O Piolho Viajante/XXX
Eu cuidava que uma cigana era uma mulher bem-feita, bonita, belo modo, bom juízo, uma boca cheia de riso. Que, unindo ao gracioso a verdade e a singeleza, encantava a gente. Mas, não senhores, a tal cigana era uma mulher setentona e bastante comilona (como diz o Doutor Alcalá ), alta, seca de carnes e condição muito bem talhada para esqueleto. Bastante negra e alguma coisa enxovalhada e suficientemente capaz para desmamar um cento de enjeitados. Creio que não preciso dizer que era feia. Tinha uns dentes grandes, cor de abóbora-menina, com as gengivas verdes que lhe davam muita graça.
Sabia muita história, muita perlenga, muita toleima, muita asneira, próprias para enganar crianças e não gente grande. Não tinha graça nenhuma e já ninguém caía nas suas arrioscas. Pegava na palma da mão, entrava a contar linhas e fortunas. E se o padecente que estava ouvindo se descuidava, furtava-lhe alguma coisa. E nisto é que consistia toda a sua sabedoria.
Era ladra do quinto voto. Se fosse preciso, sacava umas ceroulas a um homem sem lhe bulir nos calções. Entrou a contar tanta léria ao tolo do velho, que tossia de gosto e duas vezes o vi engasgado. Entrou-lhe a dizer que havia de casar cedo, que a mulher havia de ser muito formosa. Dizia ele então, às gargalhadas: — É verdade, é verdade, adivinhou. Que lhe havia de guardar uma lealdade que havia de ser um abismo. (Quem a abismara a ela, mais à mãe que a pariu!) E se ele queria saber isto com todas as veras, ela tinha a raiz de um cancro que com ela adivinhava tudo e que não se lhe dava de a vender. Então é que o velho ficou com a boca aberta, capaz de dar quanto possuía só por tal prenda. Entrou logo no ajuste e no modo com que se adivinhava. No ajuste se compuseram, no mais tratou-se de fazer a experiência, que começou assim. Diz-lhe ela: — Eu hei-de adivinhar quanto vossa mercê traz no pensamento e sente no coração. Primeiro que tudo, mande vir um copo de água e umas brasas com alfazema. Mande recolher todos aos seus quartos, as janelas fechadas, as portas da rua abertas e quatro velas acesas. Mande vir tinteiro e papel, retirem-se todos para dentro, feche as portas para lá e em eu dando três espirros, saiam, abram as janelas, e leia o que estiver escrito no papel. E se não for tudo verdade, eu corto a cabeça. Mas é preciso cuidado em não espreitar, senão tudo se perde e o mesmo é preciso para quando vossa mercê a fizer, depois de eu lhe ensinar.
Fez-se tudo como a arengueira quis, estando todos com a boca aberta e eu vendo em que parava aquela tramóia. Que foi apenas a cigana se viu só na casa, e com todos fechados, sacou as velas dos quatro castiçais (que eram de prata), pingou sobre as bancas onde as segurou, agarrou numa bandeja de prata que estava sobre a banca de um tremó e depois escreveu sobre o papel estas palavras: — Levo quatro castiçais e uma bandeja. Desceu pela escada abaixo, pôs-se ao fresco e eu com ela, que senti bem não ver a espera dos três espirros, mas creio que ainda iria a horas, porque lá estarão à espera pois ainda não se deu o primeiro. E então, adivinhou ou não adivinhou? E é o que tal cigana sabia fazer. Era uma embusteira redonda.
Andei nesta vida de enganar gente um par de meses muito bons e confesso que vivia tão desconsolado que nem me lembrava morder-lhe. Andava a modo de tolo e tão magro que receava cair numa tísica. E o mais é que não dava no modo de sair dali para fora.
Ela vivia com uma companhia de ciganos e ciganas, todos da mesma oficina e da mesma pobreza. Tinham uma velha que é quem lhes ensinava as alicantinas e que era abelha-mestra. Um homem, nas suas mãos, saía espírito de vinho, era um alambique. Todos os dias, à tardinha, vinham as ciganices pequenas para tomarem a lição que constava de enganar o mundo, quero dizer, a gente que nele vive, que o mundo não é ninguém capaz de o enganar. Mas, com efeito, a arte de enganar gente, quanto a mim, tem chegado ao seu auge. Ensinava-lhes as tramas para furtar trastes e uma das coisas que a velha mais recomendava, era que furtassem, ainda que fosse um esfregão da loiça, uma meia sem companheira, enfim, que não devia escapar nada. E concluía: — O valente, é preciso que tenha jogado a pedrada, que tenha levado muito coque e que se tenha exercitado em pequenas coisas.
