O moço loiro/XXIII

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Ouvindo o sinal das oito horas, Miguel correu para junto do templo do Carmo e, bem não eram ainda passados cinco minutos, logo viu chegar cuidadoso e apressado um menino, que era por força aquele de quem o moço loiro lhe dera os sinais.

Faça-se idéia da vivacidade personalizada: era esse menino, sem dúvida, com não mais de dezesseis anos; com cabelos excessivamente loiros e crespos; os olhos grandes, pretos, brilhantes e à flor do rosto, que, muito redondo, era ao mesmo tempo igualmente corado; o nariz pequeno, os lábios rubros; dentes belíssimos; o corpo delgado; e em todas as suas ações, em todos os seus movimentos ligeireza, rapidez, volubilidade: os olhos do menino brilhavam de noite como dois globos ardentes, em rotação contínua.

Miguel endireitou para ele, e a dois passos parou e ficou firme como um soldado, mas sem dizer palavra: o menino fitou-lhe seus dois olhos de um modo tão penetrante, tão perscrutador, tão forte que, a despeito da influência de sua maior idade, Miguel teve de voltar a cabeça por não poder encará-lo.

— Que é isso lá?... disse o menino com voz argentina e firme.

Miguel nada respondeu; tirando, porém, a mão do bolso, estendeu o braço e mostrou-lhe o anel.

O menino arrancou-lhe o anel da mão, e correu para baixo de um lampião; depois, voltando com igual presteza:

— Onde está o dono deste anel?... perguntou.

— Na minha casa.

— Pois partamos.

E, tomando o braço de Miguel, o menino obrigou-o a andar tão depressa, que quase corriam.

Depois de alguns minutos de marcha, Miguel teve vontade de travar conversação com o seu companheiro.

— O senhor, disse ele ao menino, é irmão daquele moço que está em minha casa?...

— Não.

— Mas é seu amigo?

— Sim.

— Entendo: não tem parentesco nenhum com ele?

— Não.

— Oh! ele parece ser muito bom moço.

— Sim.

— É mesmo natural desta terra?...

— Que lhe importa?...

Esta última resposta foi dada de um modo interrogativo; mas com um tom tão terminante, que Miguel convenceu-se para logo que aquele estômago de criança não cedia nem ao mais poderoso emético.

Portanto, decidiu-se a guardar silêncio. Assim chegaram a casa.

Apenas entrando no quarto do moço loiro, o menino correu para ele, e, abraçando-lhe as pernas, exclamou:

— Ah! padrinho!...

— Está bom, Carlos, está bom; disse sorrindo-se o moço; não há tempo a perder. Deve ir a casa que tu sabes, e entrega este bilhete à mesma pessoa a quem tens entregado os outros: o que trouxeres, deve ser-me dado, quando eu estiver só.

O menino recebeu um bilhete, que o moço tinha escrito na tarde desse dia, e desapareceu correndo.

Miguel, que pretendia colher muitas reflexões da entrevista dos dois, convenceu-se para logo, ao ver a maneira por que se explicava o moço, que ainda depois da volta do menino se deveria contentar com saber que ele se chamava Carlos, e que o moço era seu padrinho.

E, para maior pena, o moço foi pedir à mãe Sara que, quando voltasse o seu afilhado, o deixassem a sós com ele; de modo que Miguel abriu a porta ao pequeno Carlos, e teve de ficar ao pé de sua avó, até que, passado um quarto de hora, apareceram os dois na sala.

— Adeus, mãe Sara! disse o moço; eu me vou... e algum dia receberá novas minhas... Adeus, Miguel!... Adeus também minha pequena afilhada de bonita madrinha!... oh!... vem cá, meu anjinho; quero dar-te um beijo... não é verdade que tua madrinha te beija também? eu creio que devo vir a ser muito amigo dela...

— Meu filho, disse a velha, pois ainda tão fraco...

— Este menino tem o braço bem forte para me sustentar. Adeus, pois, meus amigos... obrigado!... muito obrigado!...

Feitas as últimas despedidas, o padrinho e o afilhado saíram, deixando a avó e o neto a pensar neles.

— Este rapaz, repetia a velha muitas vezes, tem cabeça de doido e coração de santo! sempre tão alegre e tão afável!... o brejeiro zombou de mim todo o dia, ao mesmo tempo que me abraçava, e chamava-me sua mãe!... eu não sei por que, mas a gente por força há de querer-lhe bem!

