O Piolho Viajante/XVII

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Isto sim! Isto é que era cabeça! Nem Diógenes antigo, nem Diógenes moderno lhe chegavam aos calcanhares! Não fazia caso de nada e nada tinha. Passava sem tudo o que não tinha e não tinha nada. Uma vez que viu beber num tanque um burrinho pequeno, sem precisar de mãos para levar a água à boca, nunca mais quis beber senão metendo a boca na água. E custou muito a capacitá-lo de que devia servir-se das mãos. Queria andar com elas pelo chão. Era um homem conhecedor das coisas e desprezador delas. Não lia nem estudava e dizia: — O Filósofo nasce feito. Nunca se penteava. O seu fato, em lugar de escovado, era rapado.

Lavava a cara duas vezes no ano e igualmente vestia uma camisa lavada. 0 seu traste favorito era capote. Parava na rua, ainda que fosse para ver um cão brincar com outro. — O Filósofo deve ser observador, dizia ele, não lhe deve escapar nada útil. O inútil é que deve separar de si. Que é comer bem?, dizia ele. Que loucura é esta dos homens trabalharem com tanto cuidado, por fazerem diferença de bacalhau à galinha? De sege, a andar a pé? De tudo a mediania. Que loucura, pobres meus iguais! O comer, em passando da garganta para baixo, tanto importa comer palha como pato. A baeta abafa mais que a seda. A sege faz o homem como espécie de centopeia, que precisa muitas pernas para andar, e todos fugimos dela, como peçonhenta. Mas reparava eu no meu Filósofo que, se o convidavam para jantar, sempre comia do melhor que vinha à mesa.

Quando comprava capote, escolhia boa fazenda. E à noite, se encontrava sege ao recolher a casa, punha-se na traseira para não ir a pé. Que diabo de Filosofia é esta?, dizia eu comigo. Não faz nada do que prega; não tem ofício de Missionário; não lhe dão nada por isto. É mania! E vê-lo falar numa roda de gente! Tudo estava caladinho: ele ora emendava os costumes presentes, ora louvava os passados (não entendia uns nem outros). Definia o que era o Teatro, o Passeio, o jogo, as Assembleias, os Amigos. Parecia um destes enxota-moscas e poeira, dos Mercadores, que têm muitos ourelos, todos de diferentes cores, a sacudir para aqui e para acolá. Pois diante de Senhoras! Isso era bailar as tripecinhas: era miserável a que falava.

Dizia uma, por exemplo: — Eu gosto de versos. Saltava-lhe logo: — Que são versos, minha Senhora? De que serve uns soneto bem feito? Que lucro lhe acha ou que lucro tira o que o fax, gastando muitas vezes um dia inteiro a aparar a pena, a bater na testa, a pôr os olhos em alvo e outras vezes no tecto, a morder a língua, a fazer caretas, a dobrar papel, a sacudir a pena. E sai no fim de tudo isto com catorze versos que lhe chamam "soneto" que, ou não prestam ou se prestam não lhe prestam para nada? Não era melhor ocuparem-se em ser Filósofos, em conhecerem o coração do homem pela fisionomia, a encontrarem a pedra filosofal, (que o não ter aparecido é por falta de diligência), o Elixir universal e outros bens, a bem da humanidade? Coisas sérias, minha Senhora, coisas sérias.

Se outra dali dizia que gostava da contradança, agora o vereis. — Que é a contradança? Que são contradanças? Dança é uma palavra que está viciada pelos tempos. O seu próprio nome é "Pança", inventada, na era de tal, por um homens que tinha uma barriga muito grande; cujo apelido ficou à sua descendência e da qual dizem que descendia "Sancho Pança". Este homem, que não podia mexer-se, por causa do bandulho, vendo que o andar muito lhe fazia bem, entrou nos dias de chuva, em que não podia sair, a dar saltos pela casa. E para fazer isto mais suave, fazia também saltar a gente de sua casa. Vieram os vizinhos, gostaram da asneira, porque se juntavam homens com mulheres e entravam todos às noites com o tal baile a que puseram o nome de <<pança>>, em louvor e aplauso do autor.

Um sujeito daquele sítio, e que não sabia bem escrever, mudou de terra e levou o tal divertimento consigo. Entrou a fazer convites por escrito e em lugar de um P punha um D, que justamente fazia “dança”. Esta palavra agradou e até tinha mais semelhança. Pegou e ficou e hoje os mais cordatos assim lhe chamam. Ora eis aqui tem vossa mercê a origem da dança e da palavra.

Ultimamente foi isto passando de tempos a tempos até que veio tempo que muitos donos de casa não queriam a dança em casa; mas esses mesmos dançavam nas casas alheias ao que diziam as raparigas de casa: — “É contra a dança, e dança”. Destes contras e destas danças é que se originou a palavra "contradança". Eis aqui a origem da contradança e da palavra. A origem das constipações, das tísicas, das janelas abertas fora de horas, de muitos casamentos em que aos oito dias há contradança de arrocho, ou de fome, e outras bagatelas mais que não conto por não ser importuno mas que são notórias.

Eu, foi no que achei juízo ao meu Filósofo, porque com efeito não acho muito acertado o andar todo o dia a pular porque também a mim me dá incómodo. Muita gente dirá: — Que lhe importa lá ao piolho que a cabeça aonde ele anda, morde e lhe dá sustento, salte ou não salte? Mas é porque não discorrem, porque eu lhe perguntarei: — Que importa lá morar numa casa velha que esteja caindo, que não tenha telhado nem reparo de janelas? Um senhorio mau, uma má vizinhança? Dá-lhe isto incómodo ou não? Pois assim é o piolho quando acerta numa má cabeça. Mas vamos ao fio da história.