Tinham também consigo uma cigana de treze para catorze anos, linda como o sol, e tinha o maior cuidado em lhe ensinar a fazer redes para armar aos homens. E, com efeito, ela não precisava muito de ensino, porque, além da propensão, tinha uns olhos que, se ela jogasse o Voltarete, tinha sempre os matadores nas unhas. E queriam-na casar com um cigano que parecia o Zápete : tão negro, tão feio, tão magro, tão ladrão, tão tudo! Que enorme coisa! E o demo da rapariga gostava dele. Quem me dera saber a razão por que a maior parte das raparigas formosas caem sempre nas mãos destas caras, que parecem toucinho de ranço (mal por mim, se assim não fosse). Mas elas, verdade seja, quase sempre têm esta escolha. Em sendo bonitas, não se pode dizer por elas: —Escolheram como os seus narizes! Isto é regra geral, todos desejam o que não têm. Uma rapariga que não tem nada de feia, que há-de ela desejar? Uma coisa que seja feia. Mas sempre é mau, havendo por aí rapazes que parecem de alcorça, pelo dengue a açucarado. Eu tenho visto alguns que se os não ouvisse falar, pareciam-me de gesso, pelo bem-feito, e de cera, pelo brando. Outro dia, vi eu um destes, tão lindo e tão amorado, tão não sei como que era preciso uma grande fé para a gente se capacitar de que era homem. Era branco, falava de esguicho e tinha a marrafa tão encrespada que parecia cão de água, e de muito boa raça. Todo o resto do fato valia menos que o feitio. Feliz tempo! Tempo de economia, que se faz uma casaca com duas terças de pano! Tudo se vai adiantando bem. Deus pague a quem nos mete tanto em casa e que, ensinando-nos tantos modos de poupar, nos deixa sem real. Ora, senhores, porque não haverá um hospital para tolos, assim como o há para doidos? Mas a despesa havia de ser grande. E que casa se não precisava! E até talvez eu fosse lá ter, porque ainda que piolho tenho minhas toleimas muito boas e manias como ninguém. Mas aqui tornei eu, insensivelmente, a fugir da cigana para me ir meter no que não me importa. É forte balda! O que eu precisava era arrochada, que é o que merece quem se mete com as vidas alheias. Enfim, eu estava nas redes que ensinavam à rapariga para apanhar homens. Vejam se para apanhar homens se precisam de redes! Eu conheço alguns que não precisam nem redes nem isca. Até vão pelo cheiro e por qualquer malha caída de uma meia. Mas vamos ao caso antes que eu me desvie outra vez. A rapariga tomava lições e tinha ciganices que ninguém lhe escapava. Havia tal que, pedindo-lhe ela esmola, lhe dava o coração. Que, é certo, que também os há que é mais fácil darem o coração que um vintém. E isto em razão, porque o coração já ninguém lho quer e dinheiro não têm real. Ensinavam-lhe muita cantiga de cor e ela cantava menos mal. Era quase a cigana de Cervantes pela beleza e pelo espírito. Neste meio tempo morreu a velha com alporcas e a cigana onde eu morava era a imediata sucessora a este morgado. Por consequência, foi-lhe conferido o grau de abadessa, com todos os privilégios e isenções, sem pagar nada. Começou logo no ensino desta mocidade e, com efeito, ela não era menos se não era mais. O certo é que a rapariga adiantou-se tanto neste tempo que era admiração de todos. E a tal minha patroa, que era capaz de tirar pão das pedras, entrou a ensinar-lhe que não devia rir sem primeiro lhe darem dinheiro. Lição que ela tomou tão bem que, por fim, ganhava dinheiro a rir e cá a minha velha a fazer chorar. Era muito rara a casa onde punha o pé que não ficasse chorando por ela e a procurassem com toda a eficácia. Ela é que se escondia e não queria aparecer mais. O que é ser uma pessoa comedida! Fez-se em pouco tempo tão conhecida que não teve outro remédio senão pôr os pés dali fora, antes que a recolhessem contra vontade.
