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O Piolho Viajante/LXIX

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Depois da cabeça do tendeiro é esta uma das melhores em que tenho andado. Era muito mais rico do que o dono da quinta. Frutinha e hortaliça boa que ela desse, não via outra barriga senão a sua e a da sua família. E dizia ele que não tinha de que se confessar, que para isso a trabalhava e que todos, neste mundo, quando nasceram, lhes coube a sua porção de terra; e que ela não pertencia a quem por ela tinha dado ouro, mas sim àquele que com o seu suor a regava. E que muito favor fazia ele em dar alguma coisa ao dono. E ninguém o tirava deste cálculo. Tudo repartia irmãmente. De uma moeda que fizesse em nabos, dava metade ao amo e não queria, no fim do mês, mais que o seu ordenado e algum fatinho velho. Quando muito, umas botas. E, já se sabe, pelos tempos próprios, a consoada, o pão-por-Deus e as suas amêndoas. No vinho, então é que ele era mais exacto porque todo o dinheiro que fazia nele dava-o ao amo. Só tirava para si aquele que bebia e alguma gota para algum amigo. No ano em que lhe estive na cabeça, fez vinte e seis pipas. Deu uma ao dízimo, outra que veio para casa do dono e ainda vendeu pipa e meia. O resto bebeu-se. Mas não se aproveitou nem de cinco réis e deu neste ano muito pouco aos amigos. Enganava-os com água-pé.

Havia duas juntas de bois em casa, nos quais ele tinha tanto cuidado e desvelo que, para não estarem sobrepostos, trazia umas terras de renda. E eram as primeiras que se lavravam para, ao depois, se lavrarem as do dono com mais descanso. E a semente era toda da casa. A colheita é que era à parte porque o celeiro da quinta era pequeno. Para que o amo comesse sempre galinhas tenras, fazia ele uma coisa muito galante. Tinha as suas galinhas à parte e quando depois de chocas lhe tiravam pintos, tudo que era franguinhas trocava ele com as galinhas velhas do patrão de forma que as suas galinhas nunca acabavam de criar os pintos.

Todas as semanas dava na conta ao amo um homem de mais no trabalho. Dizia ele que por cautela, para que o amo não dissesse que todos achavam quem lhe trabalhasse nas suas quintas, só ele não, pagando tão bem. Quando entrou para caseiro, pediu quatro mil réis emprestados para comprar umas botas. No fim de três meses já tinha quatro pares e um burro para andar a cavalo, que lhe chamavam o chibante e tinha-lhe custado sete moedas. Se a quinta fosse sua, certamente que pouco mais lhe renderia. Eu, a ser o dono, quereria trocar os ganhos. Isso é verdade, eu bem vejo que tudo devia ao seu trabalho porque se ele a não amanhasse tão bem, também se não amanharia da forma como se amanhava. E apesar de tudo isto, o dono morria por ele porque dizia, nos seus cantares, que depois que tinha aquele moço é que a quinta lhe rendia mais. Vejam que tais seriam os outros!

Naquele sítio faziam muito mais caso do caseiro do que do dono. Mas não é só nesta qualidade de criados que se vê isto. Quantos e quantos podem e valem mais do que os amos! Um conheci eu que, por sinal, era casado com uma rapariga bem galante. Pois quem quisesse conseguir alguma coisa do amo, havia primeiro de dirigir-se ao criado. E se o intentava de outra forma, perdia o tempo. Mas que lhaneza lhe mostrava o amo! Ia muitas vezes e muitas noites passar com ele, ao seu quarto, para jogarem e tomarem chá. Não havia diferença nenhuma entre um e outro. E se o criado alguma vez ia fora da terra a alguma cobrança, não lhe faltava nada em sua casa, que o amo tinha tanto cuidado nela como na sua, ou mais, se se pode dizer.

Este bom caseiro morreu de um coice que lhe deu o mesmo seu burro. E eu já andava alguma coisa zangado por ver que não ia a cabeça que não adoecesse e algumas morriam.

Confesso a verdade, que tive algumas tentações de passar para a cabeça do burro que lhe tinha dado o coice. O que me fez mudar de projecto foi o lembrar-me que a pele do burro devia ser tão dura que, primeiro que eu lhe chupasse alguma coisa, quebraria todos os dentes. Resolvi-me então a passar para a cabeça de um contratador de vinhos que morava ali perto e que tinha vindo fazer uma visita ao defunto e é a