O moço loiro/XXVII

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Pouco mais ou menos pelo mesmo tempo em que tiveram lugar as cenas desagradáveis que no anterior capítulo descrevemos, uma outra mais grave e muito mais terrível ocorreu na câmara do guarda-livros de Hugo de Mendonça.

Félix alojava-se em um simples e modesto gabinete do sobrado da casa comercial de seu amo.

Eram nove horas da noite.

O guarda-livros entrou vivamente agitado para seu quarto; e, fechando-se por dentro, atirou-se sobre uma cadeira de braços, e ficou quase uma hora imóvel e abatido, mergulhado em amargas reflexões.

Um candeeiro de bronze estava aceso defronte dele, e refletia sobre o pálido semblante do mancebo os raios de uma luz débil e enfraquecida...

Em todo esse tempo apenas se ouviam profundos suspiros soltados por Félix, e o monótono tique-taque da pêndula de um relógio, que sobre um próximo aparador existia.

Finalmente, os olhos do guarda-livros ergueram-se e fitaram-se no relógio.

Faltavam cinco minutos para dez horas.

O guarda-livros estremeceu todo e, arrancando convulsamente uma carta do bolso de sua sobrecasaca, leu para si, sorrindo-se com desesperada ironia, as seguintes breves linhas: "Félix. Tentei todos os meios... esgotei-os todos, e tudo foi baldado; o derradeiro recurso que me resta é esse... um crime!!... embora... nós o lavaremos. Reduzido a dar um passo desesperado, eu abuso da minha posição; eu sei que abuso, Félix! porém, não posso voltar atrás; e, portanto, eu insisto... eu imponho!... às dez horas da noite entregar-te-ei a caixinha de veludo preto; e tu me darás as letras. Otávio."

Acabando de ler, Félix foi guardar a carta em uma das gavetas de sua secretária e, voltando de novo a seu primeiro posto, murmurou com voz abafada:

— E, portanto, ele deve também corar diante de mim!

O relógio marcou e deu dez horas.

Um servente de escritório bateu à porta do quarto de Félix e anunciou o Sr. Otávio.

Um momento depois, a porta do quarto de novo por dentro se fechou, e Otávio e Félix sentaram-se defronte um do outro: ambos estavam pálidos, ambos trêmulos, ambos cabisbaixos.

Passou-se muito tempo em silêncio; os dois mancebos pareciam temer olhar um para o outro; devia haver alguma coisa entre eles, que os envergonhasse a ambos.

Finalmente, Otávio pareceu tomar uma resolução; tornou-se extremamente corado e, erguendo os olhos, disse:

— E então, Félix?!

— Otávio, respondeu o guarda-livros levantando por sua vez o rosto; Otávio, tudo isto é muito horrível!...

— E, todavia, é inevitável!

— Inevitável?... oh!.. somente inevitável pode ser a nossa vergonha!... porque eu fui infame; e tu, Otávio... queres sê-lo!

— E qual de nós é mais desgraçado, Félix?...

— Eu.

— Não!... não!...

— Sou eu, Otávio; porque a desgraça está somente no crime!... e o crime é uma mão de bronze, que nos fecha para sempre a porta do próprio sossego!... e eu tenho ofendido a meus benfeitores... aqueles a quem devo tudo!... eu mordi-lhes em seu coração; e agora tu queres que lhes morda de novo?!... não! não! isso não! já padeço bastante...

— Mas esta ferida terá de fechar-se depressa; e depois eu poderei curar a outra...

— Nunca! há feridas que jamais se fecham; porque a consciência dilacera o coração do mau a todo o instante...

O guarda-livros ergueu-se como desesperado e, apertando a cabeça com as mãos, exclamou:

— Meu Deus! meu Deus! meu Deus!

E depois, encarando Otávio, disse com voz comovida:

— E como te atreves, tu até agora puro e honrado, a vires propor-me uma infâmia... um crime, em que ambos teríamos parte igual?!

— Félix, é que não compreendes o que se passa em mim! não sabes o que é sofrer, como eu sofro!...

— E eu?... e eu?...

— Escuta: deixa-me começar bem de longe, bem do tempo da felicidade. Tu me conheces; fui sempre, como há pouco disseste, puro e honrado; desde a infância ligou-nos a mais estreita amizade; aos dezoito anos era eu guarda-livros da casa de meu pai, e tu primeiro caixeiro da do Sr. Raul de Mendonça; nós nos encontrávamos sempre; nas horas de descanso éramos inseparáveis; e meu pai, que me proibia todos os prazeres que a mocidade procura com tanto ardor, era o primeiro a animar nossa mútua afeição; e muitas vezes, falando-me de ti, dizia: — eis ali um menino, que há de ser alguma coisa e que deverá tudo à força de seu trabalho e ao valor de sua probidade!

