O Vaqueano/XII
Devemos algumas explicações ao leitor.
Quais as relações do vaqueano com o caçador?
Por que o último resolvera tomar parte na revolução, relutando ao princípio em acompanhar quaisquer das parcialidades?
Lancemos uma vista de olhos ao passado, onde se descortinam as peripécias de um drama congênere do que vamos esboçando.
Em 1813, Gil de Avençal, descendente de uma antiga família de vicentistas, que no começo do século 18 viera em demanda de novas terras, vivia na Vacaria, feliz e abastado. Menos inquieto que a raça ciclópea de onde provinha, raça que vencera todos os obstáculos e dotara o Brasil das fronteiras atuais. Gil sentara a tenda sedentária no sertão e deixara a vida deslizar como tranquilo regato à sombra do arvoredo. Deus lhe dera para cúmulo de venturas uma terna mulher e quatro loiras crianças, prole mimosa e gentil em que remoçava e a cujos sorrisos transparentes de candura desfranzia o cenho de natural carregado.
Possuía uma estância de seis a sete léguas.
Quem no pino do dia contemplasse seus dilatados domínios, os imensos plainos a perder de vista, teria um espetáculo digno de recrear-se. A úbera savana semeava a uma alfombra de turmalina com os mais variegados recamos, formados pelos reflexos de pêlos dos inúmeros rebanhos. Ali as reses não se contavam senão nos apartes. Se havia necessidade de carnear uma, dois laços iam procurá-la, um a enlaçava pelas aspas, e outro a pealava; e a abundância era tal que levavam apenas a porção mais preciosa. O que largamente remanescia deixavam para repasto dos urubus aninhados nos calvos mamilos dos cerros ou aos maracajás e cães selvagens, de espreita no debrum das selvas.
Nesta terra abençoada onde a charrua do progresso só há quatro séculos começou a rotear, todos têm o seu quinhão na distribuição dos bens; ainda a esfinge da miséria e do infortúnio sem nome não atirou aos ângulos do espaço um enigma desolado que faz aborrecer a vida e blasfemar de Deus. Ninguém morre de fome. Os frutos prendem das árvores seculares, a maniva rebenta por mil estolhos do terreno inculto, os campos pejam-se de armentio sem conta. Parecem dizer: "Pássaros do céu, habitantes das florestas e das campinas, vinde, isto tudo é vosso". O colono deixa a pátria, e das praias ultramarinas vem faminto, sequioso, desesperado ao éden do Colombo, à luz de um sol que alenta e não mata. A Europa é o Prometeu mítico, em cujas vísceras o bico de um abutre trabalha sem cessar: a comuna que há de arrojá-la moribunda às portas do futuro. Às vezes, o homem aqui mesmo arranca um grito de angústia, rola na degradação de sua própria entidade... Por quê? Porque herdamos com uma civilização estranha, importada diariamente, seus vícios orgânicos.
Esquecemos a originalidade que nos era própria pela cópia servil que nos mostra contrafeitos. Devíamos ser para imitar e não imitadores.
Deixemos, porém, a digressão e voltemos ao remanso da felicidade. Falemos de Gil.
Além dos cabedais mencionados, dizia-se que ele tinha em cofre riquezas fora de toda a estimativa, ouro que minerara em época remota nas lavras de Santo Antônio, perto de Caçapava.
O maior amigo do estancieiro era José Capinchos. Ocupava um dos principais postos da fazenda e era pago como nenhum posteiro do tempo. Recebia mensalmente quatro dobrões, três reses para alimentação, uma ração de tudo que se consumia em casa, devendo juntar-se a tais vantagens a permissão de criar numa sesmaria de campos e matos que lhe fora doada.
Capinchos tinha rara habilidade para insinuar-se no ânimo do amigo, que, em qualquer negócio, por mais íntimo que fosse, o consultava, fazendo sempre prevalecer sua opinião.
Maria, a mulher de Gil, via seus conselhos bons e santos, como o coração que lhe pulsava no seio, destruídos ao influxo de um estranho, a quem desde o princípio votara desconfiança, e para o qual sentia tão instintiva aversão, que procurar extingui-la foi sempre lhe dar incremento.
Era um anjo Maria. A asa negra dos pressentimentos tocou-lhe o cristalino lago da alma, riçou-lhe a superfície serena. Entristeceu a olhos vistos. E a prevenção em que estava para com o posteiro fizera-a, por vezes, como entrever planos tenebrosos que, incubados silenciosamente no cérebro, vinham refletir-lhe na fronte sombria. Mas calava tudo, recolhia-se merencória e resignada no santuário de suas virtudes, no amor de seus filhos. Não queria que o mais tênue laivo de dissabor anuviasse o céu do lar, onde jamais cruzara o losango de tempestades domésticas.
Uma tarde Capinchos saíra com Avençal a uma correria na selva. Dizem que voltara sozinho.
No dia seguinte, a casa do estanceiro era um lúgubre cenário, no quadro de horrores. Maria e três filhos tinham sido assassinados. O marido, ninguém sabia dele, bem como o primogênito das crianças.
Num ápice fora consumada uma tremenda tragédia!
A morte selara tantos lábios cintilantes da vida e inocência! Almas cândidas e puras o braço do crime abriu-lhes as veredas celestes, correu-lhes a cortina dos horizontes intérminos, atirou-as aos braços de Deus.
Quem desfez o idílio da ventura?
Que ave maldita soltou o pio agoureiro sobre a mansão plácida e risonha, o retiro campestre sumido e obscuro na imensidade dos desertos americanos?!
Foi o ninho do beija-flor no sarmento da mucunã. O pampeiro veio e levou-o.