O carro nº 13/IV
Estando as coisas assim tratadas, não havendo obstáculo algum, fixou-se o casamento para dali a dois meses.
Amaro já abençoava o haver saído da fazenda, e nesse sentido escreveu uma carta a Marcondes agradecendo-lhe a tentação que exercera nele.
A carta terminava assim:
Mefistófeles do bem, eu te agradeço as tuas inspirações. Na Soledade havia tudo, menos a mulher que agora encontrei.
Como se vê, não aparecia a menor sombra no céu da vida do nosso herói. Parecia impossível que alguma coisa viesse turvá-lo.
Pois veio.
Uma tarde, entrando Amaro Faria para jantar achou uma carta com o selo do correio.
Abriu-a e leu-a.
A carta dizia isto:
Uma pessoa que o viu há dias no Teatro Lírico, num camarote da segunda ordem, é quem escreve esta carta.
Há quem atribua o amor a simpatias elétricas; não tenho nada com essas investigações; mas o que me acontece faz crer que os que adotam aquela teoria tenham razão.
Era a primeira vez que o via e logo, sem saber como, nem por que razão, senti-me dominada pelo seu olhar.
Passei uma noite horrível.
O senhor estava ao pé de duas senhoras, e conversava ternamente com uma delas. É sua noiva? é sua mulher? Não sei; mas seja o que for, bastou-me vê-lo assim, para odiar o objeto das suas atenções.
Talvez que haja loucura neste passo que dou; é possível, porque eu perdi a razão. Amo-o doidamente, e bem quisera poder dizer-lhe em face. É o que nunca farei. Os meus deveres obrigam-me a esta reserva; estou condenada a amá-lo sem confessar que o amo.
Basta, porém, que o senhor saiba que há uma mulher, entre todas as desta capital, que apenas o vê estremece de júbilo e de desespero, de amor e de ódio, por não poder ser sua, unicamente sua.
Amaro Faria leu e releu esta carta. Não conhecia a letra, nem podia imaginar quem fosse a autora. Soube apenas o que lhe dizia a carta; nada mais.
Passado porém esse primeiro movimento de curiosidade, o fazendeiro da Soledade guardou a carta, e foi passar a noite em casa de Carvalho, onde Antonina o recebeu com a ternura do costume.
Amaro quis referir a aventura da carta; mas receando que um fato tão inocente pudesse causar infundados ciúmes à futura esposa, não disse palavra a esse respeito.
Daí a dois dias nova carta o esperava.
Desta vez Amaro abriu a carta apressadamente, por ter visto que a letra era a mesma.
O romance começava a interessá-lo.
Dizia a carta:
Foi inútil o meu protesto. Quis deixar de escrever-lhe mais; apesar de tudo, sinto que não posso deixar de fazê-lo. É uma necessidade fatal...
Ah! os homens ignoram quanto esforço é preciso a uma mulher para conter-se nos limites do dever.
Hesitei muito em escrever-lhe a primeira carta, e esta mesmo não sei se lha remeterei; mas o amor triunfou e triunfará sempre, porque eu já não vivo senão pela sua lembrança! De noite e de dia, a todas as horas, em todas as circunstâncias, a sua pessoa está sempre presente ao meu espírito.
Sei o seu nome, sei a sua posição. Sei mais que é um homem de bem. O senhor é que não sabe quem eu sou, e pensará ao ler estas cartas, que eu ando em busca de um romance que me rejuvenesça o coração e as feições. Não; sou moça, e posso afirmar que sou bela. Não é porque mo digam; poderão querer lisonjear-me; mas o que não é lisonja é o murmúrio de admiração que eu ouço apenas entro numa sala ou passo em alguma rua.
Desculpe se lhe falo de mim com esta linguagem.
O que importa saber é que eu o amo perdidamente, e que a ninguém mais pertenço, nem pertencerei.
Uma carta sua, uma linha, uma lembrança, para que eu tenha uma relíquia e um talismã.
Se quiser fazer esta graça em favor de uma mulher desgraçada, escreva a P. L., e mande pôr no correio, que eu lá mandarei buscar.
Adeus! adeus!
Amaro Faria não estava acostumado a romances destes, nem eles são comuns na vida.
A primeira carta produzira-lhe uma certa curiosidade, que aliás passou; mas a segunda já lhe produzira mais; sentia-se atraído para o misterioso e o desconhecido, isso a que ele fugira sempre, contentando-se com a realidade prática das coisas.
— Devo escrever-lhe? perguntava ele consigo. É positivo que esta mulher ama-me; não se escrevem cartas assim. É bonita, porque o confessa sem medo de prová-lo algum dia. Mas devo escrever-lhe?
Nisto batem palmas.