Saltar para o conteúdo

Os Filhos do Padre Anselmo/IV

Wikisource, a biblioteca livre

O procurador Belchior está no seu escriptorio, sentado á carteira, conversando animadamente com um rapaz alto, pallido, elegantemente vestido, de maneiras distinctas, e bastante desenvoltas, que frequentemente o interrompe com uma gargalhada de intima satisfação. No rosto d'este rapaz, que poderá contar, quando muito, vinte e quatro ou vinte e cinco annos, ha os traços indeleveis do bohemio que passa a mocidade entregue a toda a sorte de vicios e prazeres e para quem a vida tem apenas uma difficuldade séria: arranjar dinheiro para gastar.

Os olhos pretos, vivissimos e o sorriso zombeteiro que lhe baila constantemente nos labios, meio disfarçado pelo bigode fino, lustroso e petulantemente encaracolado nas guias, dão-lhe á physionomia uma expressão velhaca que poria de sobreaviso um observador experimentado, mas que ao sr. Belchior não parece inspirar a minima desconfiança.

Este rapaz é Eugenio de Mello, o pretendente á mão de Beatriz.

Ouçamos a conversa travada entre os dois, a vêr se por ella podemos conhecer melhor o personagem com quem vamos travar conhecimento.

— O velhote está enthusiasmado — diz o procurador — e o meu amigo apanha, além de uma linda mulher, uma bôa maquia — uma maquia de se lhe tirar o chapéo!

— Pois é o que se quer — responde o outro — o que se quer é massa. Quanto calcula você, amigo Belchior, que viremos a apanhar?

— Homem, já lhe disse, ao certo não sei, porque o Custodio é manhoso... Depois que foi roubado por um padre, não descobre a sua vida a ninguem. Mas, pelos documentos que me teem passado pela mão, aquella besta deve ter para mais de setenta contos.

— Menos mau! — considerou o bohemio, piscando o olho. — Mas isso está ainda tudo nas unhas do velho, que póde ter a má lembrança de não morrer estes dez annnos mais chegados...

— E os vinte contos que couberam á rapariga, no inventario por morte da mãe? — accudiu o procurador. — Esses é que lhe passam já para as unhas assim que o casamento se fizer...

— Vinte contos... que diabo! — tirando-lhe as commissões, o que é que me fica? — considerou o outro, encolhendo os hombros com desprezo.

— Sim, que você agora tem mais! — contraveio o procurador sarcasticamente. — Que diabo! vocês são todos assim! Quanto mais teem mais querem!

— Não é isso, amigo Belchior. É que eu penso e vejo as coisas como ellas são... Afinal de contas, este negocio vem a ser bom mas é para você...

— É bom para ambos! Ou você queria que eu trabalhasse de graça para lhe encher os bolsos de dinheiro e ficasse a fazer cruzes na bocca?

— Não, não queria... Mas vamos a saber: a pequena tem vinte contos?...

— Para já. Mas a bolada maior ha-de-vir por morte do velho.

— Não esperemos por sapatos de defuncto, e façamos calculos positivos. Por agora e para já, realisado o casamento, podemos contar com vinte contos, não é isso?

— Perfeitamente.

— Você quanto leva de commissão?

— Trinta por cento, por sermos amigos.

— Obrigado! — respondeu o bohemio zombeteiramente — trinta por cento sobre vinte contos, são seis contos de réis...

— Muito justos.

— E venho eu a ficar só com quatorze!...

— E acha pouco? Para quem não tem presentemente quatorze vintens, parece-me que quatorze contos de mão beijada e uma mulher bôa, é dinheiro...

— Não ha duvida, é dinheiro... Mas tome você conta da mulher, dos encargos de a sustentar, de a vestir, de lhe dar criadas, de a aturar e de pagar aos meus crédores antigos, tudo por quatorze contos, e dê-me para mim os seis que você recebe limpinhos e sêccos... Quer?

O procurador fez uma carêta.

— Você está a fazer-se de manto de sêda! — disse elle descontente. — Se acha que é mau o partido, não o acceite, que não faltará quem lhe pegue.

— O partido não é mau, mas não é tão bom como você me quer fazer acreditar...

— Com os diabos! — gritou o procurador arreliado. — E os setenta contos do velho não é nada? Você acho que cuida que eu nasci hontem! Eu mettia-me lá n'este negocio por seis contos de réis, se não fosse a certeza de vir a apanhar mais, logo que o velho estique o pernil? Não que o meu tempo é dinheiro e eu não ando a trabalhar para o bispo!

— Bem sei — tornou o Mello — mas eu é que tambem não estou para perder a minha liberdade e ficar toda a vida com o trambolho da mulher preso á perna, a troco de quatorze contos que os crédores me hão-de vir buscar, logo que saibam que tenho por onde pague...

— Mas você póde arranjar uma coisa.

