O Reino de Kiato/Capítulo 4

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CAPITULO IV
A IMPRENSA


PATERSON passou a noite em sonhos alegres. Pela manhã, despertou satisfeito. Já os jornaes do dia estavam sobre a secretaria. Como tinham chegado até ali, ignorava.

Feita a toilette, refestelou-se numa poltrona, com os cinco diarios da terra. Estava curioso por conhecer a imprensa de paiz tão original, que lhe parecia o reino das mil e uma noites.

O primeiro jornal que abriu maravilhou-o pela feitura material. Papel e impressão não podiam ser melhores. Era escripto em inglez. Começou a leitura e logo se interessou. Era um bem lançado artigo sobre hygiene escolar. Leu-o, num crescendo de enthusiasmo. As ideas expendidas eram novas e os conselhos de alta sabedoria.

Seguia-se-lhe outro artigo — «Desordens produzidas pelo tabaco no organismo humano».

Leu e pasmou deante da erudição do autor. As molestias originadas pelo uso do fumo eram tratadas com proficiencia. As desordens dos centros nervosos atacados de preferencia pela nicotina descrevia-os com simplicidade, com clareza, ao alcance de todas as intelligencias As falsas intermitencias do coração e alguns tics nervosos mereciam aprofundado estudo.

O terceiro artigo intitulava-se: — «Agua que não é potavel e aseptica não deve ser usada». Paterson leu com prazer aquella excellente lição. O autor provava que uma agua pode ser potavel e não ser aseptica e vice-versa.

O que causou pasmo ao americano foi a descripção do manancial que abastecia a cidade, obra que tocava ás raias do inverosimil. Não era a obra d’arte em si, o enorme tanque de marmore que servia de reservatorio, os filtros inventados por um engenheiro da terra e fabricados com uma argila especial, superiores aos de Pasteur, o systema rapido de arejar agua, a téla metallica de malhas meudas evitando a entrada do menor insecto, a cobertura do manancial a certa altura da superficie d’agua, permittindo a circulação do ar, mas impedindo o menor raio do sol, não era tudo isso o que deveras maravilhava e surprehendia Paterson. Era a resolução do grande problema — a destruição das toxinas sem prejuiso das qualidades potaveis e inocuas da agua.

Seguia-se-lhe um artigo com esta epigraphe: — «A syphilis é o segundo flagello que persegue a humanidade.»

Era uma lição em estylo simples, mas fluente, o historico desta terrivel enfermidade, extincta no Reino. Mostrava como destroe o organismo humano, sua transmissão a successivas gerações. Provava com grande clareza que o virus é levado pelo spermatozoide ao ovulo e como este é fecundado e ao mesmo tempo infeccionádo. Assim, ao feto se transmitte a syphilis do organismo que o gerou. Provado como o ser se contamina na vida uterina, explicados estão os abortos, os «natimortus», as creanças que morrem de fraqueza congenita, dias depois de nascidas. O autor, para corroborar suas asserções, publicava uma estatistica dos natimortus e dos recem-nascidos antes e depois da extinção da syphilis. O valioso documento era um attestado insophismavel contra aquelle virus.

Por elle se via que, dois annos depois de desapparecida a syphilis, a cifra dos obitos foi decrescendo annualmente e que, quarenta annos depois, foi registrado um só «nati-mortus».

Seguia-se uma serie de considerações e de conselhos de prophylaxia, não áquelles que viviam no Reino, mas aos que estivessem em via de sahir, pois onde quer que fossem haviam de encontrar-se com o flagello.

Os casos pathologicos, os mais horrorosos de origem syphilitica, eram relatados de modo a impressionar os mais indifferentes. A syphilis era, como o alcool, inexoravel; não se limitava a atacar a victima, não se satisfazia em vel-a apodrecendo carnes e ossos, em desfigural-a, tornal-a abjecta, repellente, exsudando pús por todos os poros; levava seus males á prole, a cinco gerações seguidas. E fora este monstro, cuja peçonha é tão virulenta, tão resistente, que passa do pai ao filho até o filho do trineto, que um rei energico e sabio, um predestinado, depois de uma lucta de algumas dezenas de annos, conseguira matar.

Seguia-se o artigo: «O alcool é o factor primordial do suicidio». Pagina de moral e de sciencia, descrevia scenas sentidas e vividas. O autor provava que o suicida é um alienado, que foi procreado por um alcoolico, como tambem o epileptico, o assassino nato, o ladrão, emfim todos os tarados, a escoria vil da pobre humanidade.

Depois de varias considerações, de exemplos os mais frisantes, provando ser o alcoolismo uma enfermidade hereditaria, contra a qual, salvo rarissimas excepções, são de nenhum effeito a vontade e os conselhos baseados na san moral, publicava uma estatistica dos crimes praticados em Kiato antes e depois da abolição do alcool.

Os suicidios, os assassinatos, os roubos, os attentados ao pudor, o adulterio, todos os crimes foram decrescendo até se acabarem de todo. Fazia vinte annos que se tinham fechado as penitenciarias do Reino.

As duas primeiras paginas do jornal constavam de artigos uteis á collectividade, de estudos de agronomia, ensinando a amanhar os terrenos, cultival-os, adubal-os, aconselhando a melhor qualidade de adubo para esta ou aquella especie vegetal. As outras duas paginas eram reservadas a annuncios, mas até no reclamo via-se a bôa moral daquella gente: era laconico, um simples aviso sem os engodos do yankee.

Paterson passou a ler outro jornal.

Qual não foi a sua surpreza quando viu que tinha cinco exemplares da mesma folha, escriptos em differentes linguas. Havia lido a edição em inglez; os quatro numeros que restavam eram publicados em francez, hespanhol, allemão e italiano.

Paterson estava maravilhado. Seria possivel que naquella terra não houvesse politica?! Que não houvesse desavenças?! Conhecia a imprensa dos paizes mais cultos do mundo e toda ella era o reflexo do viver daquellas sociedades, com todos os seus vicios e miserias.

Interessado cada vez mais por conhecer a vida idea daquelle povo, levantou-se, foi ao salão de jantar tomou chocolate e sahiu.

Esta obra entrou em domínio público no contexto da Lei 5988/1973, Art. 42, que esteve vigente até junho de 1998.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.