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O moço loiro/XXXVIII

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Às nove horas da noite, dois vultos tinham-se aproximado um do outro, junto à igreja da Lapa do Desterro.

— Eis-me aqui, senhor, disse Manduca à misteriosa personagem, com quem de plano se aí encontrava.

— Bem, venha o senhor comigo, respondeu-lhe o desconhecido.

— Mas de que se trata?...

— Não há tempo a perder, tornou-lhe o homem; entremos naquela sege que ali nos espera, e, enquanto ela rodar, eu lhe explicarei tudo.

Manduca, que automaticamente se tinha deixado levar pela mão, logo que ouviu o rodar da sege, começou de novo o interrogatório.

— Para onde vamos?...

— Para minha casa.

— E a que fim?...

— O senhor vai vestir-se de mulher.

— Eu?! exclamou Manduca; então, que diabo quer isto dizer?... Não; não convenho em semelhante asneira...

— Há de convir, quando souber das críticas circunstâncias em que nos achamos.

— Pois então fale, fale, ande...

— Saiba, pois, que a jovem viúva D. Lucrécia detesta furiosamente a bela filha de Hugo de Mendonça.

— Homem, ainda não reparei nisso; mas hei de pensar a tal respeito.

— Detestando-a, como fica dito, determinou perdê-la; e achou que o melhor meio para isso era sacrificá-la a Brás-mimoso.

— E o mais é que foi bem pensado! deve ser um sacrifício casar-se uma mulher com aquele composto de postiços...

— Ora pois; sabendo Lucrécia que apuros comerciais ameaçam a Hugo, o qual para salvar-se deles tratava de um casamento entre Otávio e D. Honorina, que aborrece... quero dizer, que estima a este homem ainda menos que a Brás-mimoso, a atilada viúva, que se finge amiga de D. Honorina, foi à casa desta, e com sua conhecida habilidade convenceu-a de que devia fugir para um convento, a fim de não se casar com Otávio.

— E foi um conselho muito bem dado.

— O caso terá de passar-se pelo modo seguinte; uma sege estará postada na primeira esquina distante da casa de Hugo e do lado da cidade; D. Honorina, quando ouvir dar dez horas, sairá da casa, e entrará na sege, logo depois entrará D. Lucrécia; ambas as moças estarão mascaradas... e a sege partirá!

— Bravo! bravo!... tomara eu saber quantas semanas levarão a arranjar um plano tão intrincado!... essas moças são capazes de fazer uma revolução política no mundo!

— Mas em lugar de ir parar à porta e abrigar-se no seio de um convento, D. Honorina será por sua falsa amiga sacrificada a Brás-mimoso.

— Que mixórdia!... que mixórdia!...

— Ora, eu que amo ardentemente a D. Honorina, e que por ela velo sempre, pude penetrar esse pérfido segredo, e fiz também o meu plano; ainda não o conhecia, e, pois, não contava com o senhor. Comprei vestidos de mulher, e uma máscara para mim, disposto a ir às dez horas sentar-me na sege ao lado de D. Honorina, antes que D. Lucrécia o fizesse.

— Essa é que é uma dos diabos!

— Encontrando-o, porém, ouvindo a confissão do seu amor, e simpatizando logo muito com a sua fisionomia nobre, distinta e luminosa... determinei propor-lhe fugir com D. Honorina, ir pô-la no convento... salvá-la de Brás-mimoso; porque, enfim, eu não sou egoísta; se se descobrir isso, o senhor pode casar-se com ela, e lavar-lhe a mancha, e eu não posso... sou casado.

— Homem, não é melhor irmos declarar tudo ao chefe da polícia?...

— Como? publicar a fraqueza de uma pobre moça?...

— Então, dirijamo-nos a seu pai...

— Para fazê-la vítima de seus justos furores?...

— Antecipemos, do que ocorre, à mesma D. Honorina.

— Ela se não recolherá ao convento, e casar-se-á com Otávio...

— Decerto... o caso é grave!... se me dessem ao menos três dias para meditar sobre a matéria...

