O Piolho Viajante/XLIII
Não cheguei a estar um mês nesta cabeça. Tanto que lhe soube os segredos, mudei logo de casa. Mas é certo que achei algumas novidades e mesmo coisas que eu não esperava e que vou contar, porque não quero nada no estômago depois que ouvi dizer que o estômago era causa de tanta moléstia. Valha a verdade.
O dentista era novo, havia chegado de pouco tempo. Apenas chegámos a casa, veio logo a mulher dar-lhe parte de que já tinham um cão morto, muito bom. Fiquei admirado do presente que lhe anunciavam. Mas soube depois, pelo que vi, que era para lhe sacar os dentes e os ir enfiando para os pôr na janela. Porque estes amigos não se cansam de trazer dentes de uma para outras terras. Nada. Apenas chegam, vão sacando os dentes aos cães, a algum burrinho pequeno ou a outro qualquer animal que melhor lhes pareça. E, em mudando de terra, não levam nada alheio. Tornam a deixar os ossinhos e as dores e apenas levam o dinheiro. Dentro em três dias tivemos uma tal enfiada de dentes que podíamos adentar quantas ovelhas há desdentadas no mundo.
O tal amigo também preparava pós para limpar os dentes e tinha um criado que, sem pós, nem nada, limpava as algibeiras aos fregueses que era um gosto ver a maravilha do remédio. Os pós eram inculcados como de madrepérola, mas em lugar de madrepérola fazia-os de cascas de mexilhões de Aveiro, que são excelentes para isso, ou de pederneira em pó, que faz o mesmo efeito.
O tal dentista era pessoa de bem. Tinha fugido por travessuras que tinha feito na terra, sendo uma delas ter sacado cinco dentes a um sujeito com uma pedrada. Isto no tempo em que ainda ele não sabia tirar dentes, o que depois aprendeu por necessidade. Mas a natureza já ali fazia o seu progresso com a propensão que ele tinha em sacar dentes naturalmente e artificialmente. Vivia muito bem e com o seu asseio e, posto no seu tribunal, parecia um general de comédia. Ganhava menos mal porque há muita boca, aqui na Ásia e, por consequência, muitos mais dentes, pois cada boca tem os seus trinta e dois, segundo o que eu possuo. E julgo que a boca não é como as cabeças, que umas têm mais miolos do que outras. A respeito de dentes, todos têm a mesma quantidade, salvo erro. Que eu também não sei se me engano, pois ainda que eu contei os meus ao fazer esta obra, foi depois de jantar e eu, depois de jantar, nem por isso estou muito certo. Porque depois que me capacitei que o vinho é muito melhor do que a água, bebo muito mais vinho do que água e hoje todas as minhas moléstias curo eu com vinho. E o mais é que elas obedecem ao remédio, que nem que o vinho fora o Pai das minhas enfermidades. Algum dia, lembra-me que quando eu tinha mau estômago, bebia chá de macela o que era um trabalho de meus pecados. Era preciso mandar buscar a macela, depois acender o lume, ferver a água, fazer o chá e, no fim de tudo isto, nada de novo a respeito de melhora. Agora, que faço eu quando me sinto com mau estômago? Bebo-lhe três ou quatro garrafas e fico bom, ou ao menos, se o não fico, não o sei, porque fico no estado de inocência! Mas, adeus minhas encomendas, caí na minha balda que é falar no que não vem ao caso e fugir do que estou escrevendo! Salta para cá, piolho, vamos outra vez ao dentista. Eu, já agora, não tomo emenda com este defeito. Quem é torto sempre lhe fica um jeito. Tomara eu ter um piolho amigo que estivesse à minha ilharga quando escrevo para, quando eu me desviasse da história, dar-me um bofetão bem puxado. Mas talvez que nem assim tomasse emenda. Era capaz, então, de me pôr a discorrer sobre o bofetão e pôr-me além de Évora três semanas. Anda para cá, piolho, salta outra vez no dentista, conta-lhe a vida e não fales nas vidas dos demais. Não queiras misturar alhos com bugalhos. Eu tanto hei-de fazer que ninguém me há-de querer ler e, a falarmos verdade, também não perdem nada. Antes comprar os seis vinténs de bolos, ainda que os bolos façam mal aos dentes, e aí tem o dentista mais que fazer. Oh!, já que falei em dentista, vamos acabar-lhe a história e contar-lhe as anedotas que lhe sucederam no meu tempo. Vá a primeira e talvez que seja a última porque, contar também muitas histórias de dentes, é capaz de fazer dor de dentes ou, ao menos, dor de cabeça. E eu tenho muita carapuça talhada e é preciso tratar de as coser, não se me perca alguma folha, que esta obra, se não vai de carreira, sai com muito destempero. Ainda que eu creio que os leitores não têm de que se queixar a este respeito, pois eu tenho dito bastantes e espero continuar, se eles os quiserem ler, que, em dizê-los eu, não há-de haver dúvida. Porque tenho muito jeito para a asneira e o género não vai mau. Estou vendo viver muita gente fazendo muita asneira e vão vivendo menos mal. E eu, ainda que as não faça, digo-as. E pode ser (isto não é por me lisonjear) que eu não só as diga mas que também as faça. Outro dia fiz eu uma bem grande, pela qual merecia sopapos. Mas um sujeito que tem uma pequena dependência comigo e ma viu fazer, louvou-ma muito e disse-me que eu tinha obrado com muito juízo. É certo que muitos fazem asneira porque acham logo ali pronto quem lhas aplauda.
