O moço loiro/XXXIV
O desconhecido, ao sentir que batiam na porta, pensando talvez que era Hugo de Mendonça ou alguma outra personagem para ele incômoda, quem vinha a tais horas procurar Félix, estremeu-se dentro do guarda-roupa deste, e aí se escondeu; bem semelhante ao D. Carlos do Hernani, de Victor Hugo, oculto no armário da casa de D. Sol; mas, vendo qual era a inesperada visita, e, lendo-lhe no físico a recomendação de seu juízo, mais por curiosidade do que por conveniência, deixou-se estar no guarda-roupa, apesar da penosa posição em que era obrigado a conservar-se.
Agora duas palavras sobre o recém-chegado.
A visita de Manduca era nada menos do que o fruto de longas lucubrações: todos nós sabemos que este homem pertencia à classe dos ultrapensadores.
Manduca, por ser dos tais que gastam meses inteiros em requestar uma moça sem que ela de tal se aperceba, nem por isso achava bom e justo que lhe fizessem por casa o que ele praticava por fora; e, pois, ouvindo de sua irmã, no dia da disputa conjugal, que tão mal acabou para ele, pensamentos que demonstraram o adiantamento das relações de Rosa com seu primo, e demais um pouco tocado da idéia da possibilidade de uma paixão de Félix por Honorina, fez para logo voto de pensar nisso com madureza.
Desgraçadamente teve tempo de sobra; porque, ficando derreado por amor de seu pai, não se pôde levantar da cama, senão depois de alguns dias. Tomásia pôs em campo a medicina a favor de seu filho; e, pelo sim, pelo não, vinha de manhã um médico alopata, que o sangrava geral e parcialmente, e de tarde um homeopata, que lhe embutia no estômago uma niilidade de qualquer coisa; depois de longos oito dias, as dores foram, enfim, diminuindo, e Manduca sentiu-se capaz de dar alguns passos sem gemer.
Mas, ao menos nesses oito dias, Manduca pensou, tornou a pensar, e, finalmente, concluiu que o melhor partido a seguir era procurar a Félix e pedir-lhe miúda conta das pretensões que nutria sobre sua irmã.
Assentado de pedra e cal neste propósito, no primeiro dia em que se conseguiu levantar-se, dispôs-se a esperar pelas horas de descanso de Félix, e apenas viu anoitecer, foi procurá-lo. Como era conhecido, os caixeiros da casa de Hugo deixaram-o entrar, e ele, um instante depois, bateu na porta do quarto de Félix.
Quando a porta se abriu, e Manduca entrou, os dois primos recuaram boquiabertos e ficaram espantados um do outro.
Havia seis dias que Félix não via Manduca; ora, a enfermidade e a medicina tinham-se dados as mãos para pôr o pobre rapaz com um físico de espantar crianças.
Pálido, descarnado, com os olhos encovados e sombreados por duas notáveis olheiras roxas, com o grande nariz que de seu pai tinha herdado, tão afilado como luzente, com enormes mãos caídas esquecidamente das mangas da casaca, com as pernas muito finas, em uma palavra com todo o corpo dançando largamente dentro da roupa que vestia, Manduca semelhava uma múmia.
Félix, no estado de exacerbação em que se achava, pouco sentiu faltar-lhe para crer-se na presença de uma alma do outro mundo; mas, em compensação, Manduca teve também de que espantar-se.
Félix estava ainda mais pálido que seu primo; seus olhos, possuídos de indizível expressão de terror, vagavam incertos e espantados em derredor dele; convulsivo tremor quase que o não deixava suster-se em pé, e, querendo encobrir sua perturbação, o moço espalhava à força em seus lábios um sorriso insípido e mal fingido, que estremecia terrivelmente, obedecendo à convulsão dos músculos labiais.
Depois de um momento de admiração silenciosa, Manduca rompeu o silêncio:
— O que é isto?... o que tens, primo?...
— Nada, balbuciou Félix, absolutamente nada... eu sofri... um ataque nervoso... minhas loucuras... tinha passado uma noite em claro... em orgia... depois... um dia inteiro a trabalhar...
— Então, por que não vem o médico?...
— Não!... nada de médicos: tudo está acabado; estou bom; perfeitamente bom...
— Sim... mas...
