O moço loiro/XXXIX

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Sentado numa bela cadeira de braços, em seu gabinete de trabalho, estava Otávio entregue a mil diversas reflexões, das quais apenas por instantes se arrancava para examinar o ponteiro do relógio de parede, que em frente dele se via pendurado.

A cabeça desse mancebo ardia como seu próprio coração. Honrado e nobre, Otávio tinha encontrado no caminho de sua vida uma mulher por extremo formosa para enfeitiçá-lo; amou-a com todo o amor de sua alma; mas, quando foi pedir-lhe a paga de sua ternura, escutou em resposta um não; e esse não teve o poder de desatiná-lo a tal ponto, que se perdeu da bela estrada que seguia, emaranhando-se nos desvios do vício.

Otávio amava Honorina com uma dessas paixões veementes, que cegam o homem, e o podem precipitar; possuir o objeto de seus anelos era pois para ele, no raciocinar de seus transportes, um fim, onde importava chegar por quaisquer meios que fossem; pareceu-lhe que lavar uma mancha não era um impossível neste mundo severo, em que quase é regra não se dar regeneração moral possível.

Levado do ímpeto de sua paixão, ele não hesitou em ir propor a Félix uma transação infame, não trepidou diante de Hugo de Mendonça, quando estava representando em sua consciência o mais miserável dos papéis; porque, enfim, esse era o seu sonho, o sonho lisonjeiro que lhe prometia a posse de Honorina; mas quando sentiu que o pai da bela requestada se erguia orgulhoso sobre sua própria miséria, quando viu que seu derradeiro esforço ia ser baldado, o sonho começou a esvaecer-se, e ele, despertando, achou-se só, isolado, longe de Honorina, e identificado com a infâmia. Otávio caiu, então, debaixo do peso de suas reflexões. Era o período da febre que tinha passado, e cedido seu lugar à prostração.

Com efeito, livre por um instante do alarido das paixões, a alma de Otávio começou para logo a ouvir a voz pausada, grave e monótona da consciência, voz que é sempre a mesma, com o mesmo timbre, e que jamais se cala, incessante e monótona, como as vagas do mar, ou como o tique-taque da pêndula do relógio, que defronte estava.

Tão poderosa era essa voz, que já por dez vezes tinha podido volver à força os olhos de Otávio para a gaveta, onde se achavam guardadas as três letras falsas, que eram as provas palpitantes de seu crime; apesar do quanto sofria com tal recordação, a despeito do firme propósito que fizera de esquecer-se disso... Otávio olhava sempre.

Tão vingativa era essa consciência que falava, que tinha apagado a derradeira luz de esperança que Otávio poderia descobrir no correr do dia do vencimento das letras; indigno de felicidade a seus próprios olhos, Otávio gemia, adivinhando que a posse de Honorina era para ele um impossível.

Tão formidável, enfim, era essa voz, que aquele que de contínuo a estava ouvindo, temia que ao passar pelas ruas uma boca lhe gritasse — falsário!... oh! ele tinha medo de Félix, tinha medo do mundo, e corava diante do seu espelho!

Finalmente, ouvindo dar dez horas, disse:

No correr da mesma noite em que se passaram com Félix, Manduca e o desconhecido as cenas de que demos conta, estava, pois, Otávio, triste e pensativo, sentado no seu gabinete de trabalho, e olhando de momento a momento para o relógio.

Finalmente, ouvindo dar dez horas, disse:

— Ainda me falta meia hora!

Depois tirou de seu bolso um pequeno bilhete, que leu ainda uma vez; pois que já o tinha feito por muitas vezes. O bilhete dizia assim:

"Negócio importante que cumpre ser decidido hoje mesmo com o Sr. Otávio me obriga a pedir-lhe licença para procurá-lo às dez horas e meia da noite em ponto."

Ou por descuido, ou de propósito, o bilhete carecia de assinatura.

Bilhete tão estranhamente concebido, hora de encontro tão mal escolhida, a ignorância em que se achava Otávio a respeito do negócio, que tão urgente se dizia, e, enfim, o receio que ele começava a ter de tudo quanto lhe parecia pouco comum, faziam com que Otávio esperasse ansioso pela hora determinada.

Recolhendo-se a seu gabinete, ordenara a um de seus escravos que ali fosse conduzida uma pessoa, que se apresentaria pouco depois das dez horas da noite.