Ora vamos ao dentista e mais eu já me não lembra nada, nem bem aonde estávamos: ah... ah... agora me recordo. Estávamos na boca. De quem é que eu não estou lembrado, mas seja de quem for, ainda que seja bom saber de quem, mas isso não vem muito para o caso. Era só para todo o tempo se conhecer a minha verdade. Parece-me que estávamos nestas palavras: o tal dentista? justamente. O tal dentista era onde eu fiquei. Vamos ao caso.
O tal dentista tirava dentes e este era o seu ofício. Mas não os tirava senão onde os havia, porque todos sabem aquele ditado: onde o não há, todo o mundo o perde. Uma tarde veio uma velha ter com o tal professor de osso, pedir-lhe o favor de lhe fazer uma grosa de dentes, (quem lhe dera uma grosa de cachações!). Mas queria-os capazes de roer tudo. Mandou-lhe o mestre abrir a boca, na qual havia três dentes, um à frente, que me parecia uma sentinela da saúde, para não deixar ninguém chegar ali sem primeiro fazer quarentena com receio de peste. Outro num lado, que me parecia um anacoreta pelo solitário e amarelo; e outro do outro lado, que me pareceu destes bonecos da China, que em se lhe mexendo ficam a dar com a cabeça por algum espaço. Assim estava reduzida a boca deste século em pé, que ainda queria dentes para roer estando ela já roída pelo tempo. O homem despediu-a e teve escrúpulo de a enganar, o que nele era muito, mas a boca da mulher já não estava em estado de se lhe pôr nem tirar nada. A mesma língua já se lhe tinha despedido e vivia tão recuada que não chegava com ela ao céu da boca. Foi-se, enfim, a velha muito desconsolada e apareceu uma moça que queria tirar um dente e logo disse:
— Eu quero que vossa mercê, meu Senhor, antes de me tirar o dente me faça escarne dele, porque me disse uma amiga, que tem tirado cinquenta e tantos, que assim se tiram com menos perigo, ainda que com mais dores. Mas eu já de dores não faço caso, porque tenho um coração que toma dor de tudo e mesmo por qualquer coisa que seja. Um gato, que eu oiça miar, já me está afligindo. Daqui pode vossa mercê supor o que não sentirei eu se ouvir uma pessoa suspirar. Não está mais na minha mão. Que lhe hei-de eu fazer? Antes quero padecer das coisas que vê-Ias padecer ao meu próximo. Mas, enfim, meu senhor, não o quero cansar mais. Vamos a isto.
O pobre homem que era estrangeiro e não entendia bem a língua, pôs-se a olhar para ela porque não sabia o que era fazer escárnio do dente. A moça, que o viu com o ar de quem queria rir, logo lhe perguntou se aquilo era fazer escárnio, que se assim era não doía muito. Até que houve um ali que lhe disse que a senhora, o que queria, era o dente descarnado, ou, para melhor dizer, a gengiva e não escárnio do dente que não merecia que lhe fizessem essa afronta porque tinha uns dentes lindos. Ela fez-se vermelhinha e respondeu que não entendia dessas coisas, que o que pedira era que lho fizessem como melhor entendessem porque ela se entregava nas suas mãos. Só o que queria era ver-se livre do dente que era um inimigo que tinha na boca.
Abriu a menina a boca, o dentista viu o dente e reconheceu que não estava ofendido. Disse-lhe que não o precisava tirar porque não estava podre. — Não importa, meu senhor, tornou ela, tire-mo vossa mercê sempre, que me disse uma pessoa a quem eu quero menos mal, que este dente desfeava-me a boca por estar às cabritas em cima deste queixal. E, além disso, por não ser tão branco como os outros. Nestes termos, foi-se-lhe o mestre à boca e passou-lhe o dente à mão, que, com efeito, estava muito capaz. Mas a rapariga ficou muito consolada e mais o dente que sofria o pesadelo de tirado.
