O Reino de Kiato/Capítulo 1

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CAPITULO I
NEVROZICIDA


O dr. John King Paterson era cidadão dos Estados Estados Unidos da America do Norte, formado em medicina, em Inglaterra, na cidade de Cambridge.

Concluidos os estudos, voltou ao seu paiz. Apetecia-lhe mais a vida de laboratorio do que a de clinico. Havia feito um curso brilhante de chimica e desejava continuar os estudos desta sciencia.

Mezes depois de ter chegado a New-York, installou-se em confortavel casa, uma de cujas espaçosas dependencias transformou em bem montado laboratorio. Homem forte, intelligente, novo, empregou toda a sua actividade na realisação de um sonho, que havia, na Idade Media, tentado muitos espiritos superiores. A visão que fascinou Brandt o deslumbrou tambem.

Paterson amanhecia no laboratorio, de gorro e avental, no meio de cadinhos, retortas, balões, maçaricos, bastões, provetas, frascos de todos os tamanhos e feitios com liquidos de cores diversas.

Sereno, mas de testa enrugada, fazia as suas experiencias, as suas analyses, na esperança de realizar o sonho — descobrir a Pedra Philosophal.

Obsecado por essa idéa, que durante seculos empolgou o espirito de grandes homens, trabalhava sem esmorecimento, convicto de que venceria. O fracasso de tantas mentalidades não o intimidava.

O insuccesso dos que trabalhavam naquelle certame fora devido ás poucas luzes do seculo, nascitura que era a chimica. O que havia então era o sortilegio grosseiro, a magia, o satanismo dominando os espiritos qne trabalhavam na transmutação dos metaes. A alchimia proclamava a isomeria, mais tarde acceita e confirmada pela chimica moderna. Berthelot sustentava que era possivel a fabricação dos corpos simples.

Paterson, quanto mais lia as velharias alchimistas, mais se convencia de que aquelles inconscientes feiticeiros haviam deixado theorias que a sciencia actual perfilhara. Elles affirmavam ser identica a composição dos metaes, isto é, a differença entre o ouro e o ferro, por exemplo, era a proporção dos elementos de que são formados. Havendo assim um corpo, ou antes um agente que alterasse as proporções dos elementos constituintes da materia, daria em resultado a mudança de um corpo em outro, o cóbre em ouro, o chumbo em ferro, etc. O agente, ou força que transformava o corpo, que lhe mudava a individualidade, conservando a substancia, alterando somente as proporções das moleculas, era a sonhada — Pedra Philosophal.

A sua formula existira, sabiam-na os que celebravam a missa negra; mas perdera-se no transcorrer dos seculos. Alguns signaes cabalisticos, intraduziveis, ficaram attestando a sua existencia, O mercurio dos philosophos e dos sabios, não era o mercurio metal, era um composto de diversas substancias, que se perderam na memoria dos povos, substancias que se combinavam sob a acção de forças sobrenaturaes, que agiam sob influencia do demonio.

A transmutação se fazia por um liquido chamado leite da virgem, leão verde.

O seu poder era de tal natureza que uma onça de mercurio dos sabios transformava em cem onças de ouro o mais vil metal.

Paterson queria descobrir a Pedra Philosophal com a chimica e não com a alchimia. O methodo experimental, a analyse, a synthese, que faltavam aos alchimistas na Idade Media, elle os tinha e com o seu auxilio chegaria á grande descoberta. O fracasso dos seus predecessores — pensava — devia-se á crença de que a transmutação dos metaes se fizesse ao ar livre. Para elle, o oxigenio da atmosphera, com o seu poder oxidante impedia que se alterasse a proporção dos elementos da materia.

Um sem numero de experiencias havia feito sem resultado. Exgottára os seus conhecimentos. Restavam-lhe pesquizas no vacuo. Falhassem, embora, estas, continuaria, pois grandes descobertas têm sido feitas pelo acaso. A composição do ar atmospherico não se deve a Lavoisier e sim ao imprevisto.

Semanas e semanas passou ao lado de uma machina pneumatica e os metaes não se transmutavam. Agora estava quasi convencido de que era o ether que se oppunha ao exito de suas experiencias. O ar conseguira eliminal-o; mas o ether que era imponderavel, que estava em toda a parte, dentro dos proprios atomos, como supprimil-o? Quando estudára o atomismo, impressionara-o a theoria do ether.

Era uma arrojada hypothese esta de que a sciencia se servia para explicar certos phenomenos que se passavam na natureza. O que se julga hoje um facto real, uma verdade, o futuro amanhã não provará ser uma hypothese?

A Pedra Philosophal não servia, pensava Paterson, somente para mudar em ouro todos os metaes, mas tambem para preparar um filtro cuja principal virtude era restaurar a saude nos orgãos doentes do corpo, remoçar as celulas envelhecidas, dar ao homem grande longevidade, supprimir quasi a morte.

Desenganado de obter a transmutação dos metaes, dedicou-se ao estudo do filtro de longa vida. Não queria supprimir a morte, concorrer para a maior desgraça do genero humano.

