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O Piolho Viajante/XIII

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Tal cabeça, tal sentença! Triste hora! Antes estar na cabeça de um defunto e ir para baixo da terra ser comido por outros bichos maiores porque já se sabe que o maior papa o menor. O tal amigo era capaz de enforcar o pai e botar o cordão à mãe. Vejam que faria se me apanhasse! Quase posso dizer que não dormi nada todo o tempo que aqui existi e a todos os instantes me julgava morto.

Ele também pouco dormia. Fazia a sua fortuna em beber. Era um dos melhores tonéis do bairro. Tinha muito amigo contrabandista que ele mesmo entregava, quando podia. Era tão destro no agarrar que todos os dias tinha as suas três mãos-postas, ainda que algumas vezes também lhas puseram na cara, do que não fazia caso se, com a outra lhe davam os seus dezasseis tostões. Neste género de oficio era muito capaz. Sucedeu-lhe um caso muito galante.

Pilhou ele uma vez um ratoneiro que se ocupava em apanhar pássaros mansos, assim do tamanho de perus, galinhas, patos, &c. Botou-lhe o cordão, amarra-lhe muito bem o pulso ao seu e vem-no encaminhando para a casa dos pobres onde se abre a porta a todos que querem entrar e mesmo aos que não querem.

O tal ladrãozinho, numa campanha que tinha feito no Pinhal da Azambuja, tinham-lhe cortado uma das mãos bem por cima do pulso, no lugar da qual tinha uma de pau muito bem feita que atava com fitas por cima do cotovelo. Trazia-a sempre calçada com sua luva estufada, de forma que quem a visse não diria que era de pau. A esta mesma mão é que teve o quadrilheiro a desgraça de amarrar à sua. O magano foi metendo a outra mão pelo seio. Desatou as fitas, desembaraçou-se de tudo o que tinha postiço e, de repente, se vê o meu belo quadrilheiro com um grande bofetão e a mão, apartada do corpo de quem lha deu, agarrada à sua.

Se vossas mercês vissem o quadrilheiro a sacudir a mão da sua e a gritar por quantos Santos havia que lhe acudissem, que tinha prendido o diabo e sempre, sem perder tempo, na sacudidela, até que desmaiou. Olhem que não viam um bocadinho de galhofa o mais gostoso! Até que enfim, rodeado de gente, com dois barris de água que lhe tinham botado diferentes pessoas, tornou a si, desembaraçou a sua mão daquela, sempre com tremedelas, e andou mais de quinze dias tão apoquentado que eu mesmo tinha dó dele. Passados tempos melhores vendeu a mão ao dono e foram muito amigos. Que isso tinha ele: não era odiento. Sucederam-lhe os seus fracassos muito bons.

E então, que bom coração! Uma ronda feita por ele, ninguém ia à cadeia. Só se não traziam dinheiro. Que a verdade manda Deus que se diga: ele era tentado com este metal e mais não tinha sido criado com ele. E se algum seu companheiro fazia a sua obrigação, como devia, e lhe era mandado, tinha-lhe raiva e dizia: — Nem tudo se leva à risca. Sim, senhores, isso tinha ele, não era muito amigo da verdade e quem a queria fazia fraco negócio com ele.

Foi uma vez à cadeia por uma coisa bem insignificante. Ele e outro apanharam dois porcos que iam fazendo víspere. O homem que os trazia ajustou com eles que lhes daria um e que lhe deixassem o outro. Aceitaram o partido reparando bem naquele ditado: — Antes uma ruim composição que uma boa demanda. Escolheram o melhor porque o homem ali não tinha voz activa, nem passiva, e ficaram todos menos mal. Mas daqui nasceu a desordem. Meu patrão quis logo a metade que lhe pertencia e o outro queria guardar a sua para o entrudo, que vinha perto. E dizia, com razão, cá ao meu: — Mate você a sua ametade e deixe-me cá a minha que eu a matarei quando muito bem me parecer.

Não quis, houve bulha, soube-se o caso e a causa da contenda. Tomaram-lhes o porco e pregaram com ambos na cadeia (que também não eram muito asseados) onde jazeram os seus quarenta dias, saindo depois com todas as honras e privilégios. E julgo que nunca mais teriam contendas, ainda que fosse sobre a divisão de um mosquito. Também teve um pequeno dissabor por deixar fugir um preso. Mas nisto não só teve ele toda a razão porque o preso, indo preso por nada, deu-lhe alguma coisa. Ora todos gostam que lhe renda o ofício. Isto é uma verdade.

Tinha um cordoeiro muito seu amigo a quem, apesar da amizade, tinha pregado duas vezes na cadeia. E para que o não pregasse terceira, dava-lhe todo o cordel preciso para a sua ocupação. Ainda mesmo que lhe fosse preciso corda para o enforcarem, dava-lha com toda a vontade, só para se ver livre dele. O que é ter amigos, que nada lhe falta! Assim fui vivendo nesta cabeça, se isto se lhe pode chamar viver. Até que uma madrugada prendeu um saloio, que levava com toda a cortesia amarrado, a mostrar-lhe a cadeia. Mas o tal saloio era homem de forças desmedidas e apresentou-lhe uma cabeçada com tanta força que quase todos os piolhos da cabeça do quadrilheiro lhe passaram para a sua, onde eu fui incluído. Ficou o homem tão atordoado que teve tempo o saloio de se desatar e pôr ao fresco. Eu, a pena que tive, foi não lhe ver a cara com que ele ficaria quando tornasse a si e não visse o preso. Mas apesar disso fui-me com toda a vontade para fazer a minha