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O moço loiro/XXXVII

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Félix entrou em seu quarto, nesse quarto em que pouco antes se haviam passado cenas para ele acerbas, e atirou-se sobre o leito, vestido como estava, sem lhe importar mais trancar a porta por dentro.

Eram pouco mais de nove horas da noite, e posto que já estivesse o armazém fechado, ainda nenhum dos caixeiros e serventes deveria dormir.

Aflito ainda com o que tinha ocorrido, porém, sentindo-se livre desse peso enorme que por sete anos lhe esmagara o sossego, Félix pôde, enfim, ordenar suas idéias e pensar no vôo desses acontecimentos inesperados, na representação improvisada desse drama vergonhoso em que lhe coubera o mais triste papel.

Havia um ponto em que Félix não podia explicar sem acusar a Otávio como traidor; de que meio se valera esse desconhecido para saber até o lugar onde ele tinha escondido a cruz de brilhantes?...

Estava, pois, entregue a tais pensamentos, quando, ao voltar uma vez os olhos, viu em pé, com os braços cruzados defronte de seu leito, um jovem de dezesseis anos, caixeiro da casa.

Esse menino era belo, alegre e esperto, e mostrava-se, então, abatido e melancólico.

— Que fazes aí, Carlos?... perguntou Félix sem mostrar-se enfadado.

— Eu o estava observando, Sr. Félix, estava colhendo no seu rosto os pensamentos que o ocupam.

— Tu és um importuno, por aqui teres vindo sem motivo algum, e és um tolo pelo que acabas de dizer.

— Eu não sou importuno, Sr. Félix, porque foi uma forte razão quem aqui me trouxe, e não sou tolo, porque, em verdade, sei a respeito de que estava o senhor pensando.

— Então, a respeito de quê?... perguntou Félix ensaiando um sorriso.

— O senhor estava pensando, disse o menino sem hesitar, como é que um homem desconhecido e estranho pôde ter inteiro conhecimento de um contrato criminoso, efetuado em alta noite e sem testemunhas, entre o senhor e Otávio.

— Carlos!...

— Estava pensando em quem poderia ter confiado a esse desconhecido as menores circunstâncias dessa cena criminosa. Quem poderia ter dito que o objeto que Otávio lhe deixou em troca dos que levou, fora escondido no segredo de sua carteira.

— Meu Deus!... meu Deus!... exclamou Félix escondendo o rosto.

— Estava, enfim, pensando que fora o seu próprio amigo quem atraiçoara o seu segredo.

— Sim!... é isso mesmo!... disse Félix erguendo-se e encarando o rosto do menino; é isso mesmo!... e então?..

— Não foi Otávio quem o traiu.

— E, portanto, quem foi?...

— Para o dizer, Sr. Félix, é que me acho aqui a esta hora.

— Bem... bem...

— O Sr. Félix vai ouvir a minha história.

— Carlos! que me importa isso?

— Mais do que pensa.

— E o nome?... o nome do traidor antes de tudo!...

— Mas é preciso ouvir a minha história.

— É longa?...

— Fá-la-ei breve.

— Pois conta-a, disse Félix sentando-se no leito.

— Sr. Félix, perguntou o menino, conhece, sabe quem é o desconhecido que aqui veio esta noite?...

— Diz-se um amigo de Lauro de Mendonça.

— Bem, tornou o menino, depois de pensar um instante; bem, é isso mesmo; agora vou começar a minha história.

Félix esperou um momento, mas, notando que o menino não falava, olhou para ele e disse:

— Anda, fala.

Ora, Carlos era eminentemente sangüíneo, e alguma coisa que o devia fazer corar, obrou sobre ele, de forma que seu rosto se tornou de repente cor de escarlate.

— Há, Sr. Félix, um velho costume de que a sociedade não se emenda, e que, todavia, é uma injustiça... uma infâmia. Quando uma mulher é iludida e ultrajada no que tem de mais nobre, a sociedade não fecha suas portas ao homem que a iludiu e ultrajou; cospe, porém, no rosto da mulher que se deixou perder em um instante de desvario, ou que foi, a pesar seu, brutalmente ultrajada.

— E o que vem isso ao caso, Carlos?...

— Perdoe-me, Sr. Félix, eu começo imediatamente. A algumas léguas de distância da cidade da Bahia, vivia há seis anos um abastado fazendeiro, tão honrado como altivo, e que parecia concentrar todas as suas afeições numa filha que tinha: chamava-se esta Paulina. Bela e virtuosam, Paulina tocava os seus trinta anos ainda solteira, e, tendo já rejeitado grande número de pretendentes, ela passava seus dias ao lado de seu velho pai, e, naturalmente melancólica e acanhada, raras vezes se deixava ver; alguém havia, contudo, que merecia de seu coração a mais extremosa amizade; era um pobre menino de dez anos, que fora na sua casa enjeitado, era eu.

