O Vaqueano/XIX
Três dias depois vamos encontrar Avençal, pálido como um morto, em sua estância.
Era uma múmia do que fora.
A comoção moral o transformara em curto lapso. Há um quê de avelhentado naquele corpo no esflorir da juventude, uma ou outra plica já se esboça nos traços ontem cheios de frescor e vida, hoje sombreados por um desalento precursor da morte.
As velhices prematuras são como os frutos lampos, trazem no seio acético amargume, que transparece no palor da epiderme.
O moço está à espera de alguém.
Pelas quatro horas da tarde ouviu-se o chouto de um cavalo. Ele chegou à janela. Um ancião de barbas brancas e longas, cútis tostada com vincos profundos e verticais no esvão da sobrancelha, olhar viperino, nariz adunco como o do caracará, apeou-se do animal, onde os arreios desde a badana até a carona iriavam mil fulgores de finas pratas. O rabicho, freio, a testeira e as canas das rédeas de delicada lonca não carregavam menos tesouros.
Era José Capinchos.
Fizeram mútuos cumprimentos.
- Entonces, que retirada da nossa casa, Avençal. A Rosita não está muito às boas contigo. Não queres deixar mais a querência?
- Não é; vou partir. o cavalheiro Amaral está em perigo de vida. Inimigos poderosos o rodeiam. Vou partir e quem sabe se voltarei! Moisés acompanha-me, por isso retiro-me entregando-lhe a administração da estância.
- Mas que tu tens lá com os negócios dos outros?
- Amaral foi um pai que encontrei. Minha vida e haveres pertencem-lhe, desde que os queira.
- Faz o que te bacoreia o coração; porém, o casamento?
O moço empalideceu, mas com esforço heróico respondeu sem titubear.
- Nada arreceie. Um tesouro oculto ali confiá-lo ...
- Um tesouro?! - e os olhos lampejaram.
- Ouro em pó - e fitou-o com penetração.
- Em negócios de viver e morrer...
- O senhor ficará meu herdeiro universal... Espere-me enquanto vou desenterrá-lo.
- É longe? - perguntou.
- Não muito, uma légua.
- Vou contigo.
- Para que se incomodar!
- Vou, é perto. Era boato antigo que teu pai tinha panelas enterradas com imensas riquezas.
- Sabia?
- Por ouvir dizer.
O espírito do ex-posteiro sofria uma revolução que se revelava nos traços e lhe fazia ir maquinalmente afagar o cabo de prata de uma faca terçada na cinta.
Miserável criatura! Talvez estivesse pensando em matar o filho de sua vítima, algoz desapiedado.
Ambos montaram a cavalo. Avençal carregava uma enxada. Chegando na ourela da mata, apearam-se, puseram a maneia nos animais e desapareceram.
O moço percebia nos gestos de Capinchos maus desígnios, precedeu-o, mas guardando distância.
Pararam. A noite havia descido. O velho sentia calafrios, os cabelos se lhe eriçavam na cabeça.
Avençal fez ponto de respaldo no tronco da cajarana, arrimou-se a ela com o coração aos ímpetos.
Capinchos, tateando a treva, tocou a cruz. Estremeceu e perguntou em tom de terror:
- Onde estamos, José?
- Sobre a sepultura de meu pai, salteador!
A floresta iluminou-se de súbito aos clarões de muitos fachos. Ninguém apareceu; no entretanto, se fossem procurar encontrariam no cimo das árvores, nos esgalhos, atrás dos troncos, acocorados em touceiras de arbustos, suspensos em cipós, deitados no chão, índios cujos arcos alvejavam o peito de Capinchos.
Na penumbra da cajarana havia um vulto em pé. Seu braço apontava um mosquete na mesma direção, sua pálpebra não interceptava o raio visual, parecia a de uma estátua de mármorre.
Era Moisés.
- Lembras-te deste lugar?
- Queres enxugar-me - dizia sufocando o medo para travar do acicalado ferro.
- Quatorze anos há que meu pai caiu à traição! Tu, seu amigo, foste o autor de tão negro crime! Não quero assassinar-te, velho, quero matar-te junto desta cruz... Vês? No chão há armas de toda a sorte. Escolhe. .. Devia tratar-te como um perro...
O outro retrucou com audácia:
- Como me trouxeste até aqui, caborteiro, senão por embustes?
- E crês que uma vingança não é um tesouro? Pesado, velho, bem pesado! Fez estar-me o coração.
Capinchos ia dar um bote como uma caninana enfurecido.
Um grito terrível abalou a floresta.
- Tento, Avençal! Não brinques com a cobra. Basta de negacear.
Era tão oco o subterrâneo que se diria sair da terra.
Era o caçador.
Capinchos saltou sobre uma espada e enveredou para o mancebo; este aparou o golpe que resvalou pela enxada e, com um movimento rápido abaixou e tomou a outra.
As lâminas cruzaram.
- Por minha mãe - e fustigou-lhe a face.
Ele caiu de joelhos.
- Em nome de Rosita não me mates... Sou um infame, mas perdoa-me. Perdão! Moço, não queiras glória sobre um homem morto quebrado - pelos anos. .. Sim, José... Pelo amor que tens a Rosita. . .
Avençal arremessou a espada para longe de si.
- Não posso, não posso!
Moisés apareceu terrível como uma borrasca.
- José, que fazes?! - bramou.
- Moisés, não posso. ..
- Então... Também eu tive um pai; vou vingá-lo, porque tremeste, irmão branco!... O filho mulato fará o que não fizeste...
O ex-posteiro aproveitando o colóquio que apartava a atenção dele ia atirar-se sobre eles, quando se ouviu o ciciante estridor como de um bando de pássaros ao levantar o vôo. Era uma chuva de flechas que foram embeber-se-lhe no pleito.
Estava morto sem exalar um gemido.
Os guaicanã mostraram a face de cobre por toda a parte.
O caçador contemplou o cadáver nas últimas contorções, com desprezo.
Tinha tantas flechas que um índio o comparou a um coandu.
- Enforquem-no no galho por cima da cruz. Amanhã os urubus terão pasto, se quiserem comer carne tão ruim.
Os selvagens obedeceram em silêncio.
Voltou-se para o irmão, que assistia ao espetáculo sem consciência.
- Se te ofendi, José, perdoa-me.
O outro lhe caiu nos braços desfeito em soluços.
- Moisés, eu parto, vou morrer por aí caminhando... Fica com os meus cabedais.
- Estás louco?! Sou rico demais, sou senhor dos matos.
- Então reparte com os meus escravos. A vida é insuportável. Quero morrer.
- Não partirás...
- Oh, Rosita!... Rosita!...
E chorava como uma criança no estiolar das doces ilusões e sonhos queridos.
O mulato sacudiu a cabeça com tristeza e monologou mentalmente:
- Aquela gavota botou tudo a perder! Eu bem pensava mal que batesse palmas o bem falante do cavalheiro.