Entretanto, os dois caminhavam, como podia o ferido, escolhendo de preferência as ruas mais solitárias; de minuto a minuto o menino voltava para trás seus dois belos pirilampos, como para convencer-se de que não eram seguidos. Finalmente, chegando a uma rua escura e feia, cujo nome importa pouco saber, eles entraram em uma casa de triste aparência.

Essa casa era habitada por uma família tão necessitada, como aquela que recebera o ferido; mas este ocupava um pequeno sótão, que nela havia; e posto que devesse pagar aluguel a esta família, parecia pouco conhecido dela, pois que apenas do corredor deu as boas-noites, e começou a subir vagarosamente a escada do sótão, enquanto Carlos foi pedir a chave da porta.

Enfim, eles se acharam sentados defronte um do outro. Todo o sótão se compunha de uma saleta e dois pequenos quartos; neles não reinava nem luxo, nem miséria; era a morada de um homem solteiro arranjada um pouco menos à franciscana do que um quarto de estudante.

Quando o menino sentiu que seu padrinho já havia descansado, disse:

— Eu não sei por que meu padrinho, em lugar de me fazer ir todas as noites postar-me de sentinela junto ao Carmo, me não deixa antes vir encontrá-lo aqui!

— Porque poderiam seguir-te, ver-te entrar... e quem sabe as conseqüências?

— Ver-me entrar?... a mim?... perguntou o menino sacudindo a cabeça.

— Pois bem, meu vaidosinho, a cautela nunca fez mal... mas agora vamos ao que nos interessa: que novidades há?...

— Nenhuma.

— Quê!... pois nenhuma absolutamente?...

— Já disse até onde tinha chegado! ainda não fui mais longe.

— Que tens ouvido?...

— Nada.

— Que tens visto?

— Coisa nenhuma.

— Que tens pensado... sentido... suspeitado?...

— Absolutamente nada.

— É porque tens sido um tolo.

— Qual tolo, meu padrinho! lá, de dia trabalha-se...

— E de noite?

— Dorme-se.

O moço não pôde deixar de rir-se da resposta de seu afilhado; alguns minutos depois continuou no seu interrogatório.

— E tu onde dormes?

— No sótão... mesmo por cima do quarto dele.

— No sótão?... ah! tu já me tinhas dito; bem bom, Carlos, bem bom; mas isso é quase uma honra...

— Foi em atenção àquela senhora que falou por mim.

— Eu sei... eu sei; porém, vamos: tu dormes no sótão, mesmo por cima do quarto dele... eis aí meio caminho andado; deverias ter visto e ouvido muita coisa...

— E o forro?...

— Arranca-se uma tábua.

— E a bulha?...

— Então desce-se ao sobrado para espreitar...

— E as portas?

— Que têm as portas?

— Durmo trancado.

— Pateta!... não há chaves falsas no mundo?...

— E o tempo que se gasta em procurá-las?...

— Pois bem... e o tempo que se tem perdido?...

— Qual perdido, meu padrinho!... fiz coisa melhor do que tudo isso.

— E então para que me quebras a cabeça? fala.

— No sótão e junto da minha cama há uma tábua quebrada no assoalho; arranquei-a.

— E depois?...

— Restava o forro: arranjei uma verruma e, à mercê dela, fiz um buraco, que chega para metade de meu olho.

— Bem; e depois?...

— Aprontei um pauzinho redondo, e pintado de branco...

— E para que essa asneira?...

— Para ter o buraco tapado de dia.

— Está bom... está bom; tens razão, adiante...

— Às dez horas de todas as noites apago a minha luz; levanto com cuidado a tábua velha do assoalho; tiro o meu pauzinho do forro; e fico com o olho no buraco.

— Vamos... vamos...

— Quando ele não tem divertimento, recolhe-se às dez horas.

— E o que faz?...

— Lê livros ou periódicos.

— E depois?...

— Despe-se, e vai deitar-se.

— E depois?...

— Dorme.

— E enfim?...

— E, enfim, vou eu também dormir.

— Pois é preciso não dormir, Carlos.

— Mas, meu padrinho, é que se não pode trabalhar no dia seguinte.

— Pois faze-te doente.

— Dar-me-ão remédios.

— Toma-os.

— E se eu morrer?...

