O Piolho Viajante/XXII

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A vida de marinheiro é trabalhosa. Mas a de piolho em cabeça de marinheiro é muito mais. Em fazendo sol, ou não havendo que fazer, já se estavam a catar uns aos outros. O meu marujo não botava pós mas dava azeite no cabelo em tanta quantidade que, no que respeita a passadio, não tenho que me queixar. O pior eram as chuvas, que ele apanhava a pé firme. As vezes vinha para baixo que parecia um frango ensopado e eu, piolho de molho. Mas apenas se deitava, dormia de forma que, às vezes, para acordar, eram-lhe precisas duas arrochadas de quem o governava, o que lhe sucedia muitas vezes, porque o tal, que lhas dava, era muito liberal. Eu era só quando dormia porque de dia estava num contínuo medo de ser apanhado.

O tal marujo tinha duas mortes às costas, mas não lhe faziam peso nenhum. Andava muito direito com elas. Vejam que escrúpulo teria ele para matar um piolho que lhe mordia e chuchava o sangue, se era capaz de matar um homem por divertimento, quanto mais quem o ofendia. Chamavam-lhe o Catita, de alcunha, e era chibante. Não tinham muitas graças com ele. Em pondo a mão na ilharga, o pé adiante, o chapéu entre os olhos e dizendo um não quero, arreda tudo para trás, fugia-lhe tudo diante. Tomava a sua bebedeira como um homem e, depois de variado, era preciso cuidado com ele, que era capaz de arremeter com a figura da proa. E sabia bem do ofício.

Uma noite estava ele ao leme, veio um temporal, inchou o mar que parecia um hidrópico. Grita-lhe o mestre: arriba. E foi ele, orçou. Vimo-nos em papos-de-aranha, mas não foi coisa de cuidado. Esteve tudo para morrer afogado.

Contava uma história de um casamento que lhe quiseram fazer em pequeno, que era da gente escangalhar-se com riso. Tinha muita graça, muito dito bom, sabia muita história. E uma que ele contava de umas arengas que tinha tido com um defunto que, ao entrar para a cova, não quis encolher os pés e não cabia ao comprido! Chegou-lhe a dizer com todo o desembaraço que ou se encolhia ou o matava outra vez. E era capaz disso. O defunto não havia ter graças com ele.

Uma ocasião furtou-lhe um companheiro o biscoito, o vinho e a água daquele dia. Foi ele, pediu-lho. O outro teimou que o não tinha furtado. O tal era capaz de matar um por dá cá aquela palha. Mas cá o meu era capaz de matar um cento por dá cá aquela aresta. Os outros entram a dizer-lhe que se fosse queixar. — Para que?, respondeu o meu, se eu posso amanhã furtar o mesmo, ou mais. Era assim, pagava-se pelas suas mãos. Não era de cerimónias. Era já tão conhecido no navio que, faltando alguma coisa, logo se punha a boca nele e todos lhe chamavam pelo seu nome.

Uma tigelada feita por ele, era comer e gritar por mais. E então sabia gastar dinheiro como qualquer, fosse seu ou fosse alheio. Era coisa em que ele não reparava. Deram-lhe uma pouca de fazenda para vender e repartir os ganhos que houvesse. Eu, deu-me vontade de rir quando o dono se despediu dele, não se despedir da fazenda. Vendeu-a logo pelo primeiro dinheiro que lhe deram e não houve parente pobre. E sabem o que respondeu quando lhe perguntaram por ela? — Enjoou, não chegou a acabar a viagem. Outra que lhe sucedeu, estando ele bêbado. Quis fazer um cigarro. Saca um bilhete de cinco mil réis, rasga metade, faz o cigarro, acende-o e começa a fumar. No outro dia, que estava desempoeirado da cabeça, acha só metade do bilhete, arde, cuida que é peça que lhe pregaram. Mas os outros o capacitaram que o tinha rasgado para cachimbar. Então ele ficou muito senhor de si e disse: — Os outros não fumam o seu dinheiro? Pois eu fumei o meu. Então que tem? Tinha alma! Ainda que, às vezes, era muito desalmado. Só uma única vez o vi fazer uma acção de caridade, salvando um fôlego vivo que tinha caído ao mar, um peru. Disse o Mestre: — Quem o for buscar, é seu. Fazia bom tempo, despe-se, bota-se a nado, agarra o peru com os dentes e teve o gosto de o salvar. Mas apenas chegou a bordo, matou-o logo, antes que desinchasse, dizia ele, que estava assim mais gordo e deu com ele abaixo ainda engrolado. Numa ocasião fez de dentista com um camarada, botou-lhe com um murrozinho dois dentes fora. E quando o quiseram castigar desculpava-se que lhe tinha tocado apenas com dois dedinhos, que não julgava fazer-lhe tanto mal.