"Travesso, talvez engraçado com as minhas meiguices infantis, era eu a única pessoa que ganhava um sorriso de Paulina. Para todos os mais ela se mostrava a mesma: triste... muito triste; dir-se-ia que no fundo de sua alma existia um agudo espinho, que a feria de contínuo.

"Na opinião de seu pai, no entender de todos, um único remédio podia dar-se para curá-la daquele eterno abatimento, que se parecia bastante com o que se chama desamor do mundo: era fazê-la amar.

"Pois Paulina amou. Um estrangeiro, que para perto veio morar, ganhou o que por tantos havia sido debalde pedido; ganhou seu coração; foi esse um amor, Sr. Félix, ligeiro e ardente como a chama... eu tinha tão pouca idade, que não me lembro de nenhuma de suas circunstâncias; sei, porém, que quase milagrosa deveu ter sido a impressão produzida por esse mancebo em Paulina; e recordo-me bem que muitas vezes ela me abraçava, me beijava, dizendo-me: ‘eu vou casar-me, meu Carlos’! e orvalhava-se o rosto com suas lágrimas.

"E, com efeito, eles iam casar-se; o moço a pedira a seu pai, e, como fosse rico e estrangeiro, a tinha sem dificuldade obtido. O dia do casamento estava marcado; esperava-se um negociante da Bahia, que deveria ser o padrinho; só três dias faltavam para chegar o dia da celebração das núpcias; e Paulina chorava sempre, abraçando-me.

"O negociante que se esperava não pôde vir; mas em seu lugar mandou o seu primeiro caixeiro munido de competente procuração; este primeiro caixeiro, Sr. Félix, chamava-se Lauro.

"Além de Lauro, uma outra personagem tinha também vindo da cidade, que deveria perturbar os prazeres que antecipadamente se gozavam na casa: essa personagem era uma moça. Viera só, sem pai, nem irmão, nem marido, nem criada; e era bela, chamava-se, oh!... lembro-me bem de seu nome, chamava-se Hipólita.

"Hipólita pediu uma conferência particular a Paulina: esteve com ela duas horas, e retirou-se. Paulina apareceu mais pálida do que nunca; todo o seu corpo tremia convulsivamente, e, dirigindo-se a seu pai, disse que não queria mais casar-se.

"Mas o pai era altivo e arrogante, e o noivo miserável e ambicioso; apesar dos gemidos da vítima e das súplicas do Sr. Lauro, Paulina ia sendo arrastada da sala para o oratório, quando na porta apareceu Hipólita.

— Parai! gritou ela.

"Todos pararam; eu estava presente e chorava; mas pude ver no rosto dessa mulher todo o fogo infernal do ciúme em delírio.

— Parai! e ouvi-me!

"Todos se voltaram para ela, à exceção de Paulina que acabava de desmaiar nos braços do Sr. Lauro.

— Esse homem que caminhava para o altar, disse ela, amou-me, prometeu desposar-me e enganou-me: eu quero saber se se consentirá depois do que acabo de expor que ele se case com aquela senhora.

— É uma louca... uma mulher perdida... disse o noivo.

— Lancem fora daqui aquela mulher! gritou o pai de Paulina aos escravos que o acompanhavam.

— Suspendei! exclamou Hipólita; ainda um instante, e eu parto. Senhores, eu sou filha de uma parteira!...

— É louca ou não?... acudiu o noivo.

— Há dez anos passados, continuou a mulher sem se dar com o que acabava de ouvir; há dez anos passados, essa moça, que vai ser levada ao altar, foi passar alguns meses na cidade da Bahia em companhia de uma senhora, parenta sua.

— E o que tem isso?... perguntou o velho pai.

— Poucos dias depois de voltar ela a esta fazenda, um menino, um enjeitado, aqui foi depositado...

— E a que vem semelhante história?... tornou o velho elevando a voz.

— Senhores!... exclamou a mulher, eu já disse que minha mãe era parteira...

— Insolente!... gritaram algumas vozes.

— Eu digo que esse menino é filho daquela senhora!... eu o denuncio!... e agora, senhor, pode casar-se com ela!

E a mulher infernal deixou para sempre a casa a que viera, como o gênio do mal, semear desgraças.

O longo silêncio que se seguiu à cena precedente foi interrompido por um grito de Paulina, que exclamou:

— Eu sou inocente!... eu não sou culpada!...