Eu também sou alegre e gosto da galhofa, mas em termos. Que se contradance num dia de anos, num dia de festa, num dia em que houve um alegrão na casa, que se juntaram os parentes e amigos. Vamos adiante, é bem feito e útil. Mas pôr-lhes Deus a cabeça pegada ao corpo e eles todos os dias andarem com ela por esses ares, que me parecem papagaios que os rapazes botam ao ar, servindo-lhes o corpo de rabo e o peso para não virar a cabeça para baixo! Mas eu a fugir da história e a meter-me com o que não me importa! O tal Filósofo tinha coisas muito boas apesar de que não usava de nenhuma.

Algumas dívidas que tinha não lhe davam cuidado. Um Filósofo não se embaraça com bagatelas e assim não pagava a ninguém. O seu gosto era ser procurado pelos credores. Nunca os vi levar nem má palavra, nem dinheiro. Nunca os desenganava, eles mesmo é que se desenganavam por si, de forma que já lá não ia ninguém, nem lhe tiravam o chapéu. O seu divertimento diário era ir ver correr a água a um chafariz que lhe ficava perto da casa. Gostava daquela teima com que de dia e de noite estava a correr e dizia e até teimava que aquele chafariz era um verdadeiro Filósofo que tinha procurado um sistema de viver, de que nunca mudava, e que até era um Filósofo filantrópico, porque, apesar de estar sempre a correr, todo o mundo o achava parado, e ele pronto a socorrê-los com a sua água para lhes matar a sede, ao que nunca faltava, sem escolha de pessoa. Antes quase sempre aos pobres é que a prodigalizava porque os ricos davam-se pouco com ele, sempre bebiam vinho e os mesmos pobres iam lá por necessidade, por falta dele. E, certamente, se Baco fosse tão esmoler que se fizesse visível a quem o quisesse, os chafarizes ficavam a pedir esmola. Havia tal que a mesma barba havia fazer com vinho.

De uma bulha que um aguadeiro tivesse com outro, tirava ele uma filosofia para estar filosofando todo um dia. E de uma vez (ele era cheio de caridade) que dois aguadeiros jogavam aos socos, a ponto que já os narizes começavam a fazer chouriços, e saltando um suspiro fora do barril a um deles, que o tinha cheio, entrou outro a gritar: — Olha aquele suspiro! Vai o meu Filósofo enfia, traça o capote, e vai acudir aos galegos porque entendeu que diziam que estava para dar o último suspiro (como ele ao depois confessou). Tanto que soube o que era sossegou-se, que isso tinha ele. Era dividido em duas partes, metade sossego, metade raiva. Era muito tentado com metades.

Uma vez perguntando-se-lhe qual queria, se saúde, se dinheiro, respondeu: — Metade numa coisa, metade na outra.

Deu uma vez uma queda e não deu com metade do corpo no chão. Morava na rua da metade e ultimamente vivia de metade com outro filósofo. Pagava a metade das casas e se havia uma sardinha para a ceia, dava metade ao seu amigo e companheiro. Eu, se pusesse alcunhas, punha-lhe o metade.

Mas quando vi que ele era Filósofo chapado foi uma noite que um vizinho lhe deu uma roda de cachações compridos. Ver o sossego e a fleuma com que ele levou aquela remessa! O vizinho prometeu-lhe mais e ele, com toda a cortesia, e o chapéu na mão, lhe disse que não tivesse incómodo, que eram suficientes aqueles. O vizinho arde, salta-lhe outra vez em cima, bota-lhe dois dentes fora com um murro, o que ele, muito humilde, lhe agradeceu por lhe ter sacado neste caso um que tinha podre e outro que sendo vizinho devia estar combalido. O homem enraivece-se, pisa-o a coices, o que ele também lhe agradeceu porque estava muito precisado de estar uns dias na cama, mas ao que não se resolvia. Porém, agora, visto o moído em que se sentia era de necessidade o fazê-lo. Até que o vizinho se pôs o rir e entrou aos abraços a ele e a perguntar-lhe donde nascia tanto sossego. De ser Filósofo, lhe responde, e entrou a capitá-lo, que fosse Filósofo, o que o outro fez, e ficaram ambos Filósofos com a única diferença de ser um passivo e outro activo.

Tinha uma mesada todos os meses, de um sujeito que nunca lha deu nem lha mandou dar e, atendendo ao bom pagamento, andava na última miséria. Ia ali a casa um pobre pedir esmola, por teima, pois que nunca lha deram. E uma noite, que chovia muito, pediu se lhe davam agasalho. Disseram-lhe que sim, dividindo-se em duas metades o que havia de comum.

O Filósofo deu metade da casa e o pobre metade do alimento que levava, que eram doze fatias de pão, ou galhofas, como eles lhes chamam, seu bocado de queijo, três sardinhas de espicha e sua pinga. E foi a única vez que o meu Filósofo não deu metade, deu por inteiro toda a vontade que tinha de comer. De forma que quando o pobre lhe quis acudir já o comer estava fazendo cozimento no estômago. O patrão Filósofo, depois da ceia, deu-lhe metade da sua cama que o outro aceitou e eu estimei, porque apenas se deitou, eu fui-me à cabeça do pobre, como cão a bofes, e antes quis um pobre sem ser Filósofo do que um Filósofo pobre. Ao erguer-se, pela manhã, deixei casa e dono, sem levar saudades, e fui pôr no meu pobre a