— Mandarei fazer-te um riquíssimo enterro.

— Obrigado, meu padrinho.

— Tu és um preguiçoso... um descuidado, e um tolo!... não tens feito nada... nada... nem trabalhado por fazer.

O menino pareceu vivamente incomodar-se com o desgosto de seu padrinho.

— Mas... eu não pensava!... o que é que se pode colher de um homem que dorme?!...

— Oh!... o sono, Carlos, o sono pode ser bem fatal a um homem! quem sabe se ele não sonha?... quem te assegura que ele em seus sonhos não possa dizer alguma coisa que nos seja útil?... Carlos, o sonho do homem é mil vezes o traidor de seus pensamentos!... e, portanto, é preciso que tu o observes de dia e de noite; no trabalho e no descanso; na vigília e no sono!

— Porém, eu não hei de dormir nunca?!...

— Também tens razão, disse o moço rindo-se de novo; façamos, portanto, um ajuste; a que horas dormes?...

— À meia-noite, e às vezes depois.

— E quando te levantas?...

— Às cinco e meia.

— Bem: vela depois que ele dormir mais uma hora, e dorme quatro e meia.

— Velarei hora e meia e dormirei quatro.

— Carlos, tu és muito bom.

— Oh! meu padrinho! exclamou o menino abraçando o moço.

— Precisas de dinheiro? perguntou este.

— Ainda tenho bastante.

— Excelente rapaz!

— Meu padrinho está contente de mim?...

— O mais que é possível!

O menino demonstrou o seu prazer, saltando e batendo palmas loucamente.

— Aquieta-te, travesso, disso o moço; ainda temos que falar.

O menino tomou de novo o seu lugar; e ficou mudo, sério e atento como um ministro de Estado que vai ouvir uma interpelação.

— Durante estes cinco dias, observa o nosso homem, se nada colheres, fica em casa; se houver novidade ou precisares de alguma coisa, achar-me-ás aqui; depois, será como dantes, às oito horas da noite junto ao templo do Carmo.

— Estou ciente.

— Agora ajuda-me a mudar esta roupa, que ainda tem manchas de sangue.

— Foi uma queda horrível, não é assim, meu padrinho?

— Sim... uma queda; mas quem te disse que foi horrível?...

— Eu pensava... uma queda, em que se quebra a cabeça...

— Pois eu não quero que penses desse modo, Carlos.

— Então como?...

— Foi uma queda abençoada, ouviste?

— Está dito, meu padrinho: foi uma queda abençoada.

Meia hora depois Carlos, deixando seu padrinho de vestidos mudados, com um lenço limpo na cabeça, e sossegadamente deitado, despediu-se dele e ia descer:

— Carlos, disse ainda o moço, dize à família que mora embaixo que fico estes cinco dias em casa; e, por conseqüência, que continue a mandar-me almoço, jantar e ceia; principiando pela ceia, ouviste?...

— Sim, meu padrinho!... respondeu Carlos descendo rapidamente a escada.

— Grata criança!... disse o moço, quando o viu partir.

No entanto, o menino, depois de cumprir a recomendação de seu padrinho, pôs a cabeça fora da rótula, examinou se alguém havia de espreita e, vendo a rua solitária, saiu, e marchou precipitadamente, olhando muitas vezes para trás, como era de seu costume.

A dedicação dessa criança ao moço loiro deveria ter por origem um sentimento bem nobre!

Às dez horas da noite Carlos entrava pela porta de uma elegante casa, dizendo consigo mesmo:

— Esta noite não durmo sem ouvir sermão; também nunca me recolhi tão tarde.

E ao mesmo tempo o moço loiro sentava-se à mesa de seu pequeno quarto e se dispunha a cear o que acabavam de trazer-lhe.



Ao amanhecer do dia seguinte a velha Sara despertou e, lembrando-se do moço ferido... sem poder conter-se de si mesma, passou a mão por baixo de seu travesseiro, e surpreendida tirou daí uma carteira...

Imediatamente gritou por Miguel, que se levantou espantado; mas para logo seu espanto se tornou em vivo prazer; pois viu que a carteira, se não continha soma capaz de enriquecer uma família, lhes trazia meios de melhorar muito sua posição.

Raquel, a quem foi relatado o sonho do moço e o aparecimento da carteira, compreendeu facilmente qual tinha sido a mão de gênio benfazejo.