— Basta, Otávio; não prossigas...

— Porém, é absolutamente preciso que eu avive todas essas idéias! e, pois, Félix, recordemos a noite terrível, que de meu igual te podia fazer meu escravo. Lembras-te?... eram dez horas, como agora; eu vim ver-te, e achei que a porta de teu quarto se achava fechada por dentro, também como agora; então, sem pensar no que fazia, instintivamente talvez, ou para zombar contigo, eu olhei pela fechadura... Félix!... havia dentro de teu quarto a prova de um crime, como também está havendo agora!

— Oh!...

— Não compreendendo ainda o que via, cuidando que seria um presente da fortuna, bati na porta; e senti que tu ocultavas o objeto que eu acabava de descobrir em tuas mãos; abriste-me a porta, Félix, e eu te encontrei pálido e desfigurado, como o estás agora!

— Não mais, Otávio!...

— Pedi que me explicasses a tua perturbação; disse-te o que eu tinha visto; e tu caíste a meus pés, implorando compaixão e segredo e gritando misericórdia!...

— Sim... mas tu tiveste piedade...

— Eu quis obrigar-te a desfazer o teu crime; porém, chorando arrependido, disseste que já era tarde, que outro havia sido considerado o perpetrador dele e como tal castigado, e que ficarias perdido se se descobrisse o fatal segredo. Cheio de remorsos, de joelhos a meus pés, abraçado com minhas pernas, tu me pediste que eu escondesse em minha casa a prova de teu delito, até que um dia te pudesses lavar dessa vergonhosa manha... eu hesitei... mas amava-te muito!... levei-a, ocultei-a e tenho-a comigo.

Félix escondera o rosto entre as mãos, tomado de vergonha e de remorsos. Otávio prosseguiu.

— Depois eu tive de sair por muitas vezes do Rio de Janeiro... graves e importantes empresas comerciais me tinham quase sempre longe desta cidade... não te encubro, Félix; se eu morresse, achar-se-ia entre os meus papéis a salvaguarda de minha honra; porque a minha honra era só o que eu não podia sacrificar à amizade. Enfim, faleceu meu pai, e hoje, herdeiro da sua riqueza e do seu nome, sou julgado feliz e digno de inveja; e até há bem poucos dias eu não achava na minha vida de que me envergonhar, senão de ser o depositário de um crime!

— Oh e para que agora queres ter de que abaixar o rosto?...

— Porque o coração de um moço, Félix, pode mais do que a sua cabeça!...

Otávio enxugou sofregamente o suor, que em bagas lhe corria da fronte; e continuou falando com ardor e precipitação.

— Tu sabes, Félix, o que é amar loucamente uma mulher?... compreendes o que é passar dias inteiros pensando nela, todas as noites velando por ela, todas as horas por ela suspirando?... eu mesmo não concebo o que é isso, que tem em si essa mulher para fazer-me delirar e esquecer meus negócios, meus prazeres, meu dever, e até minha honra!... mas eu sei que a amo como um louco, como um homem perdido!... eu sinto que este amor traz em si alguma coisa de tão abominável e infernal, que, por essa mulher, se eu fosse rei, me faria abandonar o trono, se eu fosse pai, amaldiçoar meu filho, se eu fosse sacerdote, renegar do meu Deus! Oh! Félix, Félix!... um amor como este é horrível e capaz de tudo! uma mulher como essa pode fazer de um homem virtuoso um ladrão ou um sicário! sim: se Honorina me dissesse — mata! eu creio que iria matar; se ela me gritasse — rouba! eu penso que iria roubar, ainda que estivesse certo de que um dia depois seria condenado à morte; mas contanto que de cima do patíbulo ganhasse um sorriso de gratidão de seus lábios!... oh!... pois essa mulher há de ser minha!... eu a quereria a preço de meu sangue! eu a quero mesmo a preço de meu nome e de minha honra!... eu a quero! eu a quero!...

Otávio, que falava como possuído de violento delírio, pronunciou as últimas palavras quase sufocado.

— Mas é horrível, Otávio, disse Félix, pretenderes sacrificar-me à tua paixão!