Era um bom moço no seu tanto de marujo! Por um quartilho de vinho que lhe dessem, dava dois bofetões em qualquer pessoa que lhe apontassem. Facada é que era mais cara. Tinha adquirido, com a sua agência, quarenta e tantos pares de fivelas de prata que vendeu pelo peso. Pelo custo é que nunca quis vender nenhuma, que a vendê-las uma pessoa lhe tomava logo todas.

E outra ocasião em que ele estava também bêbado e entra com outro a dizer-lhe: — Dou-te dez mil réis por cada piolho que me achares, contanto que eu é que os hei-de matar. Nunca, nunca me vi em tanto perigo. Se me sangrassem naquela ocasião, não botava pinga de sangue. E então não tive tempo para nada. No mesmo instante se lhe bota o outro à cabeça. Mas um, que estava à ilharga, que era piolhoso, disse-lhe ao ouvido: — Eu tos dou para ele os matar. Então, o que catava não lhe importava a cabeça, fazia que mexia e quando o outro achava algum, dava-lhe de olho. O tratante agarrava nele e dava-o ao outro para o matar e assim lhe sacou algumas quinhentas moedas de dez réis. Era para ver, quando ele se levantou da catadela, como ele estava consolado, dizendo: — Estou livre desta comichão. Tinha a cabeça perdida com piolhos. E mais de oito dias não pôs mão na cabeça a coçar-se. O que pode a imaginação, ou a boa-fé em que a gente está com qualquer coisa, ou com aqueles que nos enganam! Por isso é bom desconfiar de tudo.

Assim fui passando a suspirar pela hora em que me visse em terra firme. E desde então fiquei sempre desconfiado que o tal inventor das casinhas que andam sobre a água não era boa peça ou, ao menos, não era muito amigo dos outros homens. Safa com a tal invenção! Antes andar pelo ar, que, ao menos, se se quebrar uma perna anda-se com ela assim, ou põe-se-lhe uma de pau. Mas o tal colchãozinho, que é tão mole que engole a gente, e dá com ela em vaza-barris! Safa, torno a dizer, cá para a terra onde anda a raposa!

Uma madrugada ouvi eu muita gritaria, mas não pude saber o que era. Porque o meu patrão em não estando de serviço, nada o desacomodava, ainda que lhe dissessem que ia ao fundo. Acordou lá quando lhe pareceu e ele quis. E eu num frenesi por saber o motivo daquele alvoroço. Até que ouvi dizer que se avistava terra.

Deu-me logo um desmaio de contentamento. E o que me valeu foi estar borrifando e o meu marujo ir acima sem chapéu para ver terra. Aqueles borrifos fizeram-me tornar a mim e nunca tive um igual contentamento. Pulava-me o coração no corpo. E a única coisa que me fez cair em tristeza, foi a lembrança da cabeça em que eu iria cair. Pois que os conhecidos todos do meu marujo haviam de ser da mesma enxárcia. Deixei tudo ao tempo.

A terra ia-se aproximando ou, para melhor dizer, nós íamo-nos aproximando da terra. Veio um escaler a bordo onde vinha um homem de meia-idade, cabelo seu, as pernas alguma coisa inchadas. Procurava pelo dono do navio, o qual veio logo ao portaló. Muita festa para a festa. Boa viagem. Suba. Sim, senhor. Mas o homem não podia. Mandou-se abaixo dois marujos, que fossem reforçados e na escolha foi incluído o meu, que fez de chibante, na forma do seu costume. Agarrou no homem, uniu-o a si, e apresentou com ele em cima. Eu não me descuidei um momento desde que se chegou a ele e tratei de mudar de morada mesmo sem saber para onde ia, mas só com o interesse de ir para terra, no que demorou pouco o meu gotoso. Porque era esta a sua moléstia. Desceu outra vez encostado ao mesmo e eu a fugir para o lado oposto, parecendo-me que ele me conhecia e tornava à mesma cabeça de que tinha escapado. Viemos para a terra e eu para casa do meu novo senhorio, para lhe fazer também a sua Carapuça.