— O que é?

— Faça uma concordata com elles antes de casar...

— Mas eu não sou commerciante, não posso lançar mão desses meios que são privilegio do commercio honrado... — considerou epigrammaticamente o estroina.

— Agora não póde! Cace-lhes você o recibo em como estão pagos, e veremos depois se elles lhe pedem alguma coisa.

O Mello pareceu meditar.

— Effectivamente, você tem razão... Se áquelles a quem devo seis pagasse com dois, a coisa ainda não iria muito longe...

— Menos a mim! — protestou o procurador — a mim é que você me ha-de pagar tudo por inteiro.

— Isso, comnosco, é outra coisa... Mas vamos a saber: como é que eu hei-de propôr esse negocio aos meus crédores, se não tenho dinheiro para liquidar de prompto antes de casar?.

— Não lhe dê cuidado. Traga-me a lista dos crédores, que eu cá arranjarei isso da melhor maneira...

— Abona você o dinheiro?

— Certamente. Você acceita-me letras na importancia do que eu pagar e depois nós cá nos entenderemos.

— Pois bem, arranje lá isso.

— Ora agora — tornou o procurador — temos ainda uma questão a decidir...

— Diga lá.

— O velho está persuadido de que você é um homem riquissimo... Metti-lhe essa caraminhola em cabeça, porque, de outra forma, elle não lhe dava a filha...

— Bom! Que duvida ha? Dir-lhe-hei que sou rico...

— A questão não é dizer-lh'o, a questão é provar-lh'o. Você não me disse que ha um Eugenio de Mello no Alemtejo, possuidor de uma riqueza immensa?

— Disse e ha.

— Bom. Pois então é pedir ao escrivão de fazenda respectivo uma certidão das decimas e contribuições pagas por esse sujeito ao estado...

— Para que?

— Para que! É boa! Para podermos provar ao Custodio que você é um importante proprietario do Alemtejo e que póde dar-lhe a filha, porque não hão de faltar-lhe porcos nem cortiças para os netos.

O bohemio soltou uma gargalhada.

— Você é o diabo, Belchior! — disse elle.

— E se for preciso provar que você tem quarenta ou cincoenta contos de reis representados em letras, tambem se arranjam com acceites valiosos e de muito credito...

— Como?

— Tenho constituintes ricos que lhe acceitarão letras na importancia que se quizer, acceitando-lhes você outras de igual importancia. Comprehende?

— Não comprehendo muito bem...

— Expliquemos: eu acceito-lhe a você letras no valor de oitenta contos e você, na mesma data, acceita-me letras d'igual importância. Você quer provar que possue oitenta contos e mostra essas letras acceites por mim... Mas ellas realmente não valem nada, porque se você vier recebel-as, eu apresento os seus acceites, que você tem igualmente de me pagar, e portanto estamos quites... Percebe agora?

— Agora, percebo!

— Bem. Pois este é também um expediente de que podemos lançar mão quando nos fôr preciso. Mas obra mais limpa é certamente essa da confusão dos nomes, que nos permitte fazer a prova com um documento official... Em que terra do Alemtejo existe esse tal Eugenio de Mello?

— Em Borba.

— Está muito bem! E então eu que conheço o escrivão de fazenda que lá está agora. Vou já escrever-lhe, e na volta do correio temos cá a certidão.

— Olhe lá, não será conveniente eu amiudar as minhas visitas ao Custodio?

— Já lhe fallei n'isso a elle. Mas elle diz que por ora não... que o deixemos primeiro resolver a filha a acceitar o casamento, e depois fallaremos...

— E essa delambidita porque é que me hade recusar Eu não valerei mais do que o franganito que lhe anda a arrastar a aza? — disse o bohemio.

— Mulheres, meu amigo! As mulheres são caprichosas...

— E escolhem sempre o peor...

— É a unica probabilidade que você tem a seu favor! — exclamou o procurador rindo — Porque peor do que você, com franqueza, não conheço!

— Obrigado, amigo Belchior! Você é muito modesto!

Os dois patifes encararam-se e desataram a rir.

— Ora agora — disse por fim o Mello — não se esqueça de que estou a precisar de dinheiro.

— Já?

— Pudera! Este Porto é o diabo! Com os seus ares pacatos de terriola de provincia, tem sorvedouros terriveis!

— Mas ainda não ha oito dias que lhe dei duzentos mil reis.

— E o que vem a ser isso para um homem relacionado como eu? Duzentos mil réis gastam-se n'uma ceia com tres amigos e outras tantas mulheres...

— Mas você, que diabo! está hospedado no Francfort, um hotel de primeira, onde o tratamento é magnifico, não tem necessidade de comer fóra...

— Amigo Belchior, você sabe muito bem como o dinheiro se arranja, mas não sabe como elle se gasta. Não falle, portanto, d'aquillo que não sabe, e chegue-me cá mais duzentos mil reis, que é o essencial.