Faltavam ainda vinte minutos para essa hora, quando o escravo anunciou e fez entrar o Sr. Félix.

Ao ver aquele que conhecia a mancha que nodoava sua reputação, Otávio corou, involuntariamente, e, apontando para uma cadeira, disse:

— Senta-te.

— Não, Otávio, eu não me sentarei.

— Pois conversaremos de pé; mas nunca me passou pela cabeça que fosses tu quem me escreveu aquele bilhete singular.

— Eu não te escrevi bilhete algum.

— É que a tua visita a estas horas...

— A minha visita a estas horas, Otávio, quer dizer que entre nós tem de decidir-se uma questão bem grave.

— E então...

— Eu venho dizer-te que tive uma hora de loucura, da qual me acho felizmente curado, e que por conseqüência posso desfazer tudo quanto havia feito desarrazoadamente.

— Peço que te expliques... e depressa: vês que eu espero alguém.

— Pensei que me tinhas compreendido, Otávio; porque a minha hora de loucura se passou entre nós dois.

— E portanto...

— E, portanto, eu te declaro que já não me acho disposto a consentir que seja reduzida à miséria uma família inteira, para obrigá-la a sacrificar-te uma bela moça.

— Félix!...

— Passou o tempo, Otávio, em que tua voz me fazia calar, e os teus olhos me obrigavam a abaixar a cabeça; duas paixões nos atiraram para um abismo... estamos hoje na mesma linha.

Otávio, vermelho de vergonha e de despeito, olhou para Félix como se não acreditasse que era aquele mesmo homem que lhe estava falando; porém, o guarda-livros, forte e decidido, por sua vez, prosseguiu:

— Eu venho, Otávio, receber as letras falsas que tive a fraqueza de te passar; venho declarar-te que o contrato da infâmia está roto.

— Oh!... isto é admirável!... exclamou Otávio; é admirável, que tu, Félix, levantes a cabeça diante de mim!...

— Sim, eu a abaixei diante de outros, e era preciso que a levantasse diante de alguém; Otávio, eu te estou devendo horas inteiras de vergonha, de miserável submissão, horas de torturas que te venho pagar agora.

— Insensato!...

— Oh!... pois bem. Compreende que diante de mim se apresentou um homem que me disse: miserável! tu roubaste uma cruz de brilhantes... quem te denunciou foi aquele mesmo a quem a confiaste!...

— É falso!...

— Foi Otávio... há alguns meses passados, em momentos de horrível padecer, foi ele quem te denunciou a uma mulher morfética!...

Otávio não teve uma palavra para dizer. Félix prosseguiu:

— Portanto, vês bem, Otávio, que tu faltaste à principal condição de nosso contrato de infâmia; e, neste caso, está nulo: eu quero, pois, as letras que me arrancaste.

— É tarde, Félix.

— Tarde?... tu não podes dizer-me que é tarde. Agora, Otávio, é tempo oportuno sempre para mim; sofri quanto sofrer podia; esgotou-se-me a paciência. Vamos!

— Félix!...

— Otávio, as letras falsas!...

— Miserável!...

É um nome que nos cabe a ambos; enfim, as letras!...

— Oh!... e não te lembras que eu tenho a vingança nas minhas mãos?... que nossas infâmias estão casadas?... que somos solidários na vergonha?...

— Sim; e porque eu já esgotei o meu cálice até às fezes, justo é que esgotes também o teu: as letras!...

— Pois bem: a cruz de brilhantes!...

— Era o teu escudo, não é assim, Otávio?... tu tinhas feito do teu amigo a miserável carta com que jogavas; que importava pouco que fosse perdida ou não, contanto que em resultado a partida do teu jogo de infâmia fosse por ti ganha: não é isto assim?... não é verdade o que eu estou dizendo?... oh! Otávio!... Otávio!... o teu escudo está quebrado!...

Otávio encarava Félix sem compreendê-lo.

— As letras!... as letras!... disse este levantando a voz.

— A cruz de brilhantes!...

— Vai pedi-la à filha do Sr. Hugo de Mendonça.

— Quê!... exclamou Otávio admirado.

— Sim! a minha vergonha está passada: tu me traíste... a morfética revelou por sua vez o que lhe confiaste, e esse homem, que me veio dizer: — roubaste uma cruz de brilhantes! — esse homem arrastou-me pelas ruas, varreu com meu rosto as escadas da casa do Sr. Hugo de Mendonça e me obrigou a ir lá com o meu crime nas mãos, com as lágrimas nos olhos, e com o grito de misericórdia na boca!

