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O Reino de Kiato/Capítulo 9

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CAPITULO IX
A CASA REAL


COMEÇAVA a nova estação. Quasi todas as manhãs chovia. Paterson não podia sahir e para matar o tempo conversava com o hoteleiro, ao qual muito se havia affeiçoado.

William Robert ia-o instruindo na historia do povo kiatense, nos costumes, que tão bem conhecia. Contava a extranheza que lhe causára o viver da familia real. Acostumado a ver na pessôa de um rei um ser com alguma cousa de divino, com privilegios e regalias que tocavam á insania, pasmou ao conhecer a vida de Niel, rei de Kiato. Tinha o titulo de rei, mas era o cidadão da mais liberal democracia.

Havia quasi duzentos annos a dynastia de Kiato soffrera um grande desastre. Reinava Pantaleão I, devasso e bebado.

Era casado, tinha filhos, entre os quaes uma rapariga de quinze annos, por quem tinha excessiva affeição. Uma de suas amantes, porém, parecia-se tanto com esta que se diriam irmãs gemeas. Enciumado, resolveu matal-a, a amasia.

A’ tarde de um dia de grande bebedeira, estava o rei, allucinado, em completo delirio, na sala de armas, quando a filha amada passou. Em sua allucinação, confundia-a com a amasia. Armou-se de uma pistola, sahiu-lhe na pista e pouco adeante matou-a, ecoando a detonação pelas dependencias do palacio. Em breve, o cadaver foi cercado pela familia, famulos e soldados.

Pantaleão, fóra de si, voltou á sala de armas, sentou-se, e o seu espirito ficou em completa anesthesia até o dia seguinte. Procurando-o, encontrou-o a rainha ainda com a arma homicida na mão, de todo estupidificado. Julgou que o seu pranto, a sua angustia, manifestada em fundos ais, em lamentações dolentes, acordassem aquella alma, chamassem-na á realidade da vida, mas illudiu-se. Em seu delirio, Pantaleão nada ouvia, nada comprehendia. Era um homem physicamente morto.

Acordou pela manhã. O estado agudo havia desapparecido, mas ficára-lhe, numa baralhada de pensamentos, lembrança muito vaga do crime, uma sombra meio esmaecida, que a memoria no seu embotamento deixava de avivar.

Ergueu-se o rei do leito, ainda cambaleante, vestido como o haviam deitado, e procurou os aposentos da rainha. O encontro foi um lance penoso. Elle ouvia, meio aparvalhado, as recriminações da mulher, que torturada por aquella grande magua; relatava o desgraçado acontecimento, condemnando-o com toda a crueldade de um coração de mãe profundamente golpeado. Atordoado a principio, foi despertando, sentindo a consciencia renascer, pondo-se em mais estreitas relações com o meio, percebendo melhor as imagens que lhe acudiam ao cerebro, até que a visão do crime se fez mais nitida e a lembrança do tragico acontecimento mais viva.

Pantaleão duvidou do que via dentro de si. Era tudo um pesadelo. Bem podia ser que ainda estivesse bebado!...

Comprehendeu a rainha que elle queria crer, mas hesitava. Pediu-lhe que a acompanhasse á camara ardente. O cadaver era a prova material do crime.

A lembrança do assassinato foi-se-lhe avivando e minutos depois aquelle espirito meio embrutecido pelo vicio era esmagado pela verdade. Acabrunhado, recolheu-se o rei aos seus aposentos. Só tinha socego quando dormia. O seu despertar era todos os dias o despertar do afflicto, uma angustia cruciante. O primeiro pensamento que lhe acudia ao cerebro era o assassinato da filha. E a tortura continuava até á noite, quando, vencido pelo cançaço, já a deshoras cahia num lethargo doentio. Assim foi semanas inteiras. Causava dó sua figura. A tortura lhe havia macerado as feições, apagado o brilho dos olhos e, para completar a hediondez do rosto, a cabelleira e a barba hirsutas, que os dias de dor tinham embranquecido, emmolduravam-lhe o facies livido, macilento como o de um morto.