— Eu sei, eu sei, mas já te disse que seria também capaz de matar e roubar. Tenho tentado tudo inutilmente: cerquei-a de atenções e de obséquios... e nem gratidão obtive; procurei mostrar-lhe o como era extremoso e puro o amor que por ela sinto, e nem ao menos pude ser ouvido; expliquei-me mais claramente... falei-lhe em casamento... e Honorina repeliu-me!

— E seu pai?... por que te não diriges a seu pai?

— Félix, confesso-te com vergonha: há três dias que fui ajoelhar-me diante dele; pedi-lhe o sossego, a paz e a ventura de minha vida, pedi-lhe, enfim, a mão de sua filha. O Sr. Hugo de Mendonça pareceu inclinar-se a meu favor, sua mãe mostrou alegrar-se, ouvindo minhas proposições; Honorina foi chamada... consultou-se sua vontade... e ela disse que não! não!... diante de meu rosto!... e, portanto, não há mais esperança por esse lado... a esperança que me resta é uma só: em ti a tenho posto.

— Em mim não, Otávio; eu não poderei fazer nada.

— Podes, podes muito: eu exijo, e já disse uma vez, eu imponho! Tu ficaste, há perto de um ano, administrando, com plenos poderes, a casa de Hugo de Mendonça; eu sei que o velho e falecido Raul de Mendonça havia entrado em empresas arriscadas... tinha parte muito notável no contrabando de africanos; não podias tu, depois da morte deste, e na ausência de Hugo, entreter ainda as mesmas negociações?... para entretê-las não te era preciso contrair empréstimos?... e não seria, enfim, muito possível ser infeliz e perder tudo?... Félix, eu sei ainda que a casa de Hugo teve prejuízos e estremeceu...tenho a certeza de que estremece ainda... pois bem! passa-me letras...

Otávio, como para ver-se livre de um peso enorme, continuou, dizendo depressa:

— Passa-me letras de grande valor... na importância de quarenta a cinqüenta contos de réis... escreve-as com datas atrasadas, que seu vencimento tenha lugar agora... e Hugo de Mendonça estará perdido para sempre, ou dar-me-á sua filha em casamento.

— E hei de assim, Otávio, pagar a meu benfeitor a dívida imensa em que lhe estou?...

— Oh! não... não haverá nada: assustá-lo-ei apenas; se me der sua filha, no dia das núpcias declararei o nosso crime e obterei o seu perdão.

— Ele sacrificará primeiro todos os seus bens para pagar-te...

— O Sr. Hugo de Mendonça é muito honrado para querer pagar-me com a herança de seu sobrinho, de sua mãe e de sua filha.

— Mas tem a sua.

— Insuficiente.

— Lançar-me-á a pontapés para longe de sua casa...

— E eu te receberei na minha.

— Desonrado!...

— Tu te saberás defender: o contrabando, em que se achava empenhada a casa de Hugo, enriquece e empobrece com a rapidez do raio.

— O Sr. Hugo de Mendonça, quando deixou-me administrando sua casa, ordenou-me que pusesse termo a todas as negociações da Costa d’África, Otávio.

— Sim; mas poderiam haver antigos comprometimentos... e em tal caso...

— E como?... como explicar essa perda enorme?

— Félix, tudo nos auxilia; o velho Raul de Mendonça e meu pai eram sócios em semelhantes empresas; mortos ambos quase ao mesmo tempo, não é inverossímil que ficassem ajustes, obrigações que prendessem ambas as casas; sabes que a fortuna me tem sido terrivelmente contrária nestes dois últimos meses; pois, bem... explica as tuas perdas pelas minhas... éramos sócios... ninguém virá dizer que não, porque eu tenho negociado só por minha conta; e, portanto, éramos sócios... e tu não fizeste mais do que cumprir antigas e inevitáveis obrigações... que, enfim, nós podemos documentar agora em dez minutos.

— Não! não!

— Félix, eu te escrevi uma carta, que poderás atirar-me ao rosto, se eu faltar ao que prometo!

— É uma infâmia...

— Que se lavará depressa.

— Sim, porque tu te desculparás com a paixão que te cega.

— E tu com o direito que eu tinha de te impor condições...

— Será dizer ao mundo que eu tenho sido infame toda a minha vida...

— Não; eu alcançarei o teu perdão e sepultarei o teu segredo.

— Mas não me livrarás de corar sempre diante de uma família inteira!

— É um sacrifício, Félix, eu o sei; porém, tu mo deves...

— Este não... é enorme!...

— É que tu ainda não pensaste que me não podes negar nada!...

— Otávio!...