— O senhor a está ouvindo: que ela jura que é falso, que é calúnia o que disse aquela mulher! falou o velho ao noivo.

— Mas esse menino... balbuciou este.

— O menino de que se trata é aquele, tornou o velho apontando para mim: é um enjeitado...

— Que um dia pode inventar direitos...

— Senhor!...

— Eu o tenho visto sempre tão cercado de cuidados...

— Pois ele irá para longe, disse o velho; já tem idade...

Paulina levantou a cabeça e animou-se a dar dois passos para meu lado.

— Depois do que acaba de passar-se, continuou o velho, é preciso fazê-lo sair... nós faremos...

— Meu pai! um pobre inocente!... murmurou a moça.

O velho franziu os sobrolhos, ouvindo sua filha defender-me; e prosseguiu:

— É ágil, vivo e esperto... será um belo marinheiro...

— Não!... jamais!... exclamou Paulina.

— Paulina!...

A moça atirou-se sobre mim, e abraçou-me apertadamente.

— Tirem dali aquele brejeiro! gritou o velho; tirem-no!... eu lhe darei o competente destino...

Os escravos avançaram para mim, porém Paulina colocou-se diante deles, e, furiosa, bradou:

— Eu o criei!... eu o criei!...

O velho avançou por sua vez... agarrou-me com tanta força, que me fez gritar, e empurrou-me para fora; eu, sem pensar no que fazia, corri para Paulina; mas, sendo por ele de novo seguro, tal arremesso recebi que fui cair sobre uma cadeira, e vi correr uma onda de sangue de minha cabeça.

Ouvi, então, um grito desesperado:

— Meu filho!...

Senti um corpo de mulher cair sobre o meu, e uma maldição de pai cair também sobre minha mãe.

Por ordem dele fomos ambos arrastados para fora de casa; mil vezes minha pobre mãe jurou que tinha sido vítima de um infame; ela não foi ouvida, nem nesse dia, nem no outro, nem em todos os mais que foram passando.

Minha mãe esperou debalde que o único homem, a quem ela tinha amado no mundo, fizesse alguma coisa em seu favor; enganou-se: o miserável, desde que a viu expulsa da casa paterna, não cuidou mais dela, nem para consolá-la; oh! todos fugiam de minha mãe! seus antigos amigos, seus protegidos, aqueles a quem ela havia enchido de benefícios, seus próprios escravos, enfim, zombavam e escarneciam dela!... dias horríveis passamos nós em uma pobre choupana, jejuando ou comendo frutos agrestes!... no entanto, um único homem se lembrava de nós: era o Sr. Lauro. Depois de querer em vão reconciliar meu avô com minha mãe, ele, exasperado contra seu rigor, deixou-o, procurou-nos, e tendo-nos encontrado, levou-nos consigo para a cidade, capital da Bahia.

Ali, de tudo lhe fomos devedores: esta educação que eu tenho; este quase nada que eu sei e que muito me tem servido; o pão que minha mãe comia; os vestidos que ambos vestíamos, tudo era ele que nos dava! oh!... o Sr. Lauro foi a Providência de Deus, que veio em nosso socorro!

Ainda mais, Sr. Félix, e aqui vai o que eu nunca poderei esquecer, mesmo quando de tudo me esqueça. Um mês depois de estarmos na cidade da Bahia, minha mãe foi vítima de seus desgostos; vítima do maior mal que pode cair sobre o homem; vítima da maldição da carne!... eu vi surgirem no seu rosto manchas, ora de uma, ora de outra cor, vi intumescerem-lhe os lábios e as orelhas, vi... oh!... minha pobre mãe ficou lázara!... eu acompanhei, Sr. Félix, eu acompanhei passo a passo os progressos da horrível enfermidade! eu li letra por letra todo esse livro de miséria escrito no semblante de minha mãe! oh! e, então, quando sua voz rouca e terrível parecia espantar aos que a ouviam, quando, fugindo horrorizados de seu aspecto, cem homens demônios cuspiam para um lado, mesmo aos olhos dela; o Sr. Lauro... só ele..., só ele vinha sentar-se junto da mísera... derramar consolações em seu seio, enxugar-lhe as lágrimas com o seu próprio lenço, e chamá-la, como eu a chamava, minha mãe!... oh!... Sr. Félix, isto não se esquece e não se paga nunca, nem com o sacrifício da vida!...

Sentindo que minha mãe sofria muito, vivendo no centro de uma populosa cidade, em estado tão lamentável, o Sr. Lauro facilitou-nos uma pequena e retirada casa na vizinhança da povoação de Itapoã. Foi aí, senhor, que se passou a cena que lhe foi contada, entre minha mãe e Otávio.

