O Piolho Viajante/LVIII
O meu tempo tinha duas seges de aluguer e quatro machos. E logo depois da minha chegada comprou uma parelha de cavalos por três moedas e meia. A um deles faltava-lhe um bocado da mão esquerda e o outro era doido. Mas o meu amigo pô-lo manso como um borrego, porque logo o pôs à sexta parte da ração e eu vim no conhecimento de que a fraqueza tira muita fúria aos doidos. O que tinha um bocado de mão a menos, vendeu ele a um principiante de cavalos por oito moedas e ainda que o comprador lhe reparou no defeito, ele capacitou-o de que era um cavalo de lição e que aquilo não era coxear, eram curvetas que fazia. Tinha lábia para um homem! Era capaz de enganar um Santo e fazer-lhe um milagre. E é certo que no meu tempo, cavalo que doente lhe caía na mão, sempre o vendia são ou, ao menos, por são, que vale quase o mesmo. Comprou, uma ocasião, um cavalo por três cruzados-novos que daí a dois dias alugou por dezasseis tostões. Vejam que indústria para saber negociar! Comprou uma parelha de machos por quarenta moedas, deu em desconto um burro por trinta mil réis, umas fivelas de pedras, para calções, por catorze mil réis, duas pistolas de algibeira por cinco moedas e o resto em dinheiro. E daí a oito dias vendeu-a a um sujeito, que gostava de comprar fiado ainda que fosse mais caro, por oitenta e cinco moedas. Deu-lhe logo quarenta e cinco em dinheiro e ficou-lhe devendo quarenta que, é certo, nunca lhas pagou. Mas sempre lhas estava devendo e ele já tinha ganho no gancho duas vezes. Tudo quer génio. Para negociar em bestas é preciso nascer com propensão para elas, e este, certamente, era um deles. Tinha génio e natureza. As seges, ele mesmo é que as borrava. Ração, sempre as bestas a comiam pela sua mão. E, se havia furto, era ele mesmo que lha furtava. Era tão bom homem que ninguém negociava com ele que lhe não ficasse devendo. Apesar disso, ele não fazia negócio em que não ganhasse. Tinha um faro a respeito de alugadores de sege que era uma coisa admirável. Nunca alugou sege a pessoa que a precisasse para negócio porque estes, dizia ele, nunca dão mais taxa. Nada, eu quero estes amigos de Domingo que só alugam seges para correr e que não se lhes dá o darem a sua peça. Destes que o ganham sem o ganhar. Enganei-me. Eu queria dizer que o gastam sem o ganhar. Destes que saindo o dono do dinheiro a pé, embrulhado no seu capote, a ir tomar o sol, saem eles na sege a todo o trote e não lhes escapa feira nem senhora. E é assim que ele fazia o seu negócio e fazia muito bem. Quem é tolo, pede a Deus que o mate. Nada de somitigarias. Quem pode, é justo que rode, pois a gente há-de distinguir-se. Não basta um pobre homem estar toda uma semana feito escravo e, se alguma vez sai fora, é fraca sola, para, ao menos, ao Domingo, mostrar que é gente e que sabe o que é tratamento. E as bestinhas já estavam tão acostumadas a esta casta de gente que lhes botavam uns olhos que, se os pudessem pilhar com os dentes, haviam de lhe dar os agradecimentos.
Então que alma tinha este homem quando lhe morria alguma besta! Morreram-lhe, numa semana, três cavalos que lhe tinham custado, todos, doze mil réis. Pois ficou muito senhor de si e disse: — Morreram? É porque estavam vivos. Muitas vezes, de onde se não esperam as coisas daí é que saem.
Quando levava algum cavalo à feira, para vender, sempre julgava que tinha mal venéreo, porque sempre lhe dava primeiro com azougue o que lhe fazia muito bem porque sempre depois disso os vi ficar muito espertos. E ainda eu não conto tudo quanto ele fazia. Mas são coisas muito sabidas porque o negócio também está muito divulgado e já todo o mundo o sabe, porque há muito quem entenda de bestas, pois já todos querem ter em que andar. E com razão, que os caminhos estão muito compridos e os pés mais delicados. Depois que já não há sapatos de vira não se pode pôr os pés no chão. Tenho dado conta desta cabeça e vou agora dar conta de outra, para onde passei e que andava numa das seges e faz a Carapuça.