O Vaqueano/VIII

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O passageiro penetrou na sala.

Três exclamações rebentaram a um tempo, em coro.

- André! Rosita!

- Moisés!

André Capinchos e sua irmã rodearam o mulato, cuja epiderme de bronze empalidecera, a ficar fula. O destemido caçador tremia, tremia... De quê?

Tinha medo, ele que só se arreceava do braço de Deus, ele cujo punho robusto macerava os músculos das garras da onça, cuja clavina não errava um tiro, cuja faca não falhava um pontaço? Ele cuja grandeza o fizera o ídolo de uma tribo?

Não seria funda emoção?

Era tudo simultaneamente.

Travemos agora conhecimento com os novos personagens.

A família Capinchos compunha-se nessa épooa de duas pessoas: André e Rosa, irmãos.

O primeiro tinha uma bela fisionomia velada em melancólico descor, que denunciava uma mocidade abalada por fortes comoções morais. Quando a alma sangra, as rosas dos anos juvenis desbotam; o viço vai-se, resta a palidez da angústia entre os espinhos que pungem.

Então, contava trinta e dois anos.

Rosita era uma mimosa criação rio-grandense, o tipo sedutor da serrana; linda hortênsia como a que desabrocha nas suas florestas natalícias, figura radiante que demonstrava no moreno do semblante a aliança de duas raças, a comunhão do sangue americano e europeu.

Os olhos negros, úmidos de volúpia, eram como dois guabijus nos rocios da madrugada, refulgindo ao primeiro raio do sol; diziam tanto amor, tanta saudade que mais não!

Às vezes, dir-se-ia, vendo dentre os cílios veludosos fugir rúbea centelha, que uma tempestade rugia em seu coração. Então o rubor que lhe purpurava a face, esvaecia em ténue vapor, e o corpo, de contornos de uma estátua helena, sentia como lhe passar o fluido da morte.

O que era?

Deus e ela o sabiam, e quem sabe se ninguém! Há tanto mistério e incoerência numa compleição feminil, que mais vale atingir as raias do infinito, contar as areias do fundo do oceano que lhe profundar os pensamentos.

Há 12 anos, depois que perdera o pai, se um sorriso vinha engastar em seu lábio mórbido, distendia as pétalas da melancolia. Parecia trazer lágrimas de imenso infortúnio.

Choraria de constante aquela moça?

O que significavam as lívidas olheiras, mergulhando em sombras os lindos olhos?

Há arcanos num quarto de virgem que nenhum profano ousará jamais devassar.

Talvez chorasse por noites em que a imagem de uma saudade se reclinasse no seio túmido de suspiros, quando em ermas insônias uma visão deslumbrante lhe passasse pela mente, como uma estrela à face do céu, como uma pluma de colheireiro à flor do lago; talvez chorasse um passado que foi e não há de voltar.

Nós, os homens, naturezas graníticas, quantas vezes não folheamos o livro da florida razão da existência, enviando-lhe um temo saudoso, saturado de pranto que embarga a voz e nos faz descrer do futuro? Há momentos em que o passado resume todas as venturas da vida; porque o presente é uma agonia, o futuro, um mausoléu. Então ele vale mais que uma recordação agridoce, soberba flor do cacto entre os acúleos, sentimento que só o lábio luso derrama nesta harmonia: Saudade! Saudade!

Por que Rosita na vigésima-sétima primavera não terá também uma história - compêndio do sorriso que se entrelaça à lágrima? Ilha de delícias num mar de procelas?

O coração de uma moça, desde que atinge a nubilidade, enceta um romance, às vezes, rico em episódios, raros, quase excepcionalmente pobre de sentimento.