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O Piolho Viajante/LXV

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Que infelicidade! O Médico era outro Doutor Sangrado, só com a diferença da aplicação dos remédios. Bem me custa dizer mal, mas paciência, não há outro remédio. O homem merece-o. A verdade, manda Deus que se diga. O geral está primeiro que o particular e o meu próximo clama por este beneficio. Apareça pois o indivíduo. Fosse ele melhor, se não queria que lhe dissessem as faltas. Estudasse. Não se desse à mandriice. Fizesse por distinguir-se como aqueles que queimaram as pestanas, ainda que muitos não ficaram sabendo nada porque as queimaram caindo-lhe sobre a luz com sono. Não cuidem vossas mercês que só se queimam lendo. Eu tenho visto arder coisas que nunca leram. Outro dia queimei eu a cabeça de um dedo.

Mas a tal cabeça não tem juízo nenhum e deixemo-nos de jogos de palavras que sou capaz de ficar nisto toda a vida. Vamos à Carapuça. Juro a vossas mercês que é das que mais me custa a fazer, que sempre é dizer mal de um homem que traz a vida das gentes nas mãos e que por dá cá aquela palha se pode vingar. Basta que carregue a mão à dose para pôr uma pessoa com os olhos fechados por uma eternidade. Ainda que este, de quem eu vou falar, não era vingativo. Material era ele, essa é a verdade, mas tinha muito bom coração. O que lhe não custou a ele familiarizar-se com a morte! Quando por erro punha alguém no outro mundo, chorava muito particularmente aquela desgraça e continuava no mesmo porque não tinha outro remédio. É muito certo que para uns viverem precisa-se que outros morram. Também era muito infeliz, porque fazia-lhe a diligência e mesmo não era mau de todo. No que ele não tinha ainda conhecimento perfeito era de febres. Não sabia lá diferençar se era maligna, se era retenção de urinas. Sabia que ter febre era estar doente e isto não era tão pouco. Ao menos, era muito acautelado, e dizia ele que neste artigo antes de mais que de menos. Ouviu dizer uma ocasião a um seu companheiro, que passava por um dos melhores, que era bom esperar vinte e quatro horas a ver o que a febre determinava e ele, depois que ouviu isto, sempre esperou três dias. Desgraçadamente, alguns doentes se lhe foram embora no fim deles, mas não era porque ele não esperasse. Apesar disso, posso assegurar que este era um dos melhores remédios que ele tinha, porque o doente a quem ele receitava, podia o coveiro fazer conta com a cova, e daqueles a quem ele esperava a determinação da febre, melhoraram muitos. Não usava de água quente, como o Doutor Sangrado, mas a todos mandou beber vinho e todos gostavam dele, e tinha que fazer porque os seus remédios não eram maus de levar e eram-lhe muito mais obrigados os taberneiros. Com os seus doentes não usava de sangria. Contentava-se em os sangrar na bolsa e dizia, muito contente: — É mais fácil criar dinheiro que sangue. Tirar sangue é tirar a vida e tirar o dinheiro, é tirar os vícios, causa original de muitas doenças.

Nunca estudou por letra redonda e até havia quem dissesse que ele a não entendia. Mas era mentira porque eu o ouvi muitas vezes ler a Arte de Amar, de Ovídio, e Orlando Furioso. E sabia de cor o Ax,bu. Não, mentiras não consinto. O que for mau hei-de dizê-lo, mas também levantar testemunhos não hei-de consentir, nem ele os precisa que temos muito por onde escolher. No que ele enganava muito era na prosa. Com a ponta da língua ninguém curava melhor do que ele. Era belo para cão. Vê-lo entrar por uma casa dentro, era ver um Esculápio vestido de saúde. Tinha feito um compasso com os beiços que, de palavra a palavra, media o mesmo espaço. Vê-lo desembrulhar uma doença desde o seu primeiro sintoma, com palavras próprias e movimentos de decidir sem ter para onde apelar, era uma consolação. Parecia mesmo a doença em pessoa que se estava acusando. Depois, passava a expor os perigos e logo a receitar. Parava no meio da receita e tornava a observar o doente, perguntando-lhe: — Há-de sentir a boca seca? Dói-lhe alguma coisa a barriga das pernas? Sente um moimento no corpo? A água não lhe sabe bem? Amarga-lhe a boca? &c. O doente respondia que sim, ao que ele tornava:

— Não precisa que mo diga que, pelo chumbado da cara, vejo o estado do corpo. Aposto que até lhe tem aborrecido o tabaco, não é assim?

— Sim senhor.

— Ora pois console-se que, abaixo de Deus, tem quem o possa remediar. Esta qualidade de moléstias é o meu forte. Louve a Deus que acertou. Não é para me gabar, mas para estas doencinhas tenho dedo. Poucos me escapam que os não cure.