— Mas é que também estás muito abatido, primo, sofreste muito então?...
— Apenas hoje pude levantar-me.
— E vieste logo ver-me; obrigado... nós nos estimamos sempre muito...
— Porém, a minha visita de hoje não era puramente de amizade; eu vinha falar-te sobre objeto muito grave.
— Muito grave?... perguntou Félix estremecendo tão violentamente, que se agarrou à cadeira, onde se sentara; muito grave?... e para quem?...
— Para ti, e para...
— Para mim!!!
— Todavia, acho-te em estado tão cruel, que julgo melhor deixar para amanhã.
Félix pensou um instante; em sua vida só havia um crime; esse crime era absolutamente conhecido do homem que oculto os estava ouvindo; portanto, não teve receio de que Manduca falasse; o que o podia envergonhar já não era mistério para aquele; de nada mais se acusava Félix; além disso, se era de seu crime, que vinha seu primo ocupá-lo, fazia-se preciso conhecer quanto os outros sabiam desse segredo fatal, para mais acertadamente prevenir as conseqüências.
— Meu primo, disse, pois, Félix, convém não demorar, o que é importante; eu estou pronto para ouvir-te.
— E se o que eu vou dizer te fizesse mal?...
— Não; nada mais sofro; fala.
— Pois como insistes, lá vai.
Manduca dispôs-se a começar, mas esteve bons cinco minutos a preparar um exórdio para seu discurso. O pobre rapaz, que tinha suas vontades de ser orador, esquecia-se de que o gosto da época e do país, quanto a discursos, não se dá muito nem com forma, nem com matérias, nem regras; o que se quer é falar, e falar muito: a beleza do discurso está na razão direta do tempo que se gasta em pronunciá-lo, embora se diga muita coisa vã, fútil e intempestiva.
Graças à sua pouca habilidade, Manduca convenceu-se de que não arranjaria um exórdio capaz nem em quinze dias; e, pois, começou ex-abrupto, dizendo:
— Meu primo, tu sabes que eu sou irmão de minha mana Rosa...
Em outras circunstâncias Félix teria interrompido a seu primo com uma risada; mas, na triste posição em que se via, contentou-se com dizer:
— Eu sei.
— Pois que a mana Rosa é minha irmã, segue-se que eu devo ter todo o cuidado nela.
— Sem dúvida.
— Ora, acontece que anda-me ela de cabeça à roda por tua causa...
— Por minha causa?...
— Que tu a tens entretido com esperanças de casamento, sei eu muito bem.
— Está bom, primo, pensei que querias falar de outro objeto. Trataremos disso amanhã ou depois; temos muito tempo.
— Nada, agora já que principiei hei de acabar. Sim, senhor, como ia dizendo... com que... o que dizia eu?...
— Primo, falaremos disso em outra ocasião.
— Pior é essa, meu primo: já te disse que hei de acabar o que comecei. Estava eu dizendo que tu lhe tens dado esperanças de casamento...
— Sim... e depois?...
— É que aqui não temos depois: o que se há de fazer amanhã, faz-se hoje... o que se promete, cumpre-se.
— Manduca... está-me doendo a cabeça.
— O negócio também não é para tanto; acaba-se tudo com um sim, ou com um não; isto é, com o sim, ficamos arranjados.
— E com o não?...
— Hás de dizer-me o porquê.
— E se eu disser, pode ser?...
— Eu cá não me entendo com pode ser. A mana Rosa já está em idade de casar e é de crer que não tenha vontade de esperar muito tempo. Além disso...
— Além disso o quê?...
— Há um célebre noveleiro que anda espalhando boatos pouco agradáveis...
— Boatos?... perguntou Félix estremecendo de novo.
— Sim: um tal nosso amigo, o Sr. Brás-mimoso, a quem se meteu em cabeça requestar a filha do Sr. Hugo de Mendonça, e que para espantar do lado dela os homens de mérito, que a possam pretender, atreve-se a dizer que ela é uma namoradeira...
Manduca interrompeu-se, ouvindo certo ruído semelhante ao de uma porta que se abre devagar.
— Que é isto? parece que nos escutam... disse Manduca observando.
— Não... não há aqui ninguém... seria o vento... ou alguma outra coisa...