Fizeram-se funeraes com toda a pompa, consoante á posição da extincta e ao sabor dos preconceitos da sociedade de então; mas, nelles, o rei não tomou parte. Segregou-se e segregado esteve, mesmo da propria familia, até ao dia em que se sentiu regenerado, purificado pelo remorso. A dor havia resgatado o seu crime. Revivia, sahia da vasa immunda dos vícios em que se achava atolado havia muitos annos...

Estava salvo, Cumpria-lhe salvar o povo. Era preciso aniquilar o factor de sua desgraça, da desgraça do genero humano — o alcool. Era-lhe preciso uma coragem sobrehumana, um valor de super-homem, para vencer tão grande inimigo.

Meditou dias e dias. Acariciou a idéa de taxar com pesadissimos impostos as bebidas alcoolicas. Reflectindo, viu que não daria o resultado desejado. O proletariado deixaria de beber, a burguezia beberia menos e os ricos, os millionarios fartar-se-iam. Era meia medida. Além d’isso, á sua morte, subiria ao throno um filho, que talvez acabasse o imposto. Havia outra hypothese, cuja realisação não era impossivel. Uma Camara, composta em sua maioria de alcoolicos, podia supprimir a taxa; uma Camara composta, em sua maioria, de venaes, podia vender-se aos grandes industriaes de bebidas alcoolicas e supprimir o imposto...

A arvore devia ser arrancada com todas as radicellas, para nunca mais viver. Aquelle homem, perdido pela cultura de todos os vicios, transfigurava-se. Parecia mais uma presdestinação do que uma regeneração. Traçada a sua linha de conducta, agiu, mas agiu firme, indomito, sem esmorecimentos. Seu primeiro acto foi publicar uma mensagem aos seus subditos. Nunca houve documento mais sincero. Fazia o seu exame de consciencia em publico, accusava-se de enormes faltas, não procurando attenual-as, antes aggravando-as. Dizia que o remorso o havia purificado. Não se julgando de todo remido, entregava seu corpo e seu espirito á grande obra da regeneração de seu povo. Si fosse preciso, sacrificaria a vida na realisação do seu ideal. Seria inexoravel para aquelles que se atravessassem no seu caminho. Preferia destruir o seu reino, innundal-o de sangue, para, de seus destroços, de suas cinzas, de seus escombros, reconstruil-o; e, então, a paz reinaria até a consummação dos seculos.

A mensagem atemorisou uma parte da população do reino, mas irritou a outra. Na dia seguinte á sua publicação, começou o saneamento moral da côrte.

Os doze conselheiros de Estado foram exonerados por crapulas, deshonestos, e chamados para os lugares homens virtuosos, não encontrados na nobreza, mas nas classes popilares. As damas de honor, verdadeiras messalinas, suas alcoviteiras, foram dispensadas e substituidas por matronas respeitaveis.

A’ demissão do conselho do Estado seguiu-se a do ministerio e a dissolução do Parlamento.

A reacção começou, forte e radical. Aquelles golpes amiudados e de chofre, de uma ousadia assombrosa, estupidificaram o povo. Bem razão tinha Machiavel, quando dizia que na therapeutica politica dava excellentes resultados o derramamento de sangue copioso, porém instantaneo. Uma parte das classes armadas revoltou-se, emquanto a outra se conservou fiel ao rei. Os rebeldes foram batidos, os prisioneiros fuzilados, sem excepção de um só. O rei dirigiu em pessoa o movimento. Os nobres, os parentes da casa real, não mereceram indulto: morreram como rebeldes. Os preceitos de Machiavel davam resultado. O povo ficou em completa estagnação psychica, atordoado, depois de ter visto uma onda de sangue innundar a capital. O rei não descançava. Devia aproveitar o momento psychologico. Publicou então um edito prohibindo, em todo o reino, a fabricação e o uso de bebidas alcoòlicas, o plantio, manipulação e uso do tabaco, ficando marcado o prazo fatal de trinta dias, para desapparecerem de Kiato os vestigios de taes industrias. Os infractores seriam punidos summariamente com a morte.

