O Piolho Viajante/XXI
Era um dos rapazes mais curiosos do meu tempo. Sabia dançar toda a qualidade de dança, e ultimamente fez dançar o patrão. Tocava todos os instrumentos, mas nas marimbas era o seu forte. Jogava todos os jogos, fazia habilidades, bailava na corda, representava, sabia línguas, andou na picaria. Só a aprender a tratar com Senhoras gastou ele dois anos e um poderio de dinheiro. Verdadeiramente, era mais sócio que caixeiro. Eram três interessados na loja: o patrão, ele e a gaveta. A última quebrou às duas palhetadas e como era o sócio principal, podem vossas mercês ver corno ficariam os dois! Mas sempre o mais culpado foi o sócio gaveta pelo seu bom génio. Que se ela não se deixasse persuadir e abrir tantas vezes quantas o meu caixeiro queria, não lhe havia de suceder esta desgraça porque eles tinham muito bons ganhos. Foi uma quebra sensível a muita gente e não só aos que eles ficaram devendo, mas mesmo àqueles a quem eles davam a ganhar. Uma sege, em que cá o meu patrão andava Domingos e dias santos, todos da casa choravam, à excepção das bestas que tiveram folga das corridas porque ele, já se sabe, andava sempre de trote. Da mesma forma que o negócio, que foi um sopro.
O pobre patrão não o podia crer, que era um homem chão e verdadeiro, sem saber prendas, e tudo era, com as mãos na cabeça, perguntar-lhe: — Como foi isto? Ao que ele respondia que não lhe desse cuidado, que no melhor pano caía nódoa, que não era caso que so a ele tivesse sucedido. E consolava-o, dizendo-lhe que muitos havia que tinham quebrado as suas cinco vezes e que estavam tão inteirinhos que não se lhes percebia nada. Mas o patrão não o tiravam da sua aflição. Cá o caixeiro pouca pena tinha porque estava cheio de graças e de prendas para lhe servirem de espeque à desgraça. Ora a gaveta não dava já um copo de limonada por mais que a espremessem porque o tal caixeirinho tinha-a metido numa imprensa, tinha-lhe feito dar tudo. Para encurtar razões: o patrão quebrou, a gaveta foi para o lume, que bem o merecia, e estava tão seca que ardeu num instante e não botou fumo porque já tinha fumado tudo.
Eis aqui em que pararam estes três sócios, tudo por culpa da desavergonhada de uma gaveta. O patrão, atendendo ao bem que o tinha servido o seu caixeiro, pô-lo logo na rua. Este pediu-lhe uma atestação do seu zelo que ele não lhe quis passar, respondendo-lhe que era notório, que não precisava de mais testemunha autêntica. Ainda se achava com a sua meia dúzia de peças e algumas dividazinhas que lhe deviam de fazendas que tinha dado da loja e estavam bem paradas. Mas nunca o tinha querido dizer ao patrão pelo não afligir e guardou esta aflição para si, o que não deixou de lhe valer.
Além disto, ele achava-se com disposições e jeito para pregar a sua meia dúzia de calotes e tratou de negociar neste género, mas sem sócio, só por sua conta e muito principalmente por conta daqueles a quem os pregasse. Continuou na mesma vida, à excepção de ir tirar dinheiro à gaveta. Pois, como já disse, e vossas mercês estarão lembrados, morreu queimada para que não houvesse mais notícias de tão mau indivíduo. O primeiro a quem pregou o calote foi a si próprio porque em poucos tempos se viu descalço.
Casou, por fim, visto estar tão bem estabelecido e houve uma função na boda, que nem que ele tivesse vindo das Índias a porto e salvamento com duzentos mil cruzados de seu. Pouco durou este alegrão porque barriga vazia não tem alegria. A Senhora sabia dançar mas depressa se aborreceu da prenda. Dançavam-lhe as tripas na barriga, com fome. Ele também pouco caso fez da casa e poucas vezes lá ia, de forma que o senhorio, vendo que ela lhes não era precisa, botou-os fora e por não lhes pôr o fato na rua, meteu-lho no Depósito. Levou tudo um galego, por um nada, que não tinha reserva de bens. A mulher foi servir e ele, que não servia para nada, deixou-se andar por aí até que soube que um Ministro tinha a incumbência de mandar alguns sujeitos capazes para Moçambique. Não tinha empenho para ele, mas nisso foi tolo, porque se lhe falasse e lhe contasse a sua vida e merecimentos, do pé para a mão era logo servido. Porém, ele pecava em ser vergonhoso, até que uma ocasião quis ver o que tinha dentro uma carteira de um amigo: achou-lhe duzentos mil réis. Naquela ocasião estava precisado e o amigo tinha mais dinheiro fora aquele. Receou que, se lhe pedisse, dissesse que não, porque era tentado com esta palavra. Agarrou no dinheiro, deixando-lhe a canteira. Houve testemunhas desta galantaria que, por felicidade, foram ter à mão do juiz que tinha a incumbência, na qual ele desejava e merecia ser empregado. O que conseguiu em duas palhetadas. E eu, sem me poder escapulir, fui de gargalheira e muito à cortesia, para o navio. O que me custou muito porque nunca tive tenção de embarcar. Mas, enfim, isto foi com tanta pressa que em menos de duas horas me vi no mar largo. Ah, senhores, quando perdi a terra de vista não sei como não morri de pasmo! O caixeiro tinha bojo para tudo. Apenas o soltaram, entrou a pensar no modo como melhor daria conta da nova ocupação em que o empregavam. E eu é que não pude mais nem cuidar no sustento.
A lembrança de perder a Pátria; o andar sobre as águas do mar onde há tanto risco; a morada de uma cabeça que apenas tinha o nome de cabeça; tudo isto me lançou em tanta melancolia que desejava morrer. Depois, para acabar de me mortificar, entra o enjoo comigo e um fastio mortal. Meu patrão entrou no mesmo estado, ambos estivemos às portas da morte. E então é que nos lembrávamos, ele do que tinha feito e eu do mal que fiz em passar para a sua cabeça. Tomámos ânimo, porém, e eu entrei na esperança de que, chegando ao porto para onde íamos, poderia ficar em alguma cabeça daquelas que tornassem no navio e desta forma tornar à minha Pátria. Com esta idéia fui passando mais alegre. O meu tratante melhorou. Meteu-se com um marujo que tinha trinta viagens no corpo. Vejam que tal seria o melro! Era um assombro. Passados alguns tempos, tanta amizade tomaram que dormiam ambos juntos. E nesta cabeça, apesar de não ser muito boa, é que fiz tenção de me fazer na volta. Chegámos, depois de muito incómodo, à praia desejada, mas não saltámos nesse dia em terra. E, por minha desgraça, nessa noite apartaram os presos, ficando por consequência meu patrão sem dormir com aquela cabeça que eu tinha escolhido para a minha passagem. Passei toda a noite aflito e ansiado. No outro dia, pela manhã, desembarcaram os incumbidos para irem para terra. Mas o meu marujo teve licença para acompanhar o seu amigo preso.
Chegámos à terra, entraram a despedir-se e sou obrigado a dizer: o caixeiro tinha o coração mais duro que o marujo. Nem uma lágrima botou e o marujo caíam-lhe pelas barbas abaixo. Salta-me nele aos abraços que não havia quem o apartasse. Eu aproveitei-me desta ocasião e fiquei na cabeça do marujo que tornando para bordo comigo, eu logo por amor do frio, apesar de ter barrete, lhe fiz a