujeito que servia de caturra ou bobo, mas andava por casa de gentes capazes. E, estando eu com gosto de conhecer esta cabeça a fundo, proporcionou-se-me uma bela ocasião. Era uma festa de arraial onde o meu vinagreiro ficou, ombro com ombro, com o caturra. Não fiz demora alguma na passagem e, na cabeça do dito, vai a carapuça LI.