Este era o modo de falar do meu doutor se via só mulheres em casa. Mas se havia homem de olho vivo, tomava outro tom e vinha a ser:

— Guarde Deus a vossa mercê! Há Médico assistente?

Sim ou não lhe respondiam. Se havia, logo dizia: — Eu nada digo sem o assistente. Se o não havia: — Não posso tomar conta do doente. Fica-me muito longe. Já me custa o encher as minhas obrigações e é-me impossível acudir a tudo.

— Senhor Doutor, acudia o mais interessado na saúde do doente, (parecendo-lhe que tinha diante quem era capaz de fazer milagres), pode vossa mercê alugar sege todas as vezes que quiser vir. Pagar-se-ão as visitas à boca do cofre. E se o doente melhorar, dar-lhe-á tudo o que quiser e nós tivermos.

Então mudava de tom o meu Galeno.

— Farei os esforços que puder. Eu desejo fazer bem a todo o mundo. Não é o dinheiro que me eleva, apesar de que sem ele se não pode passar e um homem, que só pensa na saúde dos outros, é preciso os outros cuidem na sua subsistência, pois que a sua cabeça só pode e deve estar sobre os livros. Vamos ver o doente.

Chegava à cama, fazia uma cortesia a quem lhe chegava a cadeira perguntava ao doente: — Como está? Vejam para que era esta pergunta? Como se ele estivesse bom havia de mandá-lo chamar. Que asno era o tal Doutor! O doente explicava-se do modo que podia. E ele trava em ar de Mylord a perguntar e a mandar: — Bote a língua de fora! Ponha-se de costas! Respire agora! Dói-lhe alguma coisa? Venha pulso! A natureza diariamente paga a sua pensão? Sente sede? Não tece nada para comer? As noites, passa-as em vigília? Sente pesadelos? A cabeça, dói-lhe toda ou metade? De que lado dorme melhor, esquerdo ou do direito? Tosse quando se vira de algum lado? Os escarros, são corpulentos ou de pequena estatura? Tem reparado se trazem algum raio de sangue? Dê-me outra vez o seu pulso! Sente sempre o mesmo calor, ou para a tarde lhe pesa mais a febre? Diga-me cá! Que cor têm as águas? Assim a modo de chá pouco forte? Ora diga-me mais: a respeito destas doencinhas pertencentes a Vénus tem havido muitas? Há-de ter havido que eu bem o sei! Que idade tem? Teve já alguma maligna? Dê cá outra vez o pulso!

Vejam como não havia a febre estar grande só com o trabalho que o pobre doente tinha tido a responder a tanta coisa. Depois de tudo isto, saía para fora, pedia papel e dizia por entre os dentes: — Está mais adiantado do que pensam! Isto já para se salvar no caso que o doente morresse, porque era esse o costume de quase todos a quem ele tinha a infelicidade de curar. Tinha, então, chavões certos para as doenças. V. g. para Malignas mandava dar limonadas, cataplasmas nas mãos, vinagre nas fontes, nada de dieta porque ele tinha para si que a fome é que matava. Nada de ar novo na casa, porque, dizia ele e dizia com muita razão: — O ar novo livra muitas vezes o doente e salva a família de se lhe pegar a doença. O que não tem o ar velho, que muitas vexes uma maligna agarra a família toda e leva a sua roda de sete ou oito numa semana e, no fim, trasladam-se os corpos para a Misericórdia e os bens para casa do Médico e ninguém pode estranhar. Que procura cada um que lhe renda o ofício.

Para sezões, não usava de Quina nem de vomitórios. Se era tempo de fruta, recomendava que comesse muita e que fosse verde, que as sezões eram como a nódoa da amora que se tira com o sumo da mesma e que a experiência lhe tinha mostrado que as sezões eram como as crianças: quanto mais mimos lhes faziam, mais teimosas eram. Para tísicas, tinha remédio especial. Nada de fora da terra! Tomar fumo de carvão de pedra, andar muito, e ar de Inglaterra que, segundo ele, era o melhor para esta moléstia. Para moléstias venéreas, cabelo do mesmo cão!, que era com que ele se tinha achado bom. Icterícia amarela, curava-a ele num minuto com a despesa de dois vinténs de carmim que mandava pôr na cara aos doentes e adeus amarelidão! Banhos de mar, isso então era a torto e a direito. Contava tantas virtudes da água salgada que um cismático que o ouviu nunca bebeu de outra e morreu inchado dentro de dois meses. Nunca receitou vomitório a ninguém. Dizia ele: — Tomara-se-lhe eu meter alguma coisa no estômago, quanto mais tirar-lho! Nada, eu não quero fazer experiências nos meus doentes, quero levá-los por caminho direito.