As leis existentes foram derrogadas. Pantaleão não era rei absoluto, era dictador, que não hesitava em praticar a maior violencia, comtanto que estivesse convencido de que era para a salvação publica. De tão exagerado despotismo, nasceria a liberdade, a fraternisação dos homens.

O contagio do panico é fatal nas multidões. O medo havia contaminado todos os espiritos, acovardando-os. O rei aterrava-os como um duende, o genio do mal, do exterminio. Findo o prazo para a extincção das industrias do alcool e do tabaco, Pantaleão sahiu em pessoa, acompanhado de um esquadrão de cavallaria, a syndicar de cumprimento do edito. Quasi todos os industriaes tinham-se submettido. Porém, que desagradavel impressão causava ver apparelhos de grande custo completamente destruidos! Nem uma gotta de bebida alcoolica havia nos depositos! Todos os toneis vasios! Na visinhança das fabricas, parecia haver corrido um regato de vinho e de whisky!...

Os que julgavam escapar pelo subterfugio, apanhados em delicto flagrante, foram, dentro mesmo das fabricas, cruelmente justiçados com todos os seus operarios. Todos os instrumentos, todos os apparelhos foram destruidos pelo fogo, o que lhe augmentou, ao rei, a fama de perverso, tyranno e sanguinario.

Dez annos levou a collocar, sobre as ruinas do antigo, desmoronado até ás fundações, por toda a casta de vicios, as primeiras pedras do novo edificio social.

Promulgou leis sabias, severissimas. O ferro em brasa com que ia cauterisar as chagas daquella sociedade, arrefeceria á medida que se regenerassem os costumes. Tempo viria em que este povo resurgiria, dando lições de moral e de civismo aos outros povos da terra.

A base da saude do espirito é a saude do corpo. Juvenal já dizia: «Mens sana in corpore sano». Pensando assim, consagrava o rei uma parte de seu esforço á saude publica.

Na população do reino, havia uma parte estropiada pela diathese syphilitica, lepra, tuberculose, cancro, e as nevroses em suas multiplas e diversas modalidades. Os desgraçados, que apodreciam em vida, iam-se perpetuando, gerando novos desgraçados, condemnados a uma vida de padecimentos, sem esperança de salvação. Impressionou-se Pantaleão com o viver d'esses individuos, inuteis e ao mesmo tempo nocivos, dando-se logo a estudar os meios de estancar o mal. Um dilemma se lhe antolhou: supprimil-os ou hospitalisal-os ?

Mata-los, acto de misericordia, mas innominavel ; segregal-os, mesmo sob a mais severa das vigilancias, inutil para lhes evitar a reproducção. O instincto sexual difficilmente se refreia. Sómente o pudor, a moral, podem contel-o. Mas, nem sempre.

Como curar esses seres que tamanho mal causavam ao genero humano ? Deixal-os á satisfacção do sentido genesico, esterilisando-lhes a semente humana — era resolver o problema.

Reuniu então os mais sabios medicos do reino, para lhes pedir conselho sobre o caso. O mais velho dos esculapios respondeu que, estudando havia muitos annos o assumpto, pensava ter descoberto a esterilisação da semente humana nos varões e nas femeas, sem extracção dos orgãos que geram os spermatozoides e os ovarios. Bastaria uma injecção, somente uma, de um liquido extrahido de orgãos masculinos.

Resolvida, assim, a questão, em relação ás enfermidades hereditarias, transmissiveis de paes a filhos, os portadores do mal seriam hospitalisados, e por prudencia esterilisados.

A lepra era uma das molestias que grassavam em todo o Reino. Para evitar o contagio, segregaram-se estes desgraçados em uma ilha, dando-se-lhes meios de tirar da terra a sua subsistencia. Todos, homens e mulheres, eram esterilisados, enviados os novos casos para o leprosario. Não se abria excepção para pessoa alguma. E a lepra foi desapparecendo paulatinamente, até se extinguir de todo, em quarenta annos.

