O Piolho Viajante/LXII

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Num homem com casa de jogo raramente se encontra uma conduta tão igual. O seu dinheiro era de todos. Havia, por exemplo, uma roda de trinta-e-um em que jogavam oito pessoas e cada parceiro tinha meia moeda. Ele não tirava senão dez réis de cada vez que entravam, de três para cima e, em bolo empatado, um vintém. E enquanto os empates se dobravam, tirava ele dobrado. Este era simplesmente o seu ganho.

Acabava-se o dinheiro a um dos parceiros, chegava-se a ele a pedir-lhe dois pintos ou um quartinho. Nunca se negava. A isto a sua bolsa estava aberta. Quando chegava a noite tinha ele tirado quatro moedas de barato, que vinha a ser o dinheiro de todos e estavam-lhe os parceiros todos a dever. Um, dois cruzados-novos, outro três, outro quatro, etc. Eis aqui como ele regulava a sua casa. Coisa de jogo proibido não o consentia. Só se era muito às escondidas para fazer a vontade aos parceiros. Se era banca, de cada cartada havia-lhe o banqueiro dar uma de doze. E se era jogo de dados, a quarta parte da parada. E dizia ele: — Sabem vossas mercês porque eu lhes tiro tanto? Para ver se lhes tiro o vício. E mesmo pelo perigo que há, e o dinheiro a risco deve render mais.

Levava os seus trinta réis por cada partida de bilhar, isto é, sendo de dlia, porque de noite era meio tostão. E este joguinho era o que fazia capa aos outros. Tinha os seus dois tabuleiros de gamão. Um deles estava arrendado por dois ginjas que apenas engoliam o bocado estavam com ele a contas. Eram ambos de cabeleira. Um deles, que era o mais baixo, tinha a cabeça do tamanho de uma melancia de Abrantes, destas que custam a cruzado-novo. E o outro, mais alto, tinha uma cabeça do tamanho de uma melancia de dez réis. Lembro isto porque quero contar uma história que lhes sucedeu uma tarde. Estavam eles jogando e um deles jogou seis e dois em lugar de seis e três que tinha botado. O outro parceiro não emendou o lance, porque lhe convinha o erro. O outro botou e deu-lhe na tábua. Então o que tinha jogado errado, quis emendar o lance e este não consentiu. Descompuseram-se, passaram às mãos, esbofetearam-se, em cujas bulhas foram as cabeleiras de ambos à casa. Foram acomodados pelos circunstantes que tanto trabalharam que os reconciliaram ao ponto de tornarem a jogar. Feitas as pazes, foi cada um buscar a sua cabeleira mas, infelizmente, pegaram nelas trocadas, porque a raiva do jogo ainda não estava bem dissipada. Puseram as cabeleiras na cabeça e ficaram galantes. O que tinha a cabeça grande, ficou-lhe a cabeleira pequena no alto da cabeça. O que tinha a cabeça pequena, ficou-lhe a cabeleira tapando as orelhas e parte das faces. E assim se puseram a jogar, sem nenhum dar pela falta nem pelo sobejo. Todo o mundo estava parado para os dois velhos. Mas eles tão encarniçados estavam que se despediram à noite e foram com as cabeleiras trocadas para casa e não deram por tal. O primeiro que deu pela história foi o que tinha a cabeça grande porque, como a noite estava fria, e a maior parte da cabeça ficava fora da cabeleira, dava-lhe o vento pelas orelhas e caiu então no caso. Remediou-se, porém, essa noite com uma cabeleira que comprou numa taverna de um vizinho, que lhe serviu até ao outro dia em que desfizeram a troca.

A tal casinha de jogo dava-lhe para tudo. Pagava as casas, pagava dois moços, tirava despesas, comprava sebo para untar as mãos a alguém que quisesse agarrar os fregueses para que lhe escorregassem. Tratava da sua casa, cumpria com todas as suas obrigações e ainda acudia a uma devoção diária em que gastava bons tostões. Grande ofício! O que eu não sei é como lho consentem por ser muito rendoso. É ofício que se pode repartir por três ou quatro indivíduos e todos sustentarem as suas casas às mil maravilhas. Então este amigo até deixava jogar em casa com pau de dois bicos e era o jogo que ele jogava com todos os parceiros. Não sabia outro nem lhe era preciso. E há por aí tanta gente vadia havendo negócio tão bom para o qual não se precisa nem mercê, nem encarte, nem aprendê-lo e sendo mesmo ou melhor que ir às minas, porque lá, muitas vezes, o veio de ouro acaba mas cá esta é inesgotável. Rende conforme o dono precisa de dinheiro aquele dia e come-se bem e do melhor. E a respeito de beber não se fica atrás de ninguém. É quanto a vasilha leve. E, então uma horda de amigos verdadeiros, porque largam o que têm e alguns até furtam para o ir ali dar! Mas ao dono da casa não lhe pertence lá indagar se é furtado ou não o que jogam. Ele não há-de ir perguntar a cada um per si: — Vossemecê furtou o dinheiro que traz? E até era arriscar-se a darem-lhe muita bofetada. Ele, que o joga, é porque o tem, é porque é seu e ele que é seu é porque o adquiriu.

Tinha que ver se nós andávamos a perguntar uns aos outros: — Donde lhe vem a vossemecê o dinheiro? Se alguém lhe pertence procurar isso, procure-o, e não cada um que tem cá o seu ofício. E, demais a mais, que habilidade faço eu se tenho quatrocentos mil réis de renda, gastar quatrocentos mil réis? Habilidade é eu gastar três mil cruzados tendo só um. Aqui é que está o busílis! Mas isto não é para todos, é cá reservado para os alquimistas do dinheiro alheio.

Tenho dado conta do que rende o joguinho. Agora vou a contar de uma casa de pasto que é para a cabeça para onde passei pois a cabeça aonde eu estava ia todos os dias encher o estômago a casa do seu amigo e, uma noite que eles tomaram a camoeca, fui-lhe ao casco e é a