O Piolho Viajante/XIV
Ora eis aqui me vejo eu na cabeça de um homem curto de nós, cara redonda, cabeça grande, o nariz do tamanho de uma bolota, poucas farripas e muita lêndea, sua camisa lavada e colete encarnado, véstia cor de água-pé, calções de bélbute, ligas encarnadas e umas botas cor de tabaco simonte. Eis aqui o meu adónis. Simples como um, malicioso como trinta. Tinha o seu burro, a sua mula, uma irmã e eu com meus companheiros. E tinha prometido casamento a três vizinhas. Eis aqui a sua família havida e por haver.
Trazia uma horta de renda. Oh, oh, esquecia-me dizer que também tinha um cão que lhe ladrava nela. Tinha uma vinha sua e uma casa de que pagava dois ovos de foro. Depois comprou quatro cabras que lhe davam duas canadas de leite de cujo almoçava ele e mais a sua família. Fazia queijos e vendia três canadas por dia! Criava um porquinho de meias, mas no meu tempo nunca o trouxe com sapatos.
Era tão destro no contar que num quarteirão de tomates, contados cara a cara do comprador, furtava oito. Sabia dar um golpe com um dedinho no braço da balança, que tombava para onde ele queria. Uma pêra podre na sua mão, mostrava-a por todos os lados aos fregueses sem nunca lhe verem a moléstia. Quando vendia laranjas, sempre trazia o seu quarteirão bom para partir e dar à prova dos fregueses. E então o ar com que ele o fazia! Ora prove, prove. Uma laranja não me faz rico nem pobre. São da China! Há-de comprar pior e mais caro! São do ramo! Doces como um torrão de açúcar! A casca é uma folha de papel! É de qualidade sem caroço! Este pomar é regado todos os dias! Enfim, tais perlengas dizia que se livrava de vendedor primeiro que os outros. A sua balda e estribilho certo era dizer a tudo: — Arre para aqui. De forma que falasse a quem falasse, a poucos passos lhe encaixava o arre para aqui, o que, de uma vez, lhe custou umas poucas pauladas.
Sabia tomar uma pitada de tabaco com tal jeito que levava as suas duas oitavas. O caso estava em que a caixa onde ele metia os dedos as tivesse. Vinha duas vezes na semana à cidade e levava tabaco para toda. Nunca bebeu vinho que lhe custasse dinheiro e dizia que uma única vez que o tinha comprado, lhe tinha feito mal. Sabia ler e comprava os seus entremezes que lia na terra, à noite, e juntavam-se-lhe as vizinhas e os vizinhos, de modo que entre eles era um homem de letras e consultado nos casos mais sérios do território. É verdade que tretas tinha-as como ninguém. Tinha o seu par de tostões tesos de forma que já tinha comprado uma casaca e um espadim, para ser compadre de um vizinho seu. E já emprestava os seus dois cruzados-novos aos amigos. Todos os anos ia a uma festa que se fazia ali num lugarejo perto, em que mostrava a sua bizarria. Bailava o fandango trocado, cantava a desgarrada ao desafio que ninguém o desbancava. Tocava a fofa em pontos, na viola. Jogava o pau. Quando queria bem a alguma moça, dava-lhe a sua bofetada e beliscão que lhe fazia vir as lágrimas aos olhos. Enfim, era saloio de tom. Sabia todos os chistes; tinha sido bem-criado. A mãe deu-lhe de mamar três anos. Numa destas funções a que ele era costumado a ir, foi convidado para ver uns toiros e umas comédias. Brincou-se muito e houve ciúmes por amor de uma saloia que não quis bailar senão com ele. Puxaram-se paus e racharam-lhe a cabeça. E eu por uma negra que não fiquei defunto. Mas o que mais se chegou e lhe atou a cabeça foi um cómico das tais comédias que se representavam. Eu, que tinha visto tosquiar todo o lugar da ferida e que tinha ouvido votos que o rapassem, safei-me para o tal Actor e fiz-lhe a minha