O casamento tornou-se obrigatorio a todo o cidadão, attingida a idade de vinte e cinco annos. Era, porém, necessario um rigoroso exame de saude nos noivos e nos seus ascendentes mais proximos. Um tuberculoso, um epileptico, um leproso, um canceroso, não podiam casar-se, assim como descendentes de alcoolicos, de pais ou de avós soffrendo d’aquellas enfermidades. A’ mulher, antes de vinte annos e depois de trinta e cinco, o casamento era-lhe interdicto. O celibatario consideravam-no nocivo á sociedade.

Pantaleão ainda viveu e reinou trinta annos após a regeneração.

Succedeu-lhe um filho do mesmo nome. Antes de morrer, chamou-o e contou-lhe, em eloquente synthese, a historia de sua vida. Dos homens o mais perdido, dos reis o mais nefasto, purificara-o a dor. Deixava o povo em franca via de regeneração. Que continuasse a sua obra respeitando assim os seus ultimos desejos. E expirou.

Pantaleão II, portador apenas de taras e diatheses, herdadas e não adquiridas, iniciou seu reinado nos moldes do seu antecessor. Faltava proceder á prophylaxia da syphilis, ou antes ao seu exterminio como o segundo inimigo da humanidade.

Esterilisados os incuraveis, exercida rigorosa fiscalisação sobre as mulheres publicas, decretado o casamento obrigatorio, tratados os enfermos curaveis, pela therapeutica de Kiato, mais adeantada que a dos outros paizes, a syphilis havia de desapparecer dentro de um seculo.

Pantaleão II foi digno successor de Pantaleão I. Reinado muito menos tempestuoso do que o de seu pae, pois as reformas mais importantes estavam feitas, continuava, porém, a obra de saneamento moral e physico, aperfeiçoando-se com o progresso, o evoluir da sciencia. O facto mais importante de seu reinado foi o combate á syphilis. Os que velavam pela saude publica, obsecados, viam em toda a parte o virus do mortifero morbus, e procuravam evital-o, tomando medidas de prophylaxia tão severas que tocavam ao exaggero.

A vida das desgraçadas meretrizes tornou-se uma tortura. Eram examinadas tres vezes por semana e interdictas quasi sempre. O casamento obrigatorio diminuiu-lhes a freguezia. Para não morrerem de fome, fecharam as portas.

As festas de nupcias, que no Kiato antigo se revestiam de grande pompa, perdiam o brilho á medida que o povo se purificava. O casamento se reduzia ao acto religioso e ao contracto civil, feitos com toda a simplicidade, sem corbelha nem fuga dos noivos...

Annos depois, quando aquella gente se havia de todo purificado, o contracto civil desappareceu, ficando apenas o acto religioso, para dar tons de legitimidade á união. Ainda havia, naquella gente, uns longes de respeito pelas leis da igreja e, embora levando uma vida de santidade, não se lhe tinha o espirito libertado de preconceitos arraigados num seculo de decadencia. Nalgumas familias, já o acto consistia numa cerimonia muito simples, mas solemne: reunida toda a familia, faziam os noivos, perante ella, o voto de se unirem para sempre, na vida e na morte. E após, retiravam-se para a casa onde iam viver. Para que contracto, si a palavra do cidadão de Kiato valia uma escriptura ?

Extincto o Forum, desappareceram com elle todas as figuras da justiça, desde o ministro do Tribunal Supremo té o meirinho. A familia tornou-se estado autonomo, dentro do proprio Estado. As heranças eram repartidas á revelia da justiça. Não existindo mais egoismo, maximo factor da desintelligencia entre os homens, o que poderia perturbar a paz, o socego do lar?

Para que serve a religião si não para obrigar o homem ao cumprimento do dever, a respeitar o direito de seus semelhantes — «ama ao teu Deus e ao teu proximo como a ti mesmo»? Em Kiato, cumprido fielmente o decalogo, as praticas religiosas não eram mais precisas. Desappareceram.

Esta obra entrou em domínio público no contexto da Lei 5988/1973, Art. 42, que esteve vigente até junho de 1998.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.