— Chegamos... senhor; apeie-se... venha vestir-se...

— Homem, escute...

— Estou quase crendo que o senhor tem medo de encontrar-se amanhã com Brás-mimoso.

— Que é lá isso?... ora, eu lho mostro: entremos... e vista-me de mulher.

— Venha!... a sua missão é sagrada... o Sr. Manduca já tem ares de cavaleiro andante.

O desconhecido acabava de lembrar-se de D. Quixote.

Logo depois, Manduca estava em um pequeno sótão, onde achou tudo quanto era necessário para vestir-se de mulher.

Confundam-se todas as senhoras, pois lhe asseguramos que, em menos de um quarto de hora, o rapaz estava completamente vestido de mulher; era um gosto vê-lo! Um vestido de seda verde, que oito meses antes estivera muito na moda, por ser em demasia curto, lhe deixava à mostra um bom palmo de finíssimas pernas, e dois imensos pés terrivelmente apertados em sapatos de lã; o desconhecido pendurou-lhe, como melhor pôde, dois cachos postiços aos lados da fronte, e depois escondeu-lhe os cabelos com uma touca cheia de rendas brancas e encarnadas; mas com tanta inabilidade o fez, que a touca mostrou-se na posição inversa da que deveria ficar, isto é, a frente ficou para trás. Finalmente, um longo xale de seda já usado embrulhou desarranjadamente o corpo de Manduca.

— Bem... disse o desconhecido, está lindíssimo, está mais belo do que o amor, esbelto como uma palmeira... é uma virgem... uma vestal completa... vamos...

— Vamos! exclamou o pobre Manduca entusiasmado com o elogio pomposo que lhe fazia o desconhecido.

E desceu a escada, ele, jovem senhora improvisada, com esse andar asselvajado e rude, próprio das pessoas afeitas às botas.

Os dois tornaram a subir para a sege que partiu; poucos momentos antes das dez horas parou; o desconhecido e Manduca apearam-se.

Uma outra sege estava parada na esquina, que do lado da cidade mais próxima ficava da casa de Hugo; o desconhecido mostrava-a a Manduca, quando soaram as dez horas.

— Senhor, disse ele, apresentando uma máscara a Manduca, deixe agora arranjar-lhe a máscara no rosto, e parta; durante a viagem não diga palavra... olhe... lá sobe Honorina para a sege... ainda bem que o senhor está pronto... ande... corra... vá...

— Mas o boleeiro para onde nos levará?...

— Para o convento da Ajuda; o boleeiro está peitado por mim...

— Bom... adeus... vou salvar a beleza! disse Manduca partindo.

— Sim! vá imortalizar-se!... seja feliz!

Logo depois duas seges rodavam para a cidade: iam na primeira dois vultos de mulher; e mais atrás o desconhecido, na segunda, ria-se desabaladamente.



Um gênio benfazejo velava, portanto, a favor de Honorina: o moço loiro, pois não pode restar dúvida de que este desconhecido é ele, o moço loiro tinha em poucas horas prestado à sua bela amada os mais valiosos serviços.

Ainda com uma nova cabeleira, ainda trajando estranhas vestes, ele aparece, confunde a Félix, e, nós o sabemos, a cruz de brilhantes torna às mãos de sua herdeira, e a inocência de Lauro é demonstrada.

Sem que se saiba como, compreende ou adivinha o que se passa entre Lucrécia e Honorina, e protesta castigar a viúva.

É ele que escreve a Lucrécia a palavra do ajuste, o sim, simples termo que simboliza a vingança de uma mulher e a perda de outra.

Na tarde desse dia, a viúva tinha ainda escrito a Honorina, recomendando-lhe que, se pudesse, fugisse mascarada para não ser conhecida ao sair de casa, e que durante a viagem se abstivesse de falar, para não ser ouvida pelo boleeiro que as devia conduzir.

