O Reino de Kiato/Capítulo 5
Os edifícios eram todos na cidade antiga.
Paterson atravessou a capital moderna e achou-se em ruas estreitas, de predios de tres andares, que attestavam a decadencia da architectura. Tinham porém as fachadas limpas, as quaes os habitantes não deixavam encardir.
O portão do primeiro edificio em que parou era de grandes dimensões, Lia-se n’um frontão de marmore — Penitenciaria.
Nem um soldado no vestibulo. Dentro do casarão um ruido de ensurdecer. Eram sons de todos os timbres e alturas que, fundindo-se numa onda cavernosa, espalhavam-se por toda a cercania.
Paterson entrou no atrio. Não havia porteiro. Esta figura era ali, como em toda a parte em Kiato, representada pela campainha electrica. Porteiros houve no tempo da decadencia, quando a molestia invalidava o homem.
Annunciou-se. No fim de alguns minutos appareceu-lhe um homem de meia idade. Typo digno daquelle povo forte. Depois dos cumprimentos, Paterson mostrou desejos de visitar a penitenciaria, então transformada em uma fabrica de calçados.
Acompanhado do gerente entrou e juntos percorreram todas as secções daquella grande colméa.
No tempo da decadencia o edificio era occupado por quinhentos malfeitores, victimas do alcool e inuteis á Nação. Agora eram algumas centenas de homens e de mulheres ennobrecidos pelo trabalho, honrando a especie humana.
Reinava alli absoluta ordem, absoluta limpeza, absoluto silencio. Zelosos, activos, os operarios se moviam calados, dadas as ordens por apitos ou toques de sineta.
Ainda não accordára daquelle como que sonho e já se lhe deparava novo, enorme edificio. Era o — Forum — nome que se lia no frontão de marmore.
A porta do vestibulo estava aberta e dentro parecia não estar ninguem. Entrou. Procurava o botão electrico para annunciar-se, quando leu um quadro appenso á parede: — «Pode entrar e satisfazer a sua curiosidade».
Paterson sorriu e entrou.
Logo que transpoz o atrio, achou-se num espaçoso salão ricamente ornado, um palacio de fadas. O mobiliario era feito com as madeiras mais preciosas do Reino e estufado com os mais caros veludos.
Ao centro do salão, uma comprida mesa coberta de damasco violeta, de mogno, insculpida de filetes de marfim. Em uma das cabeceiras, uma poltrona e de cada lado seis cadeiras tambem de braços, assento dos treze juízes que tinham de julgar em ultima instancia os delictos de seus concidadãos. Sobre a mesa erguia-se uma estatua de um metro de altura, a Justiça, representada por uma mulher, de olhos vendados, tendo n’uma das mãos uma balança e na outra uma espada. No pedestal, esculpida em placa de madeira, esta legenda: — «Este é o symbolo mais falso da justiça humana, aqui collocado no tempo em que os homens pervertidos e embrutecidos pelo alcool, reunidos em conselhos, julgavam o seu semelhante; alguns vinham bebados e outros com a consciencia vendida. Lavraram-se aqui sentenças de morte condemnando innocentes á forca. Conserva-se esta pagina flagrante da nossa decadencia como uma affirmação do poder do espirito humano na conquista de sua perfeição».
Empolgado por éssas palavras, Paterson veio outra vez para a rua. Não tardou a encontrar esta placa — «Asylo de Alienados». A mesma curiosidade que o levára a percorrer os outros edifícios, fêl-o entrar.
Não sei o que mais admirou o visitante: si os machinismos, si a ordem, a disciplina, a excellente qualidade dos tecidos. Que estofos!...
A sêda primava pela qualidade dos fios e pelos padrões. A materia prima era producto do Reino. Uma variedade de «bombix» havia em Kiato que produzia fio mais fino e mais forte do que o do «bombix» commum. A selecção produzira tão preciosa variedade. A molestia da borboleta, que se transmittia á crysalida, grassou como verdadeira epizootia em todo o Reino.
Mas, depois da decadencia, um medico descobriu a prophylaxia do mal, augmentando assim a riqueza publica.
A sêda constituia uma excellente industria em que se occupavam muitas mil pessoas, especialmente mulheres e toda era exportada, pois este tecido os habitantes de Kiato o proscreveram pouco tempo depois de sua regeneração. Os seus manufactores auferiam grandes lucros com tal commercio. Livre a exportação de qualquer tributo, transformaram-se em fabricas as alfandegas da epoca da decadencia.
Paterson continuou a sua visita. Os hospitaes, os asylos, o parlamento, os edificios dos diversos ministros, as repartições de fazenda, os palacios de recreio da familia real — eram hoje occupados por diversas industrias.