Isto dizendo, Félix olhou para o guarda-roupa e viu uma das portas meia aberta, e pela fresta o olho do homem desconhecido.
— Mas, como ia contando, continuou Manduca, o tal Sr. Brás-mimoso arrojou-se a dizer que tu és um dos apaixonados de D. Honorina...
— É falso... é uma calúnia!
— Ora, isso não fez muito bom cabelo, nem à mana Rosa, nem a mim mesmo; um dia... houve lá em casa o diabo a quatro...
— Meu primo...
— Qual, meu primo, se tu estivesses lá, verias como se pôs a mana Rosa; olha que quando se enfeza é uma víbora; também tirando disso é uma pomba sem fel.
— Está bem... está bem...
— Pois a mana Rosa acreditou tudo quanto lhe quis dizer o Brás-mimoso; pôs a boca no mundo contra a pobre D. Honorina, e te desandou uma descompostura de tirar couro e cabelo; eu, que vi o caso mal parado, protestei, que o negócio havia de acabar bem, e aqui vim hoje, por não ter podido vir há mais tempo.
— Mas... meu primo...
— Espera, primo Félix, devo confessar-te que também tenho interesse na questão: eu estou perdido de amores pela filha do Sr. Hugo de Mendonça, e concebo minhas esperanças de alcançar a posse de seu coração; ideei um plano vastíssimo; estou cabalando para ser deputado provincial, e apenas encartar-me na assembléia e tiver pronunciado o meu primeiro discurso, que há de durar sessão e meia, apresento-me à moça... e tu bem sabes que uma fisionomia de deputado é sempre simpática, por conseqüência... mas que diabo ia eu dizendo?...
— Tu ias dizendo... ias dizendo...
— Ah!... por conseqüência é preciso decidir-te; levarei o teu sim à mana Rosa, e então toda a nossa família trabalhará de acordo comum para o meu casamento.
— Pois bem, primo; fico ciente do que exiges de mim, e pensarei para responder-te.
— É que tudo já devia estar pensado há muito tempo.
— Como?...
— Digo que deverias ter pensado suficientemente, quando principiaste a fazer-te de engraçado com a mana Rosa...
— Manduca!
— Ora, vê lá se queres negar a mim mesmo: então a mim, que tantas vezes servi de pau de cabeleira!
— Contudo... quando se trata de um casamento, ninguém se resolve de repente...
— Mal vai o negócio, meu primo; e se eu te perguntar qual era, portanto, o teu propósito, quando te punhas a piscar os olhos para mana Rosa?...
— Eu nunca lhe pisquei os olhos.
— Piscavas... e fazias mais; pisavas-lhe no pé por baixo da mesa; e, quando jogavas o diabrete com ela, ficavas sempre burro sem vergonha nenhuma...
— Primo... está bom: já te disse que me decidirei.
— Pois vamos lá... resolve-te.
— Daqui a quinze dias.
— Não estou por isso.
— De hoje a oito dias...
— É muito; para esse tempo já a mana Rosa deverá estar casada.
— Isso é uma loucura!
— Loucura é andar desinquietando as filhas dos outros!
— Não posso responder agora; estou doente...
— Nada... já estás muito melhor, vamos ao caso.
— Tenho a cabeça em fogo.
— Não me importa isso; também em fogo anda a cabeça da mana Rosa. Vamos... vamos...
— Pois queres obrigar-me...
— Se tanto for necessário...
— Meu primo!...
— Anda... anda... vamos depressa, que mana Rosa me está esperando.
— Tu és um louco.
— Sim ou não?...
— Isto é insuportável!... exclamou Félix.
* Sim ou não?...
* Meu primo!... deixa-me!... deixa-me!...
* Sim ou não?...
— Meu primo!... isto chama-se abusar!...
— Sim ou não?... gritou Manduca.
— Não, não e não!
— Pois, então, disse Manduca com o maior sangue-frio, vamos ao morro de Santa Teresa pôr termo às nossas dúvidas.
— Um desafio?...
— Sem dúvida.
— Estarei às suas ordens amanhã todo o dia... agora é impossível... é noite.
— Nada: há de ser agora mesmo; eu não tenho medo de errar o tiro.
— Amanhã... amanhã somente.
Não senhor, nessa não caio eu; sei bem como se arranjam as coisas para chegar uma denúncia aos ouvidos do chefe da polícia...