Quando algum doente, por casualidade, lhe escapou das unhas, o que lhe recomendava era que bebesse muito vinho, que não havia nenhum preservativo que chegasse a este e que era raro o bêbado que morria de maligna ou de moléstia contagiosa. Assim mesmo, ganhava rios de dinheiro. Tinha o seu crédito tão bem estabelecido que em um homem casado se querendo desfazer de sua mulher, ou esta de seu marido, ou algum herdeiro que já lhe aborrecia o pai ou tinha tomado ódio a algum tio que lhe deixava chelpa, não chamava outro e o negócio era concluído. Também ninguém perguntava ao Médico porque o tinha matado. A sua certidão era sempre válida, nem presentemente há coisa que tenha mais fé. O caso está em ele dizê-lo e assinar-se. Assim ia vivendo o meu Doutor Cortiça, que é assim que ele se apelidava. Torno a dizer, assim ia vivendo e assim ia matando e o mais é que do que matava é do que vivia. E que consciência tão ajustada que tinha este amigo! Era nada escrupuloso. Tudo remetia à consciência de Deus e nada deixava para a sua justiça. Se o doente melhorava, era obra sua. Se morria, era vontade do Senhor. Destes assim há poucos. Isto era um Médico que tinha nascido feito. Não precisava de estudar. Não era como muitos que para matar um enfermo gastaram primeiro rios de dinheiro ao pai. Cá este não, matava-os sem ter estudado para isso. Tinha mesmo jeito para a coisa. Em faltando a natureza, de pouco ou nada serve a arte. Este tinha um privilégio exclusivo de dar cabo da espécie humana. Se não houvesse destes, haveria amigos que seriam capazes de durar toda a vida. Parecem petrificados. Mas em caindo nas mãos de um destes, então não têm que apelar, é a morte em pessoa que os agarra. Há-de ir à cova infalivelmente, corra o negócio por onde correr. No tempo em que eu estive na cabeça, andava ele ensinando um rapaz a Medicina e então é que eu vim no conhecimento da qualidade de Medicina que ele sabia. Uma das lições que ele lhe dava, era dizer-lhe: — Olha, filho, não se pode ser um perfeito sapateiro por mais habilidade que haja, sem ter primeiro feito muito sapato. O Médico segue o mesmo trilho. Para saber curar uma maligna é preciso primeiro matar muitas dúzias deles e o mesmo nas mais moléstias. É preciso viajar para conhecer o mundo. E para conhecer o interior do homem, é preciso primeiro ter morto muito homem. O Médico é como o carrasco. Em ele dizendo consigo: — Perdoas-me a Morte? — está absolvido. Fez o seu ofício. Como Deus não precisa assinar a sentença, basta que nós digamos que foi ele que o determinou.

Uma das regras que também deves tomar, dizia ele ao discípulo, é dizer poucas palavras, menear mais a cabeça e os olhos do que a língua. As falas do Médico é como o bom carmim, valem o peso do ouro. Outra coisa: nada de rir, sempre um ar pensativo, estar sempre meditante e distraído. Outra rotina certa: se o Pai é rico e a filha é a doente, mandá-la tomar banhos, andar a cavalo em burrinho com a albardinha verde que as encarnadas não provam tão bem. Se o Pai for rico e tiver filho, logo na cara se lhe vê se ele tem vontade que o Pai lhe morra. Se a tem, albarda-se o burro à vontade do seu dono: dar com ele na cova e daqui se tira a grande conveniência. Se o Pai melhorasse, daria talvez quatro moedas, se as desse. Morrendo, dá o filho dez e mais e faz-se bem a muita gente: ao cirieiro, ao coche, ao que cuida no enterro, aos pobres &c., e fazer bem à pobreza não há coisa que lhe chegue. Outra coisa mais: ter sempre dois ou três boticários amigos e mandar para lá todas as receitas porque assim, quando um homem põe na receita alguma asneira, — que nunca faltam —, cala-se o boticário, o que seria muito grande quebra para o estabelecimento de um Médico ir parar às mãos de um que lhe pusesse em pratos limpos as suas materialidades. Ter também sempre na lembrança: — Que quando Deus quer, água fria é mezinha. Ter muito cuidado em fazer diário dos seus doentes, isto é, dos que pagam, e de quanto dão, para se for outra vez chamado para ali, ver se deve lá ir ou não. Porque o ser Médico não é ser criado de ninguém. Para se matar um doente com pressa, basta que se lhe mande misturar em dois grãos de tártaro um vintém de pós de Joanes, porque bá desculpa que dar, no caso que ralhem da morte, que é dizer que o doente tinha lombrigas e que assim como os pós de Joanes matam os bichos, sem matar quem os tem, muito melhor matariam as lombrigas e que da má disposição dos humores do doente não tem o Médico culpa. Uma ajuda de água-forte também faz o mesmo efeito, que assim como há ajudas que ajudam a viver, porque não há-de haver ajudas que ajudem a matar? É preciso saber curar com discrição. Conforme o doente, assim é o remédio e não conforme a doença. Médico que anda a pé também não cura ninguém. Que ande sem sege. É preciso trazer os pés no ar, seja como for, ainda que se ande a cavalo num galego, que é gente que nunca lhe importa a qualidade da carga. Regulam o preço pelo peso, seja carga viva ou morta. Também será muito bom usar de anel, óculo e bengala. Se for chamado a junta, estar sempre pelo voto do que tem mais fama. Contradizer o mais novo, se é pobre. Quanto menos gente houver no ofício, mais há que fazer. Eu tenho, dizia ele, trinta e tantos anos de Medicina. Ainda não fui a uma junta que tivesse dúvidas, mas conheço muitas vezes que a concordância vai matar o doente. Mas antes ele morra que o meu crédito perigue. Há muita gente para viver e créditos custam muito a pilhar. E, demais, não sejam os doentes tolos, saibam-se curar. Se eles toda a vida a conhecerem-se, ainda não sabem a sua natureza, como há-de um pobre Médico, que não os pariu, nem os viu nascer, saber-lhes lá a sua constituição? O ser Médico não é ser adivinhão, é indagar as mazelas de um corpo alheio o qual dono do corpo é tão tolo que as não conhece. E eu sempre ouvi dizer: quem é tolo pede a Deus que o mate.


