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O Piolho Viajante/LIX

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Este arrieiro, para onde eu passei, dava-lhe seu amo todos os dias oito vinténs e ele, só de vinho bebia três tostões. Porque, no meu tempo, estava a canada a dois tostões e ele, sempre, pelo menos, bebia canada e meia, não sendo freguês desse dia taful que, a sê-lo, então era bebedeira redonda e cabeleira de nós. Coisa de retorno nunca o amo soube o que isso era. Ainda que ele viesse de Madrid, nunca tinha achado na estrada quem lhe desse um cruzado-novo por duas horas de assento. Se pilhava cruzado-novo, falso, embutia-o ao amo que também pouco se lhe dava porque o passava adiante. Por mais um cruzado-novo de gorjeta não tinha dúvida de matar uma parelha ao amo, a correr nela. Mas se via que o freguês era dos ramerrões, também se punha ao ramerrão. Chegava a andar em tal sorna que houve freguês que se pôs a pé, só por não aturar os três amigos. Que todos três pareciam que estavam apostados a apurar a paciência do alugador. E se ralhavam com ele sem lhe darem dinheiro, tinha o método de dar com o chicote nas bestas de forma que fazendo muito estrondo não lhes chegava o açoite e, então, virava-se com todo o descanso para o que ia dentro e lhe dizia: — Que quer vossa mercê que eu lhe faça? As bestas andam trabalhadas, mal comidas e eu igualmente. Se puxo por elas, eu e elas caímos.

Agora se o homem, em lugar de razões lhe punha dinheiro na palma da mão, e lhe pedia ao mesmo tempo que fosse mais depressa, isso então era outro cantar. Então sabiam elas andar e ele beber. Mas, coitado! Bem amargurado ganhava o dinheiro! Que sóis que não pilhava e que chuvas não mamava! O vinho, porém, era remédio para ambas as coisas! Estava já tudo tão acostumado a vinho que até as bestas, em chegando à porta de taberna conhecida, logo paravam e, sem lhes darem bucha não passavam adiante. Havia bestinha que já mamava a sua canada de vinho como um homem. Não lhe faltava senão pedi-lo por boca. Mas dava sinal com os pés. Ora o arrieiro, também para besta pouco lhe faltava. Se lhe pusessem as mãos no chão e um rabo postiço, enganava todo o mundo. Não conhecia senão dinheiro e vinho. Se falava, sempre dizia arre e se queria entreter-se em alguma coisa, quando não tinha que fazer, pegava no chicote para dar estalos. Mas nisso não havia muito de que o notar porque muita gente boa se entretém assim e não lhe fica mal. Na traseira ninguém se lhe punha. Era o flagelo dos rapazes. Tinha tomado ressaibo com eles e não estava mais na sua mão. Tinha ocasião em que sem ser o Maduro[1], punha-se três e quatro vezes a pé. Coisa de lhe entrarem três pessoas na sege não entendia. Só se avultavam a paga, porque como ele não consentia em nada de mais sem primeiro lhe darem dinheiro. Nunca freguês nenhum ouviu uma risada da sua boca antes de lhe dar a gorjeta. Tinha risos para diferentes preços e mau era quando ele botava a viseira abaixo, que então não dava mais um passo adiante. Com o chicotinho na mão era um desavergonhado suficientemente bom. Não virava as costas, ainda que muitas vezes, por amor desse pundonor, lhas moeram do que eu não ficava contente porque receava alguma remessa pela cabeça e eu sempre tive medo de morrer, não sei o porquê. Por amor destas e doutras, resolvi-me a procurar minha vida. Tinha muito por onde escolher porque, de quantos andavam na sege, eu tinha ocasião de lhes ir à cabeça. Por isso quis escolher à minha vontade e passei para a cabeça de um mordomo que governava uma casa abastada. E é a

Notas

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  1. Maduro era um pobre homem que, sem saber picaria nem a arte de tourear, se propunha a ir fazê-lo para ganhar algum vintém, e que sempre estava pronto para se pôr a pé a tomar duelo ao toiro, cada vez que o povo o mandava. E ficou como provérbio o dizer-se: A pé, Maduro! [N. do A.]