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O Piolho Viajante/XLIV

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A minha nova morada é uma cabeça interessante, porque, enfim, é uma cabeça que trazia todo o mundo à cabeça e era senhora de todo o mundo pois não era muito vergonhoso. O seu modo de vida tinha importado, todo, em setecentos e vinte e tirava todos os dias, mesmo pelo termo tirar, o seu quartinho. O negócio é dos melhores que eu conheço. Ninguém o vê senão com um olho e só o dono o pode ver com dois. Além disso, tem muito pouco que aprender porque ninguém repara no que ele fala. Eu gostei, a primeira vez que ele acarretou sem muito custo todo o mundo. Chegou a uma rua, pôs a ratoeira no chão, armou-a, foram chegando os ratos, puseram o olho à mira e ele entrou com uma fala em duas línguas, puxando por um cordel e, ao mesmo tempo, a dizer: — Agora se vê a grande cidade de Marrocos com todos os seus edifícios; ali se vê aquele sumptuoso chafariz que não bota água. Mais adiante está o palácio do Grão-Vizir, sustentado por quatro colunas de maravilhoso barro. Logo mais adiante se vê Mafoma passeando a cavalo num caniço, com umas esporas de sebo. No meio da grande praça está a estátua de um cão de fila, que morreu danado no ano de 1111, por outro nome, o ano dos quatro uns.

Caía o pano abaixo, ficavam os espectadores a coçar o olho que tinha estado fechado, e com dez réis de menos sem lhes lembrar nada do que tinham acabado de ver. E então? Que tal é o negócio? Ganhar, com cem, cinco, faz qualquer tolo. Agora ganhar com cinco, cem, isso é reservado para outra qualidade de cachimónias.

Assim fomos passando menos mal, mas ele muito melhor do que eu e mais não comia muito. Havia dia em que gastava os seus seis tostões e quinhentos e oitenta em vinho, e um vintém em pão. Não, o comer não o havia de fazer pobre. Um ano andei com este mundo palrante e no fim do qual já ele se achava com o seu par de moedas tesas. Tomou um caixeiro para lhe andar com a loja e ele pôs uns bonecos que pareciam gente viva, no que ganhou muito bem. No fim do outro ano já tinha um rocinante em que andava aos domingos e já falava que queria comprar um navio. O certo é que ele trespassou a loja a um parente que lhe veio da terra e que tinha chegado com o mesmo cabedal que ele trouxe. Depois começou a contratar em ferro, no que adquiriu muito ouro. É célebre coisa que a uns torna-se-lhe o ferro em ouro e a outros o ouro em ferro! A conhecer isto é que não chega a inteligência de um piolho. Eu não sou basófio, não chego lá, confesso a inópia! Ultimamente pôs a sua sege e entrou a dizer que se queria ir embora, que não se podia aturar semelhante terra, que passava mal de saúde, que tinha sido um asno por ter saído da sua. Mas eu, que o conhecia ao tempo dos dez réis, cada vez que lhe ouvia dizer tal coisa, fincava-lhe uma mordidela que, por minha vontade, se eu pudesse, lhe sacava o sangue todo, só para o restituir aos seus donos. Assim andei, esperando modos de sair dali e com muito receio que não lhe desse o amigo ir-se embora de repente por não estar com o trabalho de ajustar contas, o que na verdade é uma seca, principalmente se se tem de dar tornas. Porque sempre há dúvidas e eu, que não queria ir com ele por coisa nenhuma desta vida, andava num susto continuado. Mas ele mudou de projecto porque lhe apareceu uma bagatela em que podia ganhar os seus cem mil cruzados e, por nos dar esse gosto, demorou-se, apesar da pouca saúde. A conta, porém, saiu-lhe errada: ganhou só cento e cinquenta mil cruzados. Comprou então um navio para carregar por sua conta e pôs-se ao fresco, dizendo sempre muito mal da terra, por lhe ter metido aquele inimigo em casa e porque o ouro, sem exercício, é o mesmo que o corpo: está em perigo de estupor. De constipações estava livre o dinheiro do meu patrão pois conservava-o num contínuo suadoiro, pelo abafo em que sempre o tinha. E uma boa parte dele já estava expatriado porque o mandara naturalizar na sua terra. Via-me eu bastante agoniado, sem saber o que havia de ser de mim, até que apareceu outro patrício, que era mestre de florete e trazia-lhe cartas de recomendação. No dia em que se apresentou, jantou connosco. Ficou para o café e ali recebeu os conselhos precisos em que entrou a recomendação de que tivesse cuidado em si, que não o enganassem; que na terra havia muitos meninos espertos e outras coisas mais, arrematando, por fim, que lhe daria alguns discípulos, enquanto se não ia, o que esperava fazer com a maior brevidade. Eu, que tal ouvi, não esperei mais um instante. Fui saindo para o colarinho, desci-lhe abaixo à casaca, (pois já se sabe que ele agora não andava em véstia), passei para a cadeira, daí para o chão. Fui à cadeira do outro, segui os mesmos passos da retirada e encaixei-me na cabeça do mestre de florete, sem mais demora, e sem mais demora lhe fiz a carapuça XLV.