O moço loiro/XXV

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Brás-mimoso não cabia em si de contente; tais coisas lhe tinha dito a provecta viúva, que o nosso velho gamenho com sua tonta vaidade se convenceu muito seriamente de que o seu negócio estava muito bem principiado; que havia mesmo produzido em Honorina a mais agradável impressão. Fez conseqüentemente planos de casamento e, calculando sobre o dote da noiva, determinou dias de jantares, noites de saraus; e, enfim, sonhou consigo mesmo, recostado na mais cômoda poltrona a conversar com os amigos, a ralhar com a mulher, e a comer dos juros de duzentas ou trezentas apólices.

Em alguns momentos, porém, suspirava, lembrando-se de seu desalmado rival; Lucrécia lhe asseverara que o único homem a que podia perturbar o justo andamento e a esperançosa conclusão de suas pretensões era o filho de Venâncio. Ora, Manduca era justamente o homem com quem Brás-mimoso menos desejava lutar.

— Se ele fosse algum diplomata, um jovem parlamentar, como eu, ainda bem, pensava Brás-mimoso; porém, não passa de um estúpido materialão, que apela sempre para a força bruta, e é muito capaz de preferir trocar socos, a trocar notas diplomáticas.

Contudo, tão poderoso feitiço havia no belo quadro, que aos olhos do nosso velho gamenho tinha traçado Lucrécia, que ele se resolveu a trabalhar por arredar Manduca da casa de Hugo de Mendonça.

Firme nesse projeto, gastou longas noites em estudar o melhor meio de pô-lo em execução; e um dia, enfim, supondo haver achado a incógnita, levantou-se lépido e risonho, e depois de cuidadosamente ataviar-se, saiu de casa e dirigiu-se à de Venâncio, onde há muito não aparecia, receoso de perder, enfim, a paciência, dizia ele, e de praticar alguma loucura contra o miserável Manduca.

Em casa de Venâncio cogitava-se pela mesma pessoa por quem se interessava Brás-mimoso. Tomásia, sentindo a inclinação de Manduca e supondo que Honorina era um belíssimo partido, animava e acendia a paixão do interessante filho, em quem, como mãe extremosa, não via senão merecimento e perfeição, não podendo por isso acreditar que a tão requestada moça ousasse resistir à lindeza do querido Manuelzinho. Daí provinham os elogios que Tomásia, sem cessar, fazia à graça e ao espírito de Honorina.

Venâncio, ente passivo, colônia de sua metrópole, pensava, conforme o seu costume, pela alma de Tomásia; e, pois, falava sempre com entusiasmo a respeito da família de Hugo de Mendonça e do amor do seu Manduca; e em paga disso ganhava o estar passando já há duas semanas em paz com sua mulher, isto é, livre dos ataques e furores de Tomásia; porque em paz com ela sempre estava Venâncio, quer quisesse, quer não.

Rosa apoiava as mesmas idéias; e posto que fizesse sempre o seu biquinho e torcesse seus eterni-mordidos lábios, quando à vista dela se gabava Honorina, contudo, como se tratava de relacioná-la e prendê-la com um homem, com quem não lhe seria possível casar-se; e além disso, era esse um meio de segurar a constância de seu primo Félix, que temia estar assim meio embalançada, empenhava também seus esforços para animar o galante menino e lhe dava os mais entendidos e experimentados conselhos para encantar a moça.

Todavia, Manduca, apesar de... (digamos aqui bem em segredo da Sr.ª D. Tomásia) apesar de ser tolo, tinha sido por tal maneira recebido por Honorina, que não lhe restava a mais leve dúvida da indiferença da moça. Em tais circunstâncias, e com tão amarga certeza, o rapaz torturou seu espírito por uma semana inteira, parafusando na causa por que tão mal-atendido fora.

Sua mãe lhe havia assegurado tantas mil vezes que ele era um mocetão de encher o olho, que a despeito de três espelhos que tinha em seu quarto, Manduca não pôde atribuir a crueldade de Honorina à falta de encantos físicos de sua parte.

Agora, a respeito de encantos de espírito, Manduca era o primeiro a dar a si próprio parabéns pela abundância que deles possuía e gastava; outra vez, aqui para nós, neste mundo cheio de gente, ainda se não achou um tolo que se não julgasse avisado.

