O Vaqueano/IV

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Sigamos o vaqueano.

Vai cansado da conversação que tivera, ainda que nas respostas denotasse verdadeiro laconismo.

Aproxima-se de um grupo em torno do brasio, aquecendo os membros engelados de frio.

- Que novas? - repetiram quatro ou cinco vozes repassadas de curiosidade. Ele por única resposta encolheu os ombros. Os outros o compreenderam; porque encetaram nova palestra, emborcando de vez em quando uma chaleira na boca de duas cuias que percorriam a roda.

- Chimarrão sem churrasco é laço sem argola ou relho sem açoiteira - ponderou sentenciosamente Manduca Pereira, célebre domador de Caçapava.

Os outros aprovaram com vivos sinais de assentimento e reflexão do companheiro.

- Laço sem argola! Antes mato sem madeira - acrescentou um lenhador que havia trocado por circunstâncias imprevistas o machado do trabalho pelo ferro dos combates.

- Lança sem lançeiro! - regougou enfaticamente um negro, hércules de porte, pertencente à arma citada.

- Deus enfim se amerceie de nós, porque nesse andar morremos de fome antes de lá chegarmos - tornou outro do rancho. - Pensem vocês o que quiserem, que eu cá, de mim para mim, vejo em tudo isso alguma praga de urubu.

- Não mata cavalo, por Deus, o digo!

- Mate ou não mate, o que é certo é que sete horas vão e nem um naco de charque nos passou pelo gasganete. Chimarrão sem churrasco! E por cima ainda ordem de não sair do acampamento para caçar! - insistia o lenhador.

- Não caçar!

- Hão de ver que lá o general há de ter...

- Cala-te, língua de caramuru - atalhou o Manduca -, não sabes o que dizes.

Um vulto, saindo da sombra, fulminou-os.

- Camaradas, o general não tem maior ração que vocês e, enquanto ele corre o acampamento, o lonqueais sem piedade. O que não quiser assim, monte no pingo e se vá aos pagos, com os diabos!

O murmurador amergeu a cabeça, corrido e envergonhado do tremendo carão à queima-roupa. E, como não tinha botões, disse aos alamares do poncho: Hépuxa! Se não fosse o general, outro homem não me falaria assim com tanta soberbia. E amimou o cabo da adaga na cinta.

Ao atravessar, Canabarro vira o vaqueano, e, lembrando uma incumbência para ele no dia seguinte, achegou-se para falar-lhe. Ouvira então o que conversavam sobre ele próprio.

- Bem, João de Deus, outra vez o deixo aqui nos bamburrais; e voltando-se para Avençal:

A que distância estamos da estância do finado Juca Capinchos?

O mancebo empalideceu e redargüiu com custo:

- Três léguas.

- Amanhã, você, ao apontar as barras do dia, irá ver trinta cavalos e outras tantas reses de que precisamos.

- Eu?!

Era uma interjeição e uma interrogação dum jato, grito espontâneo arrancado do imo do peito, revelação luminosa que a rude energia moral do campeiro não pôde recalcar e sofrer no momento. A hipocrisia oficial das cidades é que sói bronzear a face na manifestação dos sentimentos.

- Sim - tornou o general, retirando-se, sem notar o efeito que produzira a ordem. Avençal tinha o semblante lívido.

- É impossível, meu Deus! - exclamou fora de si. - É impossível! Não irei... matem-me embora.

Os outros o contemplavam admirados. Viam-no falar sobejante, ainda que não compreendessem o sentido da negativa.

O ambiente glacial daquela zona repercutiu com um berro vibrante e formidável. Era um canguçu atraído, quem sabe, pela fome ou pela iluminação da mata. Eles entreolharam-se.

- Má visita, patrícios.

Uma centelha fugiu dos olhos do vaqueano.

- Quem ousa matá-lo? - perguntou.

Ninguém tugiu.

Até o negro lanceiro se envolveu mais cautelosamente em seu bichará de mostardas.

Ele sorriu com o lábio crispado de insânia. A propósito chegava com dois cães um caboclo de origem charrua, chamado vulgarmente: o Manuelzinho.

- Saíra a tentar a caça.

- Eu iria - disse o índio - se a onça nos desse ao menos um bom matambre.

- Irei só, Manuelzinho, dá-me os cachorros.

- Só, não - acudiram todos. - Vamos acompanhar-te.

- E a ordem do general?

- A fome é lei. Nós havemos de conchavar sem pinotaços.

- Pois bem, prometo que, morta a onça, irei buscar bons assados.

Avençal paupou a faca revesada na guaiaca, tirou-a da bainha e experimentou o fio na palma da mão. Guardando-a, foi junto aos arreios e tomou as bolas de pedra retovadas de pele de lagarto. Estirou os fiéis, reviou-os e viu-os firmes. Para complemento dos preparos, desenfiou o poncho e atou-o à cinta à guisa de chiripá.

Os outros armados de espingardas, pistolões e lanças, o seguiram.

O que é admirável é que tais homens tinham queixas para tudo, menos para o tempo terrível e ao qual pareciam sobranceiros. Falavam de quaisquer outros incidentes, menos, porém, do frio intenso que cortava.