O moço loiro intercepta essa carta, também ignoramos por que meio, e, senhor do plano de Lucrécia, forja então o seu. Tão bom como travesso, tão nobre como extravagante, o projeto que concebe é uma extravagância, e sua execução deverá ser uma travessura. Ele dispõe-se a tornar vestido de mulher e ir dar, embora mascarado, um passeio noturno com Lucrécia; mas, escondido dentro do guarda-roupa de Félix, ouve o que diz Manduca, sabe que é também seu rival, abre um pouco a porta do guarda-roupa para ver a cara do homem que ama Honorina; vê-se a ponto de soltar uma risada... contém-se... pensa, e modifica seu projeto de vingança contra Lucrécia... fá-lo uma travessura completa; e, enfim, nós o sabemos, vê seu plano coroado pelos mais felizes resultados.

Provavelmente importantes negócios o obrigam a não seguir por muito tempo a sege em que vão os dois vultos de mulher; pois que ele volta a seu sótão, despe os falsos vestidos, arranca a mentirosa cabeleira, começa a vestir-se com todo o zelo e afã de um namorado, e defronte de seu toucador fala consigo mesmo, sorrindo-se:

— Estou fatigado; mas pouco falta... muito bem! muito bem! fingi-me pobre e desgraçado... abatido e melancólico... escrevi um livro de amor, todo molhado de lágrimas, sondei o coração de Honorina, e conheço que, pobre ou não, feliz ou desditoso, sou por ela amado... agora sim... posso e quero consagrar-lhe a minha vida...

O tal Sr. Lauro de Mendonça não deve também desejar mais nada... continuou sorrindo-se com malícia; está tudo feito: a vaidosinha D. Lucrécia lá se vai com Manduca, passeando pelas ruas da nossa boa cidade... ora pois: acabemos com isto... vamos depressa fazer as últimas visitas.

E, como já se achasse vestido com toda, elegância, e com seus longos e crespos cabelos loiros cuidadosamente penteados, embuçou-se com uma longa capa negra, cuja gola lhe escondia quase todo o rosto, desceu, embarcou de novo na sege e partiu.

Pouco faltava para dez horas e meia da noite.



E agora voltemos a acompanhar com o leitor a outra sege, onde iam os dois vultos de mulher.

Rodava ela, e nenhuma das duas senhoras dizia palavra; Manduca guardava silêncio, porque assim seguia os conselhos de seu mentor, e também com medo de ser antes do tempo reconhecido pela sua voz; e aquela que ele supunha ser Honorina, e que era, sem dúvida, Lucrécia, porque de plano ou por pejo não se queria deixar ouvir.

Mais uma vez os pés das moças se tocaram; a companheira de Manduca estremeceu toda. Que bom sinal!... que delicioso estremecer!... era, sem dúvida, o efeito do pejo; e daí a pouco, oh, glória!... Manduca recebe um beliscão na perna... não houve dúvida, pagou-lhe com outro; vem um segundo mais forte, Manduca não hesita, não quer ficar devendo nada, e desta vez o aplica um pouco menos brando; recebe um terceiro tão terrível, que quase o obriga a gritar; Manduca paga-o imediatamente com uma unhada de mestre; ouve um surdo gemido, e temendo ter ofendido a bela companheira, toma-lhe a mão, e beija... oh!... como achou tão macia aquela mãozinha de querubim!...

Já estavam as duas a beijar mutuamente as mãos... já uma vez por outra tinha havido seu abraço respeitoso, quando a sege parou; era o momento decisivo: ambas as viajadoras estremeceram.

Ora, a viúva tinha tomado bem suas disposições para que a vergonha fosse completa: Honorina não devia lavar-se mais nunca daquela nódoa, aliás todo o seu trabalho estava perdido. Lucrécia entendeu que havia necessidade de testemunhas, e se propôs a tê-las; para isso um escravo seu foi à casa de Venâncio e entregou a Tomásia um bilhete dela, que dizia assim:

"Minha comadre. A amizade que lhe tenho não me deixa gozar com satisfação um prazer em que Vossa Mercê não tome também parte. Quero que venha apreciar comigo uma bela cena: o nosso amigo Brás-mimoso trata de casar-se, e pelo sim pelo não a noiva chega-lhe hoje às dez horas da noite; vamos causar-lhe uma surpresa, e recebê-la; havemos de rir-se muitíssimo; às dez horas, pois, esteja com seu marido, sua filha e seu filho em casa de Brás-mimoso, e, se eu me demorar, esperem-me, que não tardarei."

