O Reino de Kiato/Capítulo 2

Wikisource, a biblioteca livre
CAPITULO II
PATERSON EMBARCA PARA LONDRES.


PREPARADO o nevrozicida, foi enfrascado e primorosamente rotulado, para entrar em circulação.

O baptismo do remedio seria a reclame, mas como preceitúa o ritual americano: intelligente, berrante, a accordar o publico absorvido na intensa luta pela vida.

Paterson, não se achando habilitado para tão difficil tarefa, dirigiu-se a um especialista e contractou por alguns mil dollares o plano da propaganda. Não seria o annuncio esteril de quarta pagina de jornal, mas annuncio que impressionasse por um ou mais sentidos.

New-York despertou um dia atordoada com a reclame do nevrozicida. Lia-se o annuncio por toda a parte. Cartazes, affixados nos lugares mais frequentados pelo publico, representavam, em bellissimos chromos, diversos doentes que com o milagroso remedio haviam alcançado a cura. Bandos de palhaços, vestidos de corres berrantes, percorriam as ruas, a fazer piruetas, distribuindo reclames. Uma walsa intitulada — Nevrozicida — ouvia-se, tocada por fanfarras ambulantes, espalhando-se por todos os cantos da cidade. Em todos os bairros estava o annuncio. Os vehiculos levavam-no affixado, dentro ou fóra, para que fosse visto por todos.

Um aeroplano fazia evoluções, atirando sobre New-York nuvens de prospectos. Um canhão automatico detonava de 15 em 15 minutos, vomitando milhares de annuncios pelos suburbios da capital, a alguns kilometros de distancia.

A nova do apparecimento do nevrozicida havia chegado a toda parte. A maioria não acreditou na panacéa, porém um sem numero achou possivel a descoberta. Eram estes os doentes que o remedio dizia curar, eram os nevroticos, em suas modalidades diversas, que viam surgir uma esperança e que, na sua desgraça de condemnados ao eterno soffrimento, não podiam deixar de acarinhal-a.

O successo do remedio excedeu a espectativa do dr. Paterson. Muitos doentes, altamente sugestionados por si proprios, curaram-se. Estas curas por auto suggestão foram o maior dos reclamos.

A filha de um archimilionario, paralytica e hysterica, caminhou e ficou sã, o que deu mais fama ao remedio.

Os habitantes da cidade foram-se convencendo pouco a pouco da efficacia do remedio, mesmo os que tinham condemnado a descoberta.

No fim de alguns mezes, Paterson estava millionario. Possuia uma somma dez vezes maior que a que havia gasto, porém queria ser mais do que Rockfeller. Os Estados Unidos não lhe podiam dar os milhões, que sua ambição desejava.

Exploraria a Europa. Iria a Londres, Paris, Berlim, Vienna, aos grandes centros do mundo, emfim.

Dispoz os seus negocios e embarcou para Londres em um transatlantico inglez.

O navio era enorme e de todo o conforto.

As alegrias daquelle pequeno nucleo humano contrastavam com as tristezas do oceano.

A vida a bordo passava-se num intermino contentamento. A par dos gosos de opipara mesa, as diversões do espirito.

Durante o dia fazia-se musica, cantava-se, dansava-se.

A’ noite, cinema, theatro e dansas.

Para não ficarem segregados do mundo, havia imprensa a bordo, que pela manhã noticiava os factos mais importantes occorridos em toda a terra. Eram os milagres da telegraphia sem fio.

A viagem ia-se fazendo entre risos e cantares.

Um dia o mar irou-se; a sua superficie, que era qual a de um lago de saphira, crispou-se, fez-se revolta, grandes ondas se ergueram em montanhas alterosas e o navio, que vinha singrando como um batel em quedas aguas, tornou-se um joguete nas mãos do enraivecido titan.

A bordo não mais se ouviu uma nota alegre.

O vento uivava nas obras mortas do navio, querendo destruil-as.

Os passageiros, amendrontados, recolheram-se aos camarotes, e afflictos avaliavam a furia da tempestade pelos tombos da embarcação, que espinoteava saccudida pelas ondas numa instabilidade perenne.

A maruja a postos e o commandante no passadiço eram testemunhas d’aquelle imponente drama.

Que podia oppor a humana força á furia desencadeada do vento e do mar?

Os mastros rangiam na imminencia de serem arrancados pelo vendaval. As gaveas tinham sido quebradas e o vento as lançara ao mar. As bigotas e os cabos se haviam rompido e as enxarcias, cahidas a meia nau, eram aos poucos carregadas pelas ondas.

As helices moviam-se no ar quando o navio, trepado á crista de uma vaga monstruosa, afocinhava no abysmo.

As ondas varriam a coberta, espadanando espumas de bombordo a estibordo, salpicando até as cestas das gaveas, não alagando o navio, não o afundando por se acharem fechadas as escotilhas.

Parte das obras mortas tinham sido levadas pelas vagas. Os mastros achavam-se de todo nús. Até as antennas do telegrapho tinham desapparecido.

Embora sua grande tonelagem, a tempestade brincava com o navio como um pedaço de cortiça. Havia dez horas que começara a tormenta. Fôra precisamente á meia noite, quando o sarau ia em meio.

Eram dez horas do dia, o sol estava alto e o céo parecia envolto ou alumiado pela claridade baça de um crepusculo vespertino equatorial.

O vento foi amainando, tornando-se brando, acabando em brisa. O mar que se erguia em altas rochas foi se achatando e a sua superficie cavada, nivelou-se como a face de um tranquilo e sereno lago.

A treva foi porco a pouco esmaecendo, diluida pela luz, o mar, o céo, o navio individualisando-se na grande téla, os uivos da tormenta calando-se, e dominando tudo o silencio das solidões marinhas.

Camões já havia cantado o contentamento até das cousas depois de «procellosa tempestade».

A bordo, voltava a vida com esperança de «porto e salvamento».

Os camarotes foram se esvasiando e os salões enchendo-se. As figuras dos festeiros, amarrotadas, nem pareciam aquellas de dias atraz, frescas e rubicundas as feições e o espirito alegre e socegado.

Dez horas de temores e de sobresaltos, a mudança brusca da paz para o perigo, da alegria para a tristeza, tinham-lhes cercado os olhos de roxo, da aureola da vigilia e da meditação.

O commandante fiscalisava o serviço da maruja no concerto das pequenas avarias, que o das grandes era impossivel fazer.

As machinas estavam desarranjadas. O navio, meio desarvorado, não chegaria a Londres. Era preciso arribar. O commandante reuniu os passageiros e expoz-lhes a situação.

O peior é que a tempestade os havia isolado do mundo, destruindo o apparelho telegraphico e impedindo assim qualquer pedido de soccorro. Nem das velas podiam valer-se, pois o vendaval as havia arrancado dos mastros e sepultado no mar.

Arrastando-se, com uma marcha de cinco milhas por hora, o transatlantico seguia para desconhecido porto.

Esta obra entrou em domínio público no contexto da Lei 5988/1973, Art. 42, que esteve vigente até junho de 1998.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.