— E esse homem?...

— Esse homem é um demônio que nada ignora do que lhe convém saber; esse homem sabe do nosso contrato... não ignora que tu tens as letras falsas... sabe tudo!

— Mentira!...

— Oh!... não! desgraçada ou felizmente verdade!...

— Nós estávamos sós, e fechados no teu quarto...

— E por cima das nossas cabeças, a Providência, que não dorme, nos observava pelos olhos de um menino.

— E então...

— Um dos caixeiros da casa do Sr. Hugo me espreitava... e testemunhou o crime de nós ambos!

— Oh!... gritou Otávio deixando-se cair na cadeira.

Passaram-se alguns momentos em silêncio, durante os quais a cabeça de Otávio se não ergueu dentre as mãos, onde tinha tombado.

Terrível anúncio era esse que ele acabava de ouvir, e seu espírito lutava com a verdade para achar um meio de dizer — é mentira; trabalhava, perdido nesse pélago de vergonha, para deparar com uma tábua de socorro, em que se agarrando dissesse — ainda me não perdi!

Enfim, Otávio viu brilhar uma tênue e leve nuvenzinha de esperança. Era o que por então bastava; atirou-se para ela dizendo:

— É falso! é falso!... eu te compreendo! queres arrancar-me as letras, mercê dessa miserável astúcia!... não, não as terás...

— Tu me hás de entregar, Otávio!

— É impossível... é tarde, muito tarde! pensa que eu já as apresentei a Hugo de Mendonça, que já lhe disse — o senhor tem de pagar-me esta quantia! — e agora, Félix, agora...

— Otávio, para tudo se acha um remédio; lembra-te que me dizias: — o contrabando em que se achava empenhada a casa de Hugo enriquece e empobrece com a rapidez do raio.

— É uma desculpa miserável...

— Sim; mas uma desculpa que me ensinaste.

— Porque, quando se perdem embarcações... não há contrabando que receber, nem vender, não há contas que dar: diz-se — perdeu-se — e tudo está dito.

— Pois, então, Otávio, inventa uma desculpa; já que de qualquer modo que seja, as letras deverão sair daqui comigo.

— Félix!...

— Otávio!...

— Eu já disse que não acredito no que inventaste para assustar-me; tenho um fiador na cruz de brilhantes.

— A cruz de brilhantes aparecerá nas mãos da filha de Hugo de Mendonça...

— É falso!...

— Otávio... as letras!

— Não!

— Oh!... mas tu me estás desafiando!

— Sim!...

— E quando eu amanhã estiver gritando diante de todos, no meio de uma rua, ou na praça do comércio — o Sr. Otávio é um falsário!...

— Eu responderei que mentes!

Félix, com um terrível e vingativo sorriso estremecendo-lhe nos lábios, arrancou um papel do bolso:

— E esta carta?... exclamou ele, e esta carta?...

   * Esta carta?...

— Sim! a carta que me lançaste por baixo da porta, a carta em que me convidas para perpetrar o crime! — Oh!...

— Como é que tu hás de responder — ele mente! —, sabendo que para logo eu mostraria a todos a tua assinatura, o corpo de delito de nosso mútuo crime?...

— Miserável!...

— As letras! as letras, Otávio!...

— Miserável! disse outra vez Otávio, fazendo um movimento para erguer-se.

— Otávio, nem um só passo para mim que não seja para entregar-me as letras falsas; eu aprendi com o homem que me fez ir de joelhos entregar a cruz de brilhantes àquela a quem pertencia, a prevenir-me contra tudo; então, eu avancei para ele, como tu queres avançar para mim, e vi brilhar na sua mão uma arma mortífera, como tu verás brilhar na minha instrumento semelhante, se tanto for necessário.

Otávio, pálido de cólera, olhou de um modo terrível para Félix, em cujo peito viu luzir o cabo de um punhal.

— Porque, enfim, Otávio, as circunstâncias nos têm levado a extremos tais.

— Mas isto é uma infâmia!... disse com voz abafada Otávio, voltando a cabeça para o lado da porta, como quem ia chamar alguém.