— Senhor!...
— Agora, se está com medo... é outra coisa...
— Não! vamos!... já que o quer... saiamos!...
Félix, exasperado, dava um passo para sair, quando as portas do guarda-roupa se abriram, e o desconhecido saltou entre os dois.
— O Sr. Félix não pode sair, disse ele.
Félix tornou a cair sobre sua cadeira, enquanto Manduca, espantado, perguntou:
— Onde estava o senhor metido?...
— Dentro daquele guarda-roupa, respondeu ingenuamente o desconhecido.
— E, então, diz que meu primo não há de sair comigo?...
— Sim; e digo ainda mais, que ele o vai satisfazer prontamente.
— Como?...
O desconhecido voltou-se para Félix:
— Sr. Félix, a sua vida por hoje me pertence. Portanto, não a pode ir assim parar no jogo de um duelo: façamos, porém, por concluir isto amigavelmente... e tanto mais que o senhor seu primo tem que fazer comigo esta noite.
— Eu?...
— Sim, senhor; em breve falaremos. No entanto, o Sr. Félix vai responder-me sem dúvida: é certo que deu à senhora sua prima a esperança de com ela casar-se?...
Félix não respondeu; ele tremia mais que nunca; porque o riso do sarcasmo, o riso insultante da ironia estava nos lábios do desconhecido; Félix tremia de medo... e de raiva.
— É certo?... repetiu o desconhecido levantando a voz; verdade, Sr. Félix, verdade; é certo?...
— Sim... balbuciou o infeliz moço.
— Pois, senhor, disse o desconhecido voltando-se para Manduca; pode assegurar à sua irmã que seu primo está pronto para cumprir o que disse; não é assim, Sr. Félix?...
— Sim...
— Será possível!... exclamou Manduca espantado; porém, que diabo de homem é o senhor?...
— Um íntimo amigo de seu primo; não é assim, Sr. Félix?...
— Pois, senhor, fico-lhe muito agradecido pelo obséquio que acaba de fazer-me; e como desejo ir já levar a resposta à mana Rosa, espero que me diga qual é o negócio que tem comigo esta noite.
O desconhecido tirou o relógio, e depois de examinar as horas, disse:
— Às nove horas da noite esteja o senhor junto à igreja da Lapa do Desterro.
— Posso saber para quê?...
— Basta saber que é para salvar de um perigo iminente a Sr.ª D. Honorina... armam-lhe terrível laço.
— Quem?...
— Um homem chamado Brás...
— Por alcunha — o mimoso?...
— Exatamente.
— Estou pronto; lá estarei. Adeus, meu primo; senhor, até às nove horas da noite.
— Junto à igreja da Lapa do Desterro.
Manduca saiu. Apenas se viu só com Félix, o desconhecido o segurou pelo braço, e levantando-o da cadeira:
— Agora a cruz cravada de brilhantes!... disse ele.
Félix dirigiu-se à carteira, abriu-a... descobriu um escaninho de segredo, e daí tirou uma boceta forrada de veludo preto; abriu depois esta, e o desconhecido viu uma cruz cravada de brilhantes.
— O senhor acha-se vestido... tome a casaca, e saiamos.
— Para onde?... perguntou Félix.
— Para ir à casa de Hugo de Mendonça entregar a cruz de brilhantes a Honorina.
— Oh!... não!... senhor!... eu não posso!...
— Há de ir: eu lhe prometi que seria por eles perdoado; disse-lhe que bastariam duas únicas palavras.
— Será possível?...
— Eu lho prometo de novo pela minha honra.
— Mas a quem direi essas palavras?...
— A Honorina.
— E quais são essas palavras?...
— Peça-lhe de joelhos, que ela obtenha o perdão e o esquecimento de seu crime... diga-lhe que só uma pessoa no mundo foi capaz de obrigá-lo a ir restituir-lhe a cruz de brilhantes, e a provar assim a inocência de seu primo Lauro de Mendonça; mas que essa pessoa exige dela que lhe perdoe, e que faça com que sua família perdoe também e esqueça o seu delito... Honorina lhe perguntará quem pôde fazer tanto, e o senhor responderá que foi... note bem, senhor, aqui vão as duas palavras...
— Diga-as...
— O moço loiro.