O Piolho Viajante/XV

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Era uma cabeça de motim, a tal cabeça, que não dormia nem deixava dormir. Toda a noite era uma gritaria a decorar o papel e a accionar defronte de um espelho. Vejam lá se é preciso, quando há natureza, estar com aqueles preparos! Ele não tinha graça nenhuma e assentava piamente que o espelho é que lha havia de dar. Na noite em que eu lhe passei para a cabeça, fez o papel de Belisário. Dizia então o povo: — Quem te cegara deras, bêbado! Era cómico por força, contra a vontade de Deus. O único papel que lhe vi desempenhar bem, era um em que ele não falava nada. E até levou palmas. Mas indo a agradecer com uma cortesia, fê-la com tanta graça que logo lhe deram pateada.

Também, se não tivesse outro ofício, morreria de fome. Mas pintava, e nisso tinha muito gosto. Pintou uma casa a um amigo que, depois de pintada, mandou-a o amigo caiar e ficou linda com cinco mãos que lhe deram. A paisagem era o seu forte. Pintou um quintal com suas couves e alfaces, umas roseiras e uma esponjeira no fim que era mesmo estar tirando as esponjas. No entremez do Esganarelo é que ele desbancou porque, como tinha perto de setenta anos, ninguém o viu que não dissesse que era um velho perfeito. Também cantava a sua ária e era muito afinado. Desconfiava por qualquer coisa.

Era casado com uma dançarina que, pelo seu modo, juntava muito boa companhia em casa. O seu chá era gabado pela qualidade e pelo bem feito. Mas a teima de decorar é que me matava. Tinha uma memória de galo. Nunca vi coisa assim! Pedia seis mil e quatrocentos, — como agora —, dava uma volta, pois já tal coisa lhe não lembrava. Era uma miséria de forma que na cena nunca sabia o papel e fechava a oração quando lá lhe parecia. Andava tanto na estimação de todos que o traziam nas palmas: apenas ele aparecia, ou palmadas ou pateadas. Numa ocasião quis ele dar, ou pedir, uma satisfação ao público. Chega ao princípio do Teatro, põe-se sério, e começa: — Senhores, (palmadas no caso) eu não sei... (pateada) em que ofendi... (assobio) este... (u, u, u) respeitável... (laranjada). De forma que tomou por melhor partido nessa noite retirar-se e não dar gosto de aparecer. Noutra ocasião vestiu-se de Arlequim com o vestido de Sultão. Mas que trabalhos não passou ele com um Benefício que fez! A tragédia era intitulada Fogo numas casas e o entremez O Cachimbo Fidalgo. Que injúrias não passou ele ao passar os bilhetes!

Um tratante recebeu um e não lhe deu nada. Ele de novo lhe rogou se lhe dava alguma coisa. Deu-lhe um assobio com a boca e disse-lhe que não valia mais. Poucos passou a dinheiro, foram a troco de fazenda. O barbeiro tomou-lhe um por um mês de barbas. O sapateiro pelos tacões de três meses. O alfaiate por uns fundilhos. E assim os demais, &c. Não era muito feliz no ofício, não. Um elogio que fez ao Cão dos Tártaros, e mesmo em língua de cão, foi o que recitou melhor.

Depois pôs aula de cómico para ensinar. Vejam como havia ele de ensinar o que não sabia! Mas a isso dava ele a sua razão, ainda que de cabo-de-esquadra. Que, muitas vezes, de mestres que não sabem saem grandes discípulos. E quantos discípulos havia que podiam ensinar os mestres? Ainda que eu não sei se isto é verdade. Outro barbarismo dizia ele, ainda muito maior, e era: — Que mestre não queria dizer que sabia mais que discípulo mas sim, que devia saber mais. Numa comédia que se fez no meu tempo, intitulada Quiquiriqui, fez ele de primeiro-galã. Mas, por um defluxo que teve, entrou nas últimas récitas. Outro cómico entrou nas primeiras e levou aplauso, o que não sucedeu a ele. Pois picou-se tanto disto que o mandou citar para um juramento d'alma, para dizer em sua consciência se era melhor do que ele ou não.

Atabafou-se isso porque o empresário declarou-lhe que não prestava para nada e que o botaria fora se entrasse com histórias. Entrou também na idéia de compor um entremez mas não serviu. Vendeu-o a um cego que o cantava pelas portas. Entrou também no gosto de maquinista (ele, coitado, desejava ganhar a sua vida) e fez algumas coisas menos más. Num, em que era preciso transformar um homem em burro, fê-lo muito bem e só com o simples trabalho de pôr as mãos no chão, e tudo gritou: Bravo, bravo, bravo. E foi a primeira vez que ouviu louvor. Noutro lugar da mesma peça, em que era preciso que um cão vivo morresse no momento em que um mágico o dissesse, pegou-lhe pelo rabo e apenas se disse morre, bate-lhe com a cabeça no bastidor e morreu. Para isso tinha seu jeito. Para que uma mulher parecesse homem, vestia-a de homem, de forma que o empresário estava tão contente com ele que o pôs fora sem lhe pagar. A mulher tinha-lhe fugido. Ele, desconsolado, saiu por ali fora, encontrou um amigo que era escudeiro a quem contou a sua desgraça. Ele consolou-o, deu-lhe de cear essa noite e dormiram juntos. Mas ao levantar, pela manhã, eu não quis ser mais cómico, deixei-me ficar escudeiro, para tratar da minha