Portanto, não lhe faltava nem beleza, nem espírito; o que era pois?... ah!... finalmente no cabo de sete dias a inteligência de Manduca deu com a causa de sua má fortuna: com toda a modéstia de que pôde valer-se, o filho de Tomásia reconheceu que não representava um grande papel na sociedade; enfim, que não era fidalgo, nem homem proeminente.

E eis o nosso Manduca a resolver, durante outros sete dias, um problema ainda mais difícil: — como se havia de tornar grande coisa em pouco tempo?...

Manduca lembrou-se da literatura...

E raciocinou:

Em um mundo todo voltado de pernas para o ar pode-se tirar algum proveito dos pés; mas da cabeça?!... ninguém mais se lembra de tal: isso de ganhar amor pelas letras já é muito antigo; foi idéia do século das trevas; está absolutamente reprovado por toda a moça que sabe executar, mesmo fora de compasso, um simples chassé croisé huit; ninguém pode mais ser amado pelas letras diante do encantamento das tretas... olhem bem, que era o tolo do Manduca que pensava assim.

Desprezado esse primeiro caminho que se lhe apresentou, veio-lhe ainda a idéia da carreira das armas; mas também já se não encanta as belas com o brilhantismo da glória e a fama de altas façanhas; as justas e os torneios lá se foram; tudo agora é mais cômodo, e menos perigoso... e, além disso, Manduca sabia que não lhe dariam patente, pelo menos de coronel; e ele não era homem que recebesse ordens aí de qualquer cabo-de-esquadra.

Mas no último de outros sete dias a brilhante inteligência de Manduca deu à luz a resolução do novo problema: estava conhecida e aberta a estrada da felicidade... a política!...

Eis a primeira e única ocasião em que Manduca mostrou em toda a sua longa vida ter algum discernimento.

E o que há aí de tão proveitoso, como um homem fazer-se político?... a política é para a maior parte um jogo que nunca se perde: quando não se ganha hoje, tem-se um bocadinho de paciência, e amanhã lucra-se por dois dias... ora, confessemos que Manduca tinha razão.

E também o que há aí de tão fácil como ser político?... a política, que pode ser matéria muito espinhosa e intrincada em todo o mundo, reduz-se em certo país, que Manduca e nós conhecemos bem, a muito pouca coisa. O essencial é o seguinte: quando se está debaixo, brame-se diante do público, e pede-se nas ante-salas; e quando se está de cima, choraminga-se aos ouvidos do povo, e zomba-se dele no gabinete; e finalmente quer debaixo, quer de cima, maneja-se uma eleiçãozinha, escondendo-se primeiro, bem no fundo da gaveta, certos papéis escritos, a que se tem dado o nome de constituição e leis... ora, confessemos, confessemos outra vez que Manduca tinha razão.

Por conseqüência, o rapaz determinou-se a tentar ventura na lisonjeira estrada das grandezas, honras, poder e riquezas: mas por onde começar?... a que porta bater?... qual o primeiro passo a dar?...

Quem pensar que semelhante consideração seria uma terceira dificuldade, um novo problema a resolver para Manduca, engana-se redondamente: a cabeça mais desmiolada, o homem mais parvo do mundo, que entre nós se determinasse a seguir a carreira política, e procurasse o primeiro degrau para pôr sobre ele o pé, instintivamente lembrava-se da assembléia provincial.

Aí, apesar das teimosas e desprezíveis discussões das necessidades materiais da província, um homem faz por habilitar-se; tratando-se de um chafariz, enxertar-se um discurso sobre política geral... discutindo-se os melhores meios de esgotamento, vem mesmo a apelo uma longa dissertação sobre as mais intricadas questões financeiras; e, enfim, na discussão de uma ponte, pode um orador de habilidade entrar pela pasta dos negócios estrangeiros adentro, posto que anda ela quase sempre fechada com o muito cômodo e abençoado selo das questões pendentes.

Manduca, que se achava com jeito para orador, pesou todas estas reflexões e, assentando de pedra e cal que devia ser deputado provincial, como visse que as eleições batiam à porta, no dia em que Brás-mimoso se dispôs a ir à casa de Venâncio, levantou-se ele pronto para meter mãos à obra, e apenas se achou na sala, declarou o propósito em que estava a seus extremosos pais.

Pouco faltou para que Tomásia perdesse o juízo de alegria, ouvindo a determinação de seu filho.