— Assim, por esse andar, quando chegar o dia do casamento, já os haveres da noiva estão espatifados...

— Não diz você que temos ainda a reserva dos setenta contos do velho?

— Sim, mas isso, como você considerou ha pouco, são sapatos de defuncto...

— Homem, haja os sapatos, que o defuncto arranja-se quando nos convier...

— Você seria capaz d'isso? — interrogou o procurador com um sorriso indescriptivel de cynismo.

— Nós somos capazes de muito mais — respondeu o Mello, frisando intencionalmente a palavra nós.

— Você é o diabo! Mas olhe lá, não se alargue muito, que eu agora estou sem dinheiro...

— Pois sem massas não se faz nada! Você bem sabe, que sendo eu um rico proprietario do Alemtejo, que faço quinze contos de cortiça de tres em tres annos, afóra os porcos, não devo deixar de gastar em harmonia com os meus rendimentos. As mulheres, aqui no Porto, não são de grande luxo, mas comem como freiras e aquelle Palacio de Crystal e aquelle Suisso teem uma lista reduzida, mas cortante como uma navalha de barba! Além d'isso, ha sempre uns amigos depennados, que se encostam e que não ficam baratos...

— Mande-os trabalhar! Sucia de vadios! — aconselhou o Belchior, indignado.

— Bem digo eu! Você não sabe o que diz! Estes amigos são os comparsas da grande comedia que eu preciso de representar. São elles os que fingem de povo e apregoam aos quatro ventos, pelas tubas da fama e das notas de cinco mil réis que lhes empresto, a minha grandeza e opulencia de rico proprietario. Que eu lhes negue o regabofe de uma ceia e a pastilha que me pedem emprestada no fim, porque a carteira lhes esqueceu em casa, e ámanhã eu serei o pelintra, o intrujão que realmente sou, e toda a gente saberá, até o Custodio, que eu não tenho nem cortiça, nem porcos, nem sequer bolota para comer como elles...

— Você tem razão! — disse o procurador — Mas, com os diabos, gaste menos.

— Que gaste menos! Eu tenho até gasto mais, e decerto não chegaria o que você me dá, se não tivesse tido umas noites de sorte á batota. Meu amigo, todo o negocio requer capital para poder dar lucros... Este negocio do casamento é bom, mas é preciso empatar capital... Eu sou o socio d'industria; você é o socio capitalista: chegue-me cá as massas, porque eu preciso de mostrar quem sou.

— Deus nos livre! se mostra quem é, está o caldo entornado! — clamou o procurador, levando as mãos á cabeça n'um gesto tragico.

O Mello riu com vontade.

— Você nasceu para mim, e eu nasci para você! — disse elle. — Difficilmente se encontram e se juntam dois como nós. Ande, vá buscar o dinheiro.

O procurador levantou-se, foi ao cofre de ferro, ao canto do escriptorio, contou duzentos mil réis em notas, e voltou com ellas e com um livro na mão.

— Ande! ponha aqui por sua mão que recebeu este dinheiro — disse.

— Quanto?

— Eu dou-lhe duzentos mil réis. Não foi isso o que você pediu?

— Mas aqui no livro estão duzentos e cincoenta!

— É isso. Os cincoenta mil réis são de juros.

— Ladrão! Roubar ao inferno! — clamou o Mello em tom de amigavel censura.

— E o risco? Você não tem onde cahir morto. Se este casamento se não fizer, ou se a você o levar o diabo d'hoje para ámanhã, quem perde sou eu!

— Não leva, que eu sou cá preciso para animar as artes e as industrias! — retorquiu risonho e senhor de si o bohemio.

— O que me anima é que o gado ruim não tem perigo — disse Belchior gracejando.

O Mello assignou no livro a quantia indicada pelo procurador, metteu o dinheiro ao bolso e preparou-se para sahir.

— Você ande-me com o velho! — disse elle. — Não o deixe resfolegar, e elle que obrigue a filha por geito ou por força a casar comigo.

— Coitada da creatura! Ha-de ser feliz com um tal marido!

— Eu lhe digo... póde ser que me apaixone por ella... Ás vezes o diabo, quando lhe parece, faz das suas...

— Quem! Você apaixonar-se? Se ella fosse uma dama de copas... talvez!

— Eu supponho-a uma dama d'oiros... Já vê que a differença do naipe não é tamanha como parece...

Dizendo isto, o Mello saiu trauteando uma modinha, emquanto o Belchior, rindo, arrumava o livro das suas contas com o bohemio.

— Isto é que é um mariola! — murmurava o procurador satisfeito. — Não ha dinheiro que lhe chegue... O jogo e as mulheres levam-lhe tudo... Ha-de acabar mal este patife!