Estas e outras maneiras eram a forma como o meu Doutor Cortiça ia instruindo o seu educando.

Uma noite chamaram-no com muita pressa para ir acudir a um Ministro que lhe tinha dado uma apoplexia. Mandou-o logo despir, meter na cama e que lhe botassem muita roupa em cima para ver se suava. Dentro de duas horas fez viagem e, dizendo-se-lhe depois que se tinha enganado na cura, respondeu muito fresco: — Quantas vezes se enganaria ele nas sentenças que deu mas ninguém lhe perguntou por isso? Todos erram no seu ofício. Eu cuidei que era uma constipação e ele era um estupor. Então nunca se viu isso? Se foi mau para ele, seria bom para algum pretendente que lhe queria o lugar. Vamos adiante, tudo tem quebra. Também eu hei-de morrer. A algum Médico há-de caber a honra de me matar, que eu não hei-de cá ficar para indez.

Assim fui passando na cabeça deste honrado sujeito e costumei-me tanto com a morte que a via sem horror e dizia comigo: — Isto de ser valente também se aprende ou, ao menos, costuma-se a gente, porque eu, algum dia, tinha medo de tudo e agora vejo morrer gente às carradas e não me assusta isso. Eu bem sei que faz diferença ver morrer os outros ou morrer eu. Mas o hábito não deixa de não endurecer o coração.

E entrei-me a desgostar e a ver se achava ocasião de mudar de cabeça.

Assim me demorei perto de três meses e o meu Doutor não tinha mãos a medir para mandar gente para o outro mundo. Mas isto já vinha de trás, porque o Pai tinha o mesmo ofício, mas não era Médico; era coveiro. E já a Mãe não era assim. O seu ofício era de pôr gente no mundo, porque era uma boa parteira.

Uma ocasião, estando eu bem descuidado, batem à porta. Chegou a criada a saber quem era e veio dar parte que era um homem de capote que procurava o senhor Doutor. Cuidei que matava a criada. — Bota fora esse bêbado! Eu não conheço gente de capote! Já te disse uma e muitas vezes que não quero que se me tragam semelhantes recados.

A criada virou de beiço caído, toda envergonhada, dizer ao homem que seu amo não lhe podia falar naquela ocasião. Mas o homem, que tinha ouvido o recado, retrucou-lhe e disse-lhe: — Vá, vá dizer a seu amo que é aquele sujeito que lhe traz o dinheiro que ele lhe mandou pedir emprestado. Que assim é, que traz capote mas também traz dinheiro.

A criada foi mais animosa e o amo veio buscar o de capote com mil satisfações. Eu estava morrendo por saber que ofício tinha o tal amigo de capote, que tinha dinheiro para emprestar até que, pelo meio da conversa, vim no conhecimento que era um porqueiro que negociava com todo o asseio em porcos e que tinha belos tostões. Então, sem excitar mais razões, fui saindo do meu Doutor Cortiça e passando para o meu porqueiro. E, à despedida, nem olhei para ele. Posso assegurar sem mentira que saí com ódio a esta cabeça, apesar de que foi uma daquelas em que mais tempo vivi. Na do porqueiro também me não demorei muito e do que nele passei vou expor na