O Piolho Viajante/XII

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Este miserável era um dos criminosos que mereciam bem a compaixão dos homens. Era jogador, ladrão, vicioso, enfim um homem depravado. Mas debaixo de todos estes defeitos tinha um coração bem formado.

A sua educação e os seus parentes eram os factores desta obra e eles não tinham perdido um instante de o fazerem desgraçado. Quantas vezes ele, cheio de remorsos, chorava suas culpas em que de novo caía pelo hábito e pela precisão! O que sente remorsos ainda pode levantar-se. Este preso era bem-nascido mas pobre. Os parentes abandonaram-no e para colorirem esta má acção, fizeram o verniz de outra muito pior. Levantaram-lhe testemunhos para se desfazerem dele. Mas nem por isso tinham ânimo, pois com qualquer despesa e preparo que lhe fizessem, por sua vontade mesmo o tirariam diante de si. Mas, não senhor, queriam tudo de graça. E ao miserável, ninguém o ouvia senão outros semelhantes. A sua voz era de burro, que não chega ao alto. Pelo contrário, os parentes opulentos tudo quanto diziam dele era verdade. E diziam todos à boca cheia que o não queriam em casa, que era um ladrão.

O pobre homem, vendo-se sem nada, e com este título e muito acanhado de génio! A educação, tendo sido fraca, e a sua precisão sendo muito forte, entrou a rapinar bagatelas. O ânimo era pouco, a fome muita. Achou sócios, fez número e entrou a passar melhor. Achou nos ladrões mais amor que nos parentes. Começou a embebedar-se, tomou tabaco de fumo, passou a outros vícios e em pouco tempo se fez o homem que diziam. E foi à cadeia.

Eis aqui a cabeça onde passei algum tempo. Estava quase nu, nunca catava a cabeça (nem os presos catam senão o corpo) e é preciso muito cuidado nesta parte, porque até os apanham para os vender. Eu não sei como este pobre homem vivia em tanta indigência, sem cama e sem socorro. A caridade era o seu único refúgio. E todos sabem que este nome de Caridade já está muito gasto, mal se lhe percebem as letras, apesar de que há muito quem faça a caridade. Assim mesmo vivia alegre e exercitava os vícios quanto lhe cabia no possível. Sempre estava a jogar. Preso novo que entrava, nessa mesma noite era roubado para a bebedeira. Mas esta qualidade de furtos entravam no geral. Sabia fazer petições que eram capazes de fazer chorar um seixo.

Pedia esmola à grade, com todos os anexins e galantarias. Uma madrugada, me lembra a mim, que estava ele com o braço estendido pela grade fora, quase chorando, a dizer: — Ora lembre-se deste pobre preso, metido nos ferros de El-Rei, morrendo à pura necessidade, cheio de bichos e misérias, criado para melhor sorte, que Nosso Senhor lhe livre os seus filhos, se os tiver, de tamanha desgraça! Passa um pobre homem de bom coração, que teve dó da perlenga, mete-lhe seis vinténs na mão e vai-se. Ora que lhe há-de dizer este brejeiro? Entra a chamá-lo: — Sio, sio, ah senhor? O tolo do homem olha para trás. E ele pergunta-lhe com todo o descoco: — Onde os furtaste esta noite? Cá te espero com brevidade.

Era deste lote o amigo. E uma peça que ele pregou a um preso novato, alguma coisa cismático? Enquanto ele dormia fez-lhe um refego nas costas da véstia. Acorda o homem e pergunta-lhe logo o maroto: — Tens alguma coisa? — Não, lhe respondeu. — Pois tu estás a modo de inchado. Tens a cara opada.

Entra o homem a apalpar-se. Vai a vestir a véstia. Não lhe chega a abotoar-se e capacita-se que estava inchado. Não comeu dois dias nada de uma ração que lhe vinha de fora, que o outro dava com ela em baixo, até que o desenganaram, por descargo de consciência, porque estava quase doido.

Sabia tudo o que deve saber um preso de enxovia. Sabia furtar, fazer bolsas e tirá-las. Fazia cigarros, vendia tabaco, fazia petições e cartas de amores. Sabia décimas de cor, histórias de arrieiros, toda a qualidade de jogo. Batia com a cabeça na parede, sem lhe doer. Dava bate-cus, fazia meia. Arremedava gota-serena e se houvesse encarte de brejeiro a ninguém pertencia primeiro do que a ele. A única coisa em que falhava era quando contava a sua vida. Dizia a verdade com as lágrimas nos olhos e todo o dia os remorsos o atacavam, até que tornava à mesma. Ultimamente, quase sempre, quando podia, estava bêbado. E eu aborrecia-me o estar numa cabeça que não discorria e andava procurando ocasião de safar-me, até que adoeceu, e mais outros que passaram para a enfermaria. Ele ia encostado com a cabeça ao ombro de um quadrilheiro que o conduzia e para o qual eu passei, ainda que não muito satisfeito, e aí fiz a minha