Deus talvez a conservava para ser o instrumento pelo qual se chegasse a provar a inocência do Sr. Lauro; porque, poucos dias depois da noite que em nossa casa passara Otávio, minha mãe expirou nos nossos braços.

Poucos instantes, porém, antes de morrer, ela ficou a sós comigo, e disse: "Meu filho! se Lauro te pedir a tua vida, dá-lha; crê que minha alma estará sempre sobre tua cabeça para te amaldiçoar, se fores ingrato... e para te abençoar se até à tua morte te dedicares a ele, como o mais fiel dos escravos!"

Depois o Sr. Lauro entrou, e ela falou assim: "Sr. Lauro, não se mente na hora da morte: mereci os seus benefícios, porque nunca fui culpada; o meu crime esteve no meu sono... sono talvez efeito de um narcótico... não sei... nunca pude compreender... não sei quem seja o pai deste menino; seja-o o senhor." E expirou.

Carlos suspendeu aqui a sua narração para enxugar as lágrimas, que em bagas lhe caíam.

Passando um momento, continuou:

— Foi meses depois da morte de minha mãe, Sr. Félix, que um parente afastado nosso, que finalmente também tinha piedade de nós, apesar de ser tão pobre como éramos, teve de partir por ordem do Sr. Lauro... para descobrir as provas do crime e provar a inocência do jovem repelido.

Pedi licença para vir em companhia dele, e me foi negada; eu queria a todo o custo servir ao Sr. Lauro, e determinei-me: preparei às ocultas os meus despachos, e, quando o navio em que veio este homem, para o senhor desconhecido, deu à vela, eu lhe apareci na tolda sorrindo-me, e disse: "Foi um pequeno ensaio que fiz para provar que posso servir para alguma coisa."

Aqui chegamos, Sr. Félix, e para logo o seu desconhecido cuidou do que convinha fazer: era preciso observar dois homens... ele tinha dinheiro, dinheiro de sobra à sua disposição; um espião velou sobre Otávio; faltava outro para o Sr. Félix; eu me ofereci.

— Tu, Carlos?...

— Eu mesmo, Sr. Félix.

— Espião!...

— É verdade: espião; meu oferecimento foi de novo rejeitado; o seu desconhecido não queria consentir que eu representasse semelhante papel; mostrou-me o quanto era vergonhoso, e eu respondi: "Quero servir ao Sr. Lauro!"

— E ele?...

— Ele disse que não, que não absolutamente; mas eu sentia sobre a minha cabeça a alma de minha mãe, que parecia animar-me; usei de uma nova astúcia; eu sabia que em casa do Sr. Hugo de Mendonça havia uma mulher que amava extremosamente o Sr. Lauro; procurei falar-lhe a sós, consegui-o, contei-lhe a minha história, disse-lhe o que queria, e no dia seguinte fui recebido como caixeiro na casa do Sr. Hugo de Mendonça, e tratado com a predileção que merecia um sobrinho da mãe Lúcia.

— E portanto...

— E, portanto, o desconhecido não teve mais que opor-se; eu tinha feito tudo por minhas mãos: deram-me um quarto que fica sobre este... pode ver... levante a cabeça... ali está o meu posto de todas as noites... perdi muitas inutilmente; mas, enfim, eu soube, eu vi tudo!...

— E me traíste!...

— Sim, Sr. Félix, para servir ao Sr. Lauro, que tinha sido o anjo da guarda de minha mãe!...

Félix soltou um suspiro:

— Tiveste razão, Carlos!... ao menos tu és grato.

— Oh! mas agora, Sr. Félix, agora eu preciso alguma coisa do senhor; não desci, não vim aqui, não falo há tanto tempo sem um fim!

— E o que queres então?...

— É que eu me lembro que lhe fiz mal, que lhe ofendi, e preciso que me perdoe!...

— Carlos, tu és bom; eu te perdôo.

O menino caiu, chorando nos braços do moço.

Havia em tudo isto uma coisa pouco natural: era a frieza com que Félix ouvira a confissão de Carlos; mas a consciência daquele, acusando-o de seu crime, tinha podido justificar a falta do menino.

Além disso, no meio da relação de Carlos, tinha por acaso vindo uma idéia à mente de Félix, que lhe sorria, que tinha um não sei quê de lisonjeira para seu coração; foi por tal que ele não sentiu forte abalo, ouvindo a acusação que a si próprio acabava de fazer o jovem caixeiro; foi por tal, enfim, que ele o desviou de seus braços, e disse:

— Está bem, Carlos, vai-te; eu preciso sair; há um negócio muito grave que devo concluir esta noite.