— Sempre te conheci, exclamou ela, com inspirações de gênio! Manuelzinho, saíste à tua mãe!

E Venâncio imediatamente, levantando as faces com lágrimas de prazer, disse entre soluços:

— É o que eu tenho dito mil vezes!... aquele rapaz saiu em todo à minha Tomásia!

Tratou-se para logo de cabalar: Venâncio foi tomar a casaca para ir alcançar cartas de recomendação em prol do ilustre candidato; Manduca dispôs-se a ir ao correio comprar selos para as cartas; e Tomásia fez voto de pôr em campo todas as suas amigas.

E não era nem original, nem má a lembrança de Tomásia. Feliz daquele que puder ser candidato de senhoras: qual será o empedernido eleitor quer resista a uma cheirosa cartinha de moça, principalmente se for bonita?... em tais apuros, quem não é de ferro, não tem outro remédio senão atirar com a consciência para um lado e escrever a sua lista com o coração.

Mas no momento em que Venâncio e Manuelzinho saíam, pensando na eleição próxima e no subseqüente esperado casamento, pois não era crível que Honorina resistisse a um deputado provincial da ordem de Manduca, Brás-mimoso batia palmas na escada; e, entrando para a sala, viu-se agradavelmente recebido por Tomásia e Rosa, mesmo mais agradável do que dantes, porque enfim... as vésperas das eleições fazem a gente tão delicada... tão obsequiosa!...

Tomásia não quis falar logo sobre os projetos e esperanças do querido Manduca; por isso a conversação versou a respeito de objetos gerais. Insensivelmente, porém, foi levada passo a passo, e caiu em cheio acerca da filha de Hugo de Mendonça.

— E as senhoras têm visto essa moça?... perguntou Brás-mimoso.

— Apenas duas vezes, em que a fomos visitar, depois daquela noite desgraçada...

— Em que eu me ia lançando ao mar para salvar a pobre menina!... se não ouço o baque do outro, que caiu na água, arrojava-me eu decerto: não posso emendar-me... isto vem de natureza... em vendo alguma senhora em perigo, atiro-me, suceda o que suceder.

— Pois aí está! nós pensamos que o senhor tinha tido muito medo da tempestade, porque eu juro que o vi tremer...

— Ah!... qual medo! eu até gosto muito de tempestades: o que eu sentia era pena de ver as senhoras assustadas... mas, voltando ao que conversávamos, então já viu D. Honorina duas vezes?

— Sim... sim... coitadinha! ainda não pôde vir pagar-nos a visita... teve alguns dias de febre, e os médicos quase a mataram com a dieta...

— E como a achou?...

— Sempre agradável, carinhosa, e, todavia, melancólica...

— E já se sabe alguma particularidade a respeito do homem de cabeleira, que a salvou?...

— Qual nada; o homem desapareceu; talvez morresse.

— Aquilo não foi só humanidade!

— Eu também pensei o mesmo, acudiu Rosa.

— Ora... ora... disse Tomásia.

— Ali anda namoro encoberto, minhas senhoras...

— D. Honorina é boa moça, tornou Rosa; talvez não seja por culpa dela... mas o caso é para se julgar assim... todavia, como eu sou muito amiga dela, não consinto que se diga nada.

— Nem eu, disse Tomásia; temos sido muito obsequiadas... é uma excelente pessoa...

— Decerto, decerto, respondeu Brás-mimoso; ninguém diz menos disso; posto que às vezes me tenha parecido um bocadinho hipócrita...

— Então, minha mãe, eu não lhe disse a mesma coisa?... porém não, Sr. Brás, ela parece, e não é; olhe, eu creio, e digo que aquilo tudo é singeleza.

— É vaidosa... um pouco vaidosa...

— Sim; mas não muito... pode passar; quem não tem seus defeitos?...

— Nada! ela tem presunção de bonita, e faz mau uso de suas graças; gosta de ser conquistadora, e não escolhe a quem deve conquistar...

— Mas... nós não notamos isso!...

— As senhoras são todas muito inocentes; e, portanto, deixam passar tudo...

— Só se foi por isso: eu nunca reparo nas outras; tomara que não reparassem em mim.

— Um homem é outra coisa, continuou Brás-mimoso; um homem estuda sempre as senhoras com quem está; faz-se necessário ser assim... não é por mal...