Sua comadre do coração — Lucrécia.

Esse bilhete foi recebido às nove horas da noite, e deu vivíssimas contestações; porque Venâncio sustentava que não devia levar sua família à casa de um homem solteiro; mas, como sempre, a vontade de ferro de Tomásia triunfou dos pudicos receios de seu marido.

Conseqüentemente, às dez horas da noite Venâncio, Tomásia e Rosa achavam-se em casa de Brás-mimoso, que parecia ornada com estudo, e muito de fresco.

Manduca não acompanhou sua família, porque desde as oito horas da noite se achava fora de casa: melhor do que os próprios pais, sabem os nossos leitores o que era feito dele.

Lucrécia não havia ainda chegado; isso, porém, não admirava a comadre, pois pelo bilhete da viúva conhecia-se que ela contava demorar-se. Brás-mimoso era esperado a todos os instantes.

Estavam, pois, os três pensando se a noiva seria bonita ou feia; quando ouviram o rodar de uma sege, que parava à porta: era a noiva!...

Lembrando-se da palavra surpresa escrita no bilhete da viúva, Tomásia fez entrar seu marido e sua filha, e entrou ela também para a alcova, fechando de novo a porta, porque já ouviam os passos de duas pessoas, que subiam a escada.

Manduca, a princípio espantado, viu que sua companheira abria sem-cerimônia a sege, tomava-lhe a mão, e o fazia apear-se em uma rua muito diferente daquela em que existe o convento da Ajuda; semelhante passo, uma tal ação praticada por Honorina, a fazia perder muito no seu conceito; mas tarde para recuar, e, enfim, forte e valente como era o moço, não temeu nada e foi-se deixando levar.

A moça deu o braço a Manduca, e entrou em um corredor... subiram sem bater palmas... e, enfim, chegaram à sala.

Houve um momento de hesitação em que Manduca e sua companheira ficaram olhando um para o outro... depois, e a um só tempo, arrancaram suas máscaras...

Duas exclamações de espanto se deixaram ouvir então... e ambos aqueles vultos de mulher recuaram espantados...

A companheira de Manduca era nada menos que Brás-mimoso vestido também de mulher!

Para perder Honorina, Lucrécia tinha tido pouco mais ou menos o mesmo pensamento que tivera o moço loiro para salvá-la e vingá-la.

Brás-mimoso soltou de novo um grito de espanto e de medo.

— Que traição! exclamou ele.

Manduca ficou um momento embasbacado; logo depois bradou:

— É agora, jagodes de uma figa!

E atirou-se sobre o seu rival, dando-lhe socos, como o churinado depois da lição de seu mestre.

Venâncio, Tomásia e Rosa acudiram aos gritos que soltava o velho gamenho.

Foi um triunfo importante arrancar Manduca de cima de Brás-mimoso, sobre quem estava agarrado como uma sanguessuga.

O resto da cena tornou-se completamente ridícula.

Manduca tinha a sua touca enfiada no pescoço; só lhe restava um dos cachos; o vestido estava roto de cima a baixo; e já havia neste uma manga de menos; espumando de raiva, dizia:

— Eu!... eu beijar a mão deste tratante!...

Brás-mimoso estava sem touca e sem cabeleira... tinha os beiços rebentados pelos socos que apanhara, e sua figura se tornava absolutamente risível, quando se olhava para seus vestidos de mulher, e depois para sua cabeça absolutamente calva.

— Nesta, dizia ele, só me podia meter a Sr.ª D. Lucrécia!

Uma gargalhada de Rosa rematou a cena.