King Paterson não queria um filtro que impedisse á vida percorrer todas as etapas que lhe marcou a natureza, mas descobrir o antidoto da molestia da civilisação, o contra-veneno da nevrose que, sob diversas modalidades, mina aos poucos a vida dos povos civilisados. A ultima guerra, aquelle ataque de epilepsia collectivo, fôra aviso de uma futura catastrophe, que sacudirá os nervos de todas as nações do mundo numa formidolosa crise epileptica, se em tempo não se applicar um poderoso nervino.

Abandonou os mineraes pelos vegetaes. Deixou o laboratorio pelo campo. Ao despontar o dia sahia a herborisar, e quando se recolhia à casa, ás vezes ao sol poente, era carregado de folhas, flores, hastes, raizes e fructos. Colhia de preferencia plantas do grupo das «mimosas».

Paterson começou as suas pesquisas com o microscopio. As plantas eram previamente dissecadas, sendo seus estudos feitos de preferencia na «mimosa pudica», planta que tinha nervos, sentia.

Já a tinham chloroformisado e ella, sob a acção do anesthesico, portára-se como animal.

Paterson conseguiu fazer o estudo da ennervação da sensitiva e delle tirou conclusões que bastante o animaram a proseguir em seu projecto. Era preciso, parecia-lhe, misturar o sensorio vegetal com o sensorio animal para obter um producto sedativo de extraordinario poder. Era o — «contraria contralis curantur».

O rachis de um saurio de escamas douradas, muito indolente, habitante das altas penedias, foi escolhido para as suas experiencias.

Os nervos do lagarto, misturados aos da «mimosa pudica» e vinagre, foram levados ao vasio e ahi estiveram vinte e um dias, tempo este que Paterson julgou sufficiente para se dar a combinação.

Começou as experiencias fazendo injecções intravenosas do liquido obtido, em cobaias. Surprehendeu-o o resultado: um centimetro cubico injectado na veia produziu a morte do animal quasi instantanea, em horriveis convulsões tetanicas. Estava descoberto o «nevrozicida». Era preciso atenuar a força do medicamento, dosal-o,

Passaram as experiencias a ser feitas em coelhos: uma serie de immunisações, até o animal supportar uma dose de morte sem o mais leve abalo da saude. Continuou as experiencias em cavallos, dos quaes, depois de immunisados, extrahiu o sangue e deste o sôro, com o qual preparou um elixir que denominou «nevrozicida».

De posse do segredo, sua alma de yankee não acariciou a altruistica idéa de revelal-o a bem da humanidade. Os Pasteur são divindades que apparecem de millenio sem millenio. Só os predestinados, os stoicos, supporttam uma vida inteira de claustro, na escuridão de um laboratorio, vergados sobre a mesa de analyses, cercados de um sem numero de apparelhos, procurando o antidoto da dor, dos males do genero humano, dando combate á morte. E si, depois de annos de exhaustiva labuta, de prolongadas noites de vigilia, conseguem descobrir o remedio da raiva, da diphteria, do carbunculo, não fazem da descoberta um monopolio em beneficio proprio, regeitam pelo segredo avultadissimas sommas, respondem ás propostas que se lhes fazem que o segredo não lhes pertence e sim ao genero humano. A modestia destes santos chega ao ponto de desvalorisarem a sua obra affirmando não ser ella producto de seu esforço, de seu trabalho, mas do de milhares de gerações, de homens que os precederam construindo o vasto templo da sciencia.

Paterson não comprehendia as filigranas affectivas do latino. Anglo-saxão, via a vida por prisma differente. A remuneração do trabalho impunha-se-lhe ao espírito como o instincto da conservação.

Havia gasto annos inteiros a illustrar-se, dispendido grandes sommas com a cultura de seu espírito, immobilisado portanto um capital, para, no momento de usufruir os lucros, pagar-se do trabalho desvendando o seu segredo, a bem do genero humano? ... Seria um fraco, um vencido, se assim o fizesse. Cometeria um erro, um crime contra a humanidade.

Rockfeller se tivesse desde o começo de sua vida distribuído, entre os que soffrem, parte de seus lucros, si não os tivesse accumulado, não seria um bemfeitor do genero humano. O dinheiro ter-se-ia escoado de sua bolsa para a sacola do pobre, porém á surdina, sem reclame quasi inutil, e o nome se lhe apagaria logo após a morte. Pouco valor teria a sua obra. O que Rockfeller fez deu muito melhor resultado. Accumulou um grande thesouro e depois espalhou pelo mundo inteiro a sua philantropia. Não se limitou a beneficiar a sua patria, ultrapassou-lhe os limites e foi levar a povos de outras terras e de outros climas allívio ás suas enfermidades.

Paterson queria primeiro ser remunerado, que se lhe pagasse capital e juros para depois alliviar, se quizesse e como entendesse, os soffrimentos humanos.

Os milhões que Pasteur rejeitára pelas suas descobertas, Rockfeller os gastava agora espalhando pelo mundo inteiro a obra e a gloria do sabio francez.

Esta obra entrou em domínio público no contexto da Lei 5988/1973, Art. 42, que esteve vigente até junho de 1998.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.