— A primeira pessoa que aqui entrar, disse Félix, ficará para logo sabendo que tu exiges de Hugo de Mendonça o pagamento de três letras falsas. Chama agora os teus caixeiros, chama os teus escravos, Otávio.

— Maldito!... maldito!...

Nesse instante o relógio fez ouvir o sinal de meia hora depois das dez.

— Dez horas e meia!... exclamou Otávio; é a hora marcada pelo bilhete!...

Um escravo anunciou que ia entrar um homem embuçado em longa capa preta.

— As letras?!... disse Félix.

— Félix!... Félix!...

— As letras!...

Ouviam-se já muito próximas as pisadas da pessoa anunciada.

— As letras!... repetiu Félix com tom decidido e firme.

— Félix, disse Otávio com voz trêmula e fraca, peço-te meia hora para determinar-me; entra nesta alcova, enquanto falo ao homem que vai entrar.

— Seja, respondeu Félix entrando; mas só meia hora.

Quando a porta da alcova acabava de cerrar-se, o homem entrou no gabinete.

Esse homem vinha, como dissera o escravo de Otávio, embuçado em uma longa capa preta, cuja gola estava tão levantada que lhe escondia quase todo o rosto, e até os cabelos, de modo que apenas se lhe descobria parte média da testa e olhos, o nariz e o alto da cabeça: — era ele.

— Perdão, se me apresento assim, disse, tendo os olhos fitos na porta da alcova, como se examinasse alguma coisa; perdão, mas estou doente... constipado...

Otávio, sem dizer palavra, arrastou-lhe uma cadeira; a voz desse homem tinha produzido cruel abalo em Félix, que acabava de reconhecer nele o seu desconhecido.

— Não me sentarei, disse este; o negócio de que venho tratar conclui-se em poucas palavras.

— Estou às suas ordens, respondeu Otávio.

— Senhor, acho-me encarregado da administração da casa do Sr. Hugo de Mendonça, e como tal venho receber três letras na importância de quarenta e seis contos de réis, as quais existem na sua mão, e que, segundo creio, deverão já estar sobejamente pagas pelo Sr. Félix, guarda-livros da nossa casa.

Essas palavras foram pronunciadas com tal acento de ironia, e acompanhadas por um sorriso tão cheio de cruel zombaria, que pareciam estar dizendo — sabe-se de tudo.

Otávio empalideceu de maneira a causar piedade; como querendo achar uma resposta, e força para poder dá-la, guardou silêncio por alguns instantes; mas o olhar terrível e penetrante desse homem estava fito nele, como um dardo que se lhe ia enterrando até o coração; para escapar à sua influência, Otávio voltara os olhos, porém o sorriso do desconhecido se foi tornando em uma verdadeira risada insolente... sarcástica... ameaçadora...

Houve um momento de cruel angústia para Otávio, em que ele pensou, tremendo no desconhecido de Félix, e em que esse homem que aí estava em pé, defronte dele, continuou a rir-se, a rir-se sempre, e alto, insultuosa e desafiadoramente...

Enfim, Otávio pareceu haver tomado uma resolução: foi à porta da alcova, abriu-a e fez sair Félix.

— Sr. Félix, disse ele, este senhor está atualmente encarregado da administração da casa do Sr. Hugo de Mendonça?...

— Responda, Sr. Félix! disse com sua voz áspera o desconhecido.

Félix levantou os olhos, e viu embebidos em seu rosto os desse homem cheios de fogo e de audácia.

— Sim... balbuciou o guarda-livros.

— Segue-se, portanto, continuou Otávio, que devo-lhe entregar as letras que o senhor acaba de pagar-me?...

— Não, disse Félix; é a mim, que as vim pagar, que o Sr. Otávio deve fazer entrega delas.

— Contanto que as entregue, interrompeu o desconhecido, é-me indiferente que seja a mim ou ao Sr. Félix.

Otávio no mais alto grau de perturbação e terror abriu uma gaveta, donde tirou as letras, que entregou a Félix; depois, voltando-se para o desconhecido, abaixou os olhos, e, com voz submissa e implorante, disse:

— Seria possível esperar que isto acabasse de uma maneira decorosa para todos?...

— Seja, respondeu o desconhecido; eu me quero julgar satisfeito; porque ambos vós tereis de corar sempre diante de mim.

E, travando do braço de Félix, obrigou-o a acompanhá-lo e saiu, sem ao menos cortejar a Otávio.