Vamos a outro caso notável que sucedeu a este pobre homem. Foi uma desgraça numa feira que não posso deixar de contar, pois apesar de ser desgraça teve graça. E é o caso: numa das feiras notáveis do Reino onde foi ele a exercitar o seu ofício (que já vossas mercês têm visto e ouvido quanto era destro nele), e mostrar a sua grande ligeireza, para por este meio se fazer mais célebre e conhecido. Viu passar por pé de si um pobre homem e, conhecendo-lhe pela cara que não tinha dinheiro, mas que tinha vontade de o ter, propôs-lhe este negócio: — Quer vossemecê ganhar dezasseis tostões? O homem, que lhe pareceu vir aquele dinheiro do céu, disse-lhe que sim e que estava muito pronto para o que lhe mandasse. — Pois há-de vossemecê fazer uma pequena coisa, que vem a ser: em eu me apresentando na feira em cima da minha banca, depois de ter acabado a minha operação dental, há-de vossemecê chegar-se a mim e pedir-me, com urna cara de piedade e quase chorando, que lhe tire um dente que o não deixa comer nem dormir há tantos dias e que lhe dizem os dentistas que é um dente muito difícil de tirar por ser o que fica logo debaixo do olho esquerdo. Eu, então, arregaço-me, vou-lhe à boca, finjo que lhe tiro o dente, que hei-de mostrar ao público, e vossemecê há-de então fingir que me quer beijar os pés e dar-me os agradecimentos com as lágrimas nos olhos, para o que tem vossemecê já oito tostões. Depois de acabada a farsa, será embolsado do resto.
Recebeu o homem o dinheiro e foi para a praça esperar o seu benfeitor. Mas a desgraça quis que enquanto o dentista amestrava o discípulo no engano, uns tunantes da terra, gente de bom gosto e muito liberal em dar um roda de pau quando era preciso, estiveram ouvindo de uma janela toda a perlenga e, apenas os dois se tinham destacado, saltaram no dentista e disseram-lhe:
— Nós estivemos ouvindo tudo o que vossemecê disse àquele pobre homem. Já não o largamos mais. Vossemecê vá para a feira e vá fazer tudo o que ajustou mas só com a diferença que não há-de fingir o tirar-lhe o dente. Há-de tirar-lho deveras. Nós lá havemos de estar à sua ilharga e fique certo que se não lho tira deveras, vossemecê leva uma redonda sova de pau, para o que tem aqui vossemecê a amostra. E deram-lhe duas pauladas menos más.
O pobre homem foi tremendo para a praça, pôs a sua banca de dentes e arengou em meia língua os progressos da sua arte. Chegou o miserável ajustado para o divertimento, que acabou em tragicomédia porque o dente veio à luz. O estrangeiro olhou para as bandas, viu os amigos que lhe tinham prometido o prémio e que já lhe tinham dado sinal se ele não tirasse o dente, e com os olhos lhe confirmavam a sentença. Não houve outro remédio. Botou-se ao homem e, num abrir e fechar de olhos, sacou-lhe o primeiro dente em que pôs a mão. Agora ouvireis: tanto que o homem se viu sem o dente, e a boca toda ensanguentada, clamou contra o dentista, praguejou-o, descompô-lo, contou todo o caso ao povo que logo, sem a mínima demora, saltou a apupar o professor o qual saiu dali em papos-de-aranha. Nesse mesmo dia deu consigo em seis léguas de distância, tão suado e medroso, que eu tinha dó dele e passei uma calma de meus pecados com a tal funçãozinha.
Aqui nos demorámos algum tempo e houve bastante que fazer. Ainda se sacaram cento e tantos dentes mas também saímos com pressa do sítio, porque o último dente que sacou veio com um bocado do queixo. Suponho que era amizade que lhe tinha, ou parentesco. Mas a culpa pôs-se a quem o tinha tirado. A corda sempre quebra pelo mais fraco. E antes que também nos quebrassem os queixos, pusemo-nos ao fresco e também mamámos cinco léguas naquele dia, a pé. Isto é, ele, que eu sempre vim sentado, como quem vem de burrinho. Mas, apesar disso, eu já não andava muito contente com as jornadas, porque isto era de Verão e a calma afligia-me muito. Mas não havia outro remédio, nem outra cabeça e até poucas esperanças. O amigo não se comunicava com pessoa alguma. Ia comer a uma taberna e, apenas acabava de jantar ou cear, logo saía e não dava conversa. Até que quis a sorte que aparecesse um seu patrício e acomodou-se conosco. Mas como não sabia tirar dentes, aplicou-se a tirar outras coisas. Comprou umas poucas de estampas, fez uma caixa onde as meteu, pôs-lhe seus vidros e chamou-lhe tutto il mondo. Determinou-se com este trem a ir procurar fortuna, porque o dentista não era capaz de sustentar ninguém oito dias, ainda que fosse seu pai. Sustentava-me a mim porque não me podia pôr a vista nem o dedo em cima. Eu, como ouvi falar em tutto il mondo, ainda que não sabia o que era, resolvi-me a sabê-lo, para o que, na noite da véspera da sua partida, deixei o tirador de dentes a passei para a cabeça de tutto il mondo. É a carapuça XLIV.