— Que um homem, que tendo sido como eu, honrado em toda a sua vida, que não teve nela ainda uma só mancha, e chega a ponto de vir envergonhar-se a teus olhos, não hesitará um só instante em lançar mão dos últimos meios!

— Otávio!...

— Que um homem que ama, como eu amo, não conhece barreiras, não respeita nada... não se pode lembrar nem dos outros, nem de si!...

— Otávio!

— É que tu ainda não pensaste que eu estou dando o derradeiro passo! e que me agarro à última tábua! que acredito que tu podes ser o instrumento de minha ventura; e que se a isso te negares, eu posso, e hei de vingar-me!

— Mas é que tu não pensaste também, Otávio, que a minha queda trará após si a tua; porque tu me escreveste uma carta que te desonra!

— Embora! embora! eu pensei em tudo isso, e em mais ainda; porém, já te disse mil vezes, Félix: quem ama não respeita o mundo, não se lembra da virtude, está louco e perdido, e só pode salvar-se com a posse daquela que adora!

— Insensato!

— Eu pensei até na possibilidade de um outro crime, Félix! eu pensei que tu podias tentar arrancar de minhas mãos a prova de tua desgraça; e sabes o que fiz?... vim armado... para defender-me!... para salvar a minha esperança!...

— E para talvez matar-me, não é assim?

— Não! matar-te não; porque eu preciso da tua vida Félix, tu és a carta que eu jogo; a carta, mercê da qual devo ganhar a partida.

— Otávio, eu me espanto da tua audácia!...

— Admira antes o amor desesperado que eu tenho!...

— O que tu intentas, Otávio, chama-se roubo!

O rosto do mancebo tornou-se rubro de cólera e vergonha. Não podendo suster-se no primeiro momento, agarrou e sacudiu com força o braço de Félix e exclamou:

— Desgraçado! e és tu que falas em roubo?!

Félix, como fulminado por um raio, caiu sobre a cadeira de braços, da qual há um instante se tinha erguido.

Onze horas soaram então.

— Há uma hora que falamos em vão, disse Otávio sossegando; é necessário acabar com isto: decide-te.

— Estou decidido, respondeu Félix, não!

— Bem, amanhã haverá de mais dois desgraçados no mundo: de manhã tu serás vergonhosamente expulso da casa de Hugo de Mendonça como um vil ladrão; de tarde mostrarás a minha carta ao povo que me cuspirá no rosto.

E dizendo isto Otávio deu dois passos para a porta.

— Pára, Otávio! exclamou Félix.

— Queres dar-me as letras?...

— E onde está a prova de minha miséria?...

— Trouxe-a comigo.

— Juras-me que, se te casares com Honorina, conseguirás o meu perdão e sepultarás o meu segredo?...

— Juro... pela alma de meu pai.

— Que se não obtiveres a mão dessa infeliz moça, não sacrificarás a fortuna de seu pai?...

Otávio pensou um momento.

— E então?

— Não juro, Félix; porque eu precisarei vingar-me! porque eu quererei abaixá-la muito para depois levantá-la.

— Desse modo... repito que não!

— Pois até amanhã, Félix...

Otávio encaminhou-se de novo para a porta.

— Piedade! piedade!... compaixão, Otávio!...

— Queres dar-me as letras?... perguntou o moço voltando o rosto.

— Oh!... tu és muito traidor para ser amigo!...

— Queres dar-me as letras?...

— Otávio!... Otávio!... isto é horrível!...

— Em conclusão?...

— Em conclusão, tu és o demônio!...

Félix saiu do quarto e, dirigindo-se ao escritório, de lá voltou logo com algumas letras em branco; fechou-se de novo por dentro com Otávio, e depois de temerosamente correr os olhos em derredor de si, encheu as letras, as quais foram assinadas por ele como aceitante, na qualidade de administrador da casa e procurador bastante de Hugo de Mendonça. Todas elas deveriam vencer-se pouco tempo depois; quando as letras estiveram prontas, Félix as entregou a Otávio, que, somando-as, disse:

— Bem, são quarenta e seis contos de réis.

— E agora, disse Félix abaixando os olhos, o que me pertence?

Otávio, tendo guardado as letras com todo cuidado, tirou do bolso um pequeno embrulho, que deu ao guarda-livros.

Félix arrancou o papel que envolvia aquele objeto, e achou uma pequena boceta forrada de veludo preto.

Abriu a boceta e achou uma cruz cravada de brilhantes.

— É isto mesmo, disse tremendo.