Para que hospitaes, si não havia doentes? Manicomios, si não havia loucos? Asylo de Mendicidade, si não havia mendigos? Para que Parlamento si as leis se resumiam nestes dois preceitos — cumpre o teu dever e respeita o direito dos outros — e estavam na consciencia de todos os kiatenses, que os cumpriam religiosamente?
Paterson ia voltar ao hotel quando divisou ao longe uma estatua. Uma estatua!... exclamou.
Um povo tão original a quem perpetuaria no bronze? Curioso, aproximou-se. Estava o Nazareno, de pé, sobre um pedestal de metros de altura, no seu elevado porte, a imagem perfeita, vestido em sua tunica de purpura, na posição de quando pregava na montanha.
A estatua era de marmore cor de rosa, mas as tintas das vestes eram de diversas cores, tão indeleveis que pareciam frescas.
No pedestal de marmore negro lia-se, em letras de alto relevo, o decalogo. Mais abaixo, esta inscripção: — «Descobri-vos e ajoelhai-vos ante o homem que pregou ha seculos a fraternidade humana. Abstrahida mesmo a sua origem divina, fica ainda um dos maiores vultos da humanidade.»
Paterson admirava em soliloquio a perfeição a que havia chegado aquelle povo. O decalogo observado daria como consequencia — «a fraternidade humana»?
Como cumpril-o si o homem, embrutecido pelo alcool, não o podia comprehender? Era preciso primeiro purifical-o, e a desintoxicação não se faria em pouco tempo: seriam precisos dezenas de annos, abalar até os alicerces o edificio social e depois reconstruil-o em moldes novos. Uma vez reconstruido de accordo com os mandamentos da lei de Deus, reinaria a paz em todo mundo.
Cada vez mais curioso, perguntou por outras estatuas a um transeunte. Apontou-lhe este tres, em cuja busca se foi.
A empreza não se tornou difficil. Pouco adeante encontrou a estatua de Pasteur: sobre elevado pedestal o vulto do sabio francez, a physionomia de santo, sopeando tres dragões degoliados: a raiva, a diphteria, o carbunculo... No pedestal esta legenda: — «Ajoelhai-vos deante do maior bemfeitor da humanidade até hoje».
Paterson poz-se de joelhos, e entoou muda saudação ao vulto mais imponente da humanidade.
Visitou a terceira estatua, a do rei Pantaleão I. Era fundida em bronze.
Trajava como os seus subditos. Na mão direita tinha uma espada. Da mão esquerda pendia uma folha de marmore em que se lia: — «Cumpri o vosso dever, respeitae os direitos de vossos semelhantes e a paz estará comvosco». Calcados sob seus pés, tres abominaveis monstros, qual mais hediondo, abertas as fauces: o alcool, a syphilis e o tabaco.
Na base da peanha lia-se:
— «Amai e respeitae a memoria deste grande homem que, com uma energia sobrehumana, conseguiu exterminar em sua patria os maiores flagellos da humanidade. Elle foi um illuminado, um super-homem, cuja memoria se perpetuará até á consumação dos seculos».
A quarta estatua, em marmore, era de Jenner e reproduzia com fidelidade a figura do sabio.
Na peanha deitava-se um varioloso da fórma confluente, apodrecendo vivo, uma copia flagrante do real. Observando-se detidamente a devastação da molestia naquelle corpo, em que as carnes putrefactas se fundiam num liquido peçonhento, a illusão era tal que o olphato parecia sentir o cheiro nauseabundo da salmoura fetida, que escorria das carnes corrompidas. Tinha-se uma sensação do real: a figura parecia de carne humana dissolvendo-se em pús.
Trazia, no pedestal, estes dizeres:
— «Jenner foi um vidente. Acha-se aqui como um dos maiores bemfeitores do genero humano e em particular como o salvador de Kiato, que viu morrer metade de seu povo durante uma epidemia de variola».
Paterson voltou ao hotel. Esse povo era effectivamente grande, dizia comsigo. Para elle, o merito estava na razão directa dos serviços que o homem presta aos seus semelhantes, o que provavam as estatuas.
Os heroes que se sagraram no campo da batalha, os Napoleões, porque não eram perpetuados no bronze? Seria possivel que não os tivessem? Onde estavam os seus Annibal e Cezar, conquistadores de alheias terras, escravisadores de homens, para a sua patria?
Tinham, sim, e á sua memoria já haviam erguido monumentos. Mas, ao despontar da era nova, recolheram-nos aos museus, como documentos historicos. Não podiam figurar nas praças de um Reino sendo execrados pela população como homens que destruiram, que mataram, que nada fizeram pela felicidade do genero humano.
Esta obra entrou em domínio público no contexto da Lei 5988/1973, Art. 42, que esteve vigente até junho de 1998.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.