Levantou campo e eu não tive outro remédio senão acompanhá-la. Passou para a Espanha e, no caminho, tivemos nossos incómodos que foi de uma queda que deu de um burro abaixo e de que quebrou a cabeça de cuidado. Pobre de mim, levei a viagem toda, entaipado entre fios e panos, por cuja causa não posso dar notícia de vista, senão de alguma coisa que ouvia e isto era muito pouco, porque sobre os panos e fios ditos havia uma coifa e um lenço. Enquanto não esteve boa a ferida, vi-me e desejei-me. Que triste vida passei perto de três semanas, não de passar mal mas de aflição, sem poder ver nem ouvir, sendo esta toda a minha paixão. Chegámos a Espanha e aí fizemos assento uns quinze dias. Mas, ciganas, naquele país, não fazem grande fortuna. Por acaso, fomos a uma estalagem onde estava um Português que ficou louco de amores pela rapariga. E cá a minha santinha não perdeu vaza, conheceu-lhe a paixão, indagou pela qualidade do sujeito, soube que tinha mais de peso que de feitio. Entrou a meter-lhe à cara a cara da moça, pôs-lhe a virtude no Céu, a honra nas estrelas e disse-lhe que era filha bastarda do Adamastor, pelo grande que a pôs, mas que era preciso aquele disfarce por certas razões e o pobre homem comeu tudo. E pareciam-lhe papos-de-anjo. Deu logo mostras de namorado, deu dinheiro, e recebeu promessas. E a minha cigana, por sinais, deu licença à rapariga para que, com um sorriso, desse um ar da sua graça de que o outro ficou tão ufano que não se trocava pelo Prestes João. Assim passámos os nossos quarenta dias à regalada de moura, caindo em todos o miserável, sem nunca lhe darem a mão, do que ele tomou pé para se queixar. A cigana mestra não deixava de ser sua amiga. Mas como isto era tempo de Verão, não resolvia nada até o não ver nu, no que ela ia cuidando com toda a brevidade. O dinheiro ia correndo porque tudo o que ele tinha era redondo e a cigana punha sebo nos olhos da rapariga de modo que escorregavam as dádivas sem se sentirem. Mas toda a desgraça da velha esteve em que o Português soube de tal forma agradar à moça que ela deveras gostava dele, o que, percebendo a minha velha, que tinha uns olhos de lince, se desgostou bastante e quis pôr terra em meio. Mas já tão tarde que os dois tinham resolvido fugir, e isto tanto às escondidas que o não sabiam senão aqueles que o sabiam. Já se entende: no que cuidais, cuidamos. A cigana tentou dar o último golpe e pôr-se ao fresco, para o que se resolveu desta forma. Foi ter com o Português e, depois de lhe contar uma história muito grande, que me não lembra nem o princípio nem o fim, nem coisa nenhuma dela (razão por que a não conto), concluiu, dizendo que ela estava resolvida a deixar toda a companhia e ir-se só com a cigana moça para Portugal. E como sabia que ele lhe queria bem, se as quisesse acompanhar ela estava muito à sua ordem. O tal, que era só tolo em amor, deixou-se ir à corda, disse que sim, protestou-lhe, jurou. Mas não deu dinheiro, o que a cigana estranhou muito e conheceu que o homem não estava rendido, visto não largar as armas. E vendo que não fazia mossa por aqui, deu-lhe um remoque Bernardo, dizendo-lhe que seria bom ver o quanto havia de uma e outra banda, fazerem bolsa. E que, se fosse sua vontade, ela governaria tudo, porquanto era muito económica e não tão fácil de ser enganada nas estalagens. Nisto conveio o Português e se ajustou que trouxesse a cigana tudo quanto tinha de valor, que ele faria o mesmo. E que passando tudo de dinheiro a uma bolsa e de trastes a uma mala, ela governasse tudo. Caiu a pobre, trouxe o que tinha e veio cair na rede que ela mesmo tinha armado. Nesta ida e vinda deu ele parte à justiça que a cigana o tinha roubado, untando as mãos a quem havia de fazer a diligência, e apenas ela chegou com o seu trem, e tudo se uniu na acção de ela ser a depositária, salta-lhe a justiça com a ordem. Ela grita, bota-se aos abraços ao Português, que lhe valesse, em cujos abraços eu não perdi tempo, passei-lhe para a cabeça e ela foi levada para a cadeia. E logo o amigo se pôs a caminho com a ciganita. Os meus Leitores verão nesta cabeça o homem mais cioso do mundo, cujo cioso é o objectivo da