— Está visto; então o senhor notou alguma coisa?

— Sim... mas...

— Diga... todos nós somos amigos de D. Honorina; o que dissermos não será por má vontade que lhe tenhamos; mas por pena de que ela seja assim...

— Pois bem... eu reparei nos dois dias que passamos em Niterói, que D. Honorina era ambiciosa de conquistas. As senhoras hão de crer?... continuou a tratar-me com distinção; disse-me palavras ternas ao ouvido, e fez-me tais perguntas, que eu me considerei o seu predileto...

— E não era?...

— Ora! vi logo depois que praticava o mesmo com Otávio; isto já não parece bem...

— Decerto... decerto.

— O Sr. Manuel não pode também queixar-se da sua sorte...

— Sim... sim, disse Tomásia; eu notei que ela se interessava muito por Manuelzinho... e, enfim, é preciso convir que teve razão.

— Mas é preciso convir ao mesmo tempo, que três já eram de sobra, para que ela tratasse de conquistar o Sr. Félix, de modo que pôs o moço quase doido!

— Então, minha mãe! exclamou Rosa; eu não lhe tenho dito cem vezes que aquela moça anda trabalhando por desinquietar a meu primo?...

— Qual, menina! o Sr. Brás está brincando...

— Não, senhora, não foi o Sr. Brás só; eu também vi; é verdade tudo quanto ele disse, principalmente a respeito de meu primo, Sr. Brás! ninguém conhece aquela amarela a fundo senão eu!...

— Engana-se, minha senhora; eu tenho de confiar um segredo às senhoras, de que hão de ficar pasmadas.

— Então o que é?

— D. Honorina não respeita as cãs da velhice; e atreve-se a requestar um ancião respeitável!...

— É possível?!

— Não se respeita a si própria; ousa levantar os olhos e pretender conquistar um homem casado!

— Isso é demais!... e, portanto, a quem?...

— As senhoras vão admirar-se ainda mais: a um homem probo, pacato, recolhido consigo, todo votado à sua família...

— E esse é...

— O Sr. Venâncio!... o próprio Sr. Venâncio!...

— Ora... o senhor está brincando outra vez, disse Tomásia empalidecendo.

— O pobre homem não tinha culpa; não! isso juro eu; mas a menina era o diabo! Sr.ª D. Tomásia, nunca passou por perto dele, que lhe não desse com o cotovelo!...

— Por isso eu a vi chegar-se tanto para Venâncio!

— Uma vez... porém não; eu mesmo tenho vergonha de dizer, tratemos de outra coisa.

— Nada... nada: falemos disto mesmo: uma vez...

— Enfim, eu obedeço às senhoras: recorda-se da noite em que ela cantou embaixo da mangueira?. lembra-se que depois nos levantamos todos para ir de mais perto ouvir o canto do bateleiro, e que ficou ela só com D. Raquel no mesmo lugar?...

— Sim... sim...

— Pois quando voltamos, ao passar o Sr. Venâncio junto dela, apertou-lhe a mão...

— Insolente!... atrevida!...

— O Sr. Venâncio puxava a mão... não queria...

— Qual não queria, Sr. Brás! o senhor ainda não conhece a jóia que tenho por marido!... aquilo é um dragão!... um velho traidor e hipócrita!...

— Eu vejo a senhora tão exasperada, que me arrependo de ter dito...

Tomásia arquejava.

— Minha mãe, não faça caso; o negócio principal é com meu primo; ela morre por casar-se, não acha com quem, e quer ver se meu primo cai, mas isso fica por minha conta.

— Aquele velhaco!... murmurava Tomásia.

— Aquela amarela!... dizia Rosa com os dentes cerrados.

Nesse instante ouviu-se o ruído que faziam duas pessoas que subiam a escada.

— Ei-los! disse Tomásia.

— Ei-los quem? perguntou Brás-mimoso sentindo-se incomodado.

— Venâncio e meu filho.

— Minhas senhoras, eu devo retirar-me, disse Brás-mimoso tomando o chapéu: Sr.ª D. Tomásia, peço-lhe que ao menos por hoje se contenha, para não comprometer-me com o Sr. Manuel.

— Não tenha cuidado, Sr. Brás... adeus!... apareça sempre!...

Porém, Brás-mimoso, ao sair da sala, encontrou Manduca, que lhe lançou um olhar vitorioso e terrível.