Os Filhos do Padre Anselmo/XI

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Jorge tinha o habito de ir todos os dias ao Suisso tomar café, depois de jantar.

Alli passava uma hora em palestra amena com os amigos, se os encontrava, ou a lêr os jornaes estrangeiros que o criado lhe punha diante — para matar tempo.

N'estas rapidas leituras encontrava coisas que pareciam interessantes, porque ás vezes puxava do seu livro de lembranças e tomava notas a lapis nas folhas em branco.

Foi n'uma occasião d'estas que sentiu bateram-lhe amigavelmente no hombro e ao mesmo tempo uma voz dizer-lhe:

— Estás a copiar alguma receita para te lembrares dos amigos?

Jorge levantou a cabeça e encarou o recem-chegado.

— És tu, João! — exclamou levantando-se com impeto e estendendo os braços para elle. — Como estava longe de te ver agora aqui!

Os dois abraçaram-se effusivamente e sentaram-se em seguida.

— Ora o meu João Lazaro! — tornou Jorge com alegria — Com que, voltaste ao Porto!

— É verdade! — disse o outro recostando-se na cadeira com importancia e tomando uma attitude de principe que regressa do exilio — O bom filho á casa torna...

— E o bonito é que encontras a casa como a deixaste...

— Infelizmente. Isso, porém, não me admira nem espanta. Não era de esperar outra cousa desde que eu faltava cá para a reformar.

— Quando chegaste?

— Hoje de manhã.

— Que tempo te demoras?

— Não sei. Venho conferenciar com uns amigos sobre assumpto importante, e não posso calcular o tempo que isso me levará...

— Não tencionas fixar residencia no Porto?

— Não. Isto é pequeno demais para mim...

— Bravo, seu João! Você está crescido! — disse Jorge galhofeiramente.

— Pois tu comprehendes um vulto politico de certa importancia a viver no Porto? Já Lisboa é uma deprimente miseria, meu caro! Mas, emfim, como não ha outra terra maior, não ha remedio senão resignarmo-nos com ella...

Lançou em volta de si um olhar superior, de desdem, mordeu a ponta do charuto caro, com affectação, e exclamou:

— Que mal servido está este café! Não ha aqui um criado que venha receber as ordens?...

Jorge bateu as palmas, chamando o criado.

— O que tomas? — perguntou ao amigo.

— Vou tomar cerveja.

— Cerveja a este senhor — disse Jorge ao criado que se aproximara.

Este relanceou um olhar curioso para o freguez que dava pelo nome de João Lazaro, e perguntou:

— Ingleza?

— Ingleza, sim! — respondeu o João Lazaro.

E voltando-se para Jorge, emquanto o criado se afastava a cumprir a ordem:

— Unica coisa em que transijo com esses bebedos inglezes!

— Pagas-lhes assim a affeição que manifestam pelo nosso vinho...

— Pelo nosso vinho e pela nossa Africa! — disse o João Lazaro com olhar torvo.

— Pela nossa! Pois o Brazil tambem tem Africa? — interrogou motejador o amigo de Paulo — Porque tu, meu caro Lazaro, se bem me recordo, és brazileiro...

— Mas portuguez pelo coração! — respondeu o outro com emphase.

E accrescentou:

— Ah! se não fosse o coração, cuidas tu que eu teria posto a minha mocidade, a minha energia, o meu talento, ao serviço de um paiz tão pequeno como este?...

— Effectivamente, meu rapaz, tu és grande de mais para uma terra tão pequena como esta... E ella assim o comprehendeu expulsando-te do seu seio por duas vezes... Porque não vaes tu servir o Brazil, que é a tua patria, com a grande vantagem de encontrares lá já realisado o teu ideal politico?

— Já te disse: sou portuguez pelo coração...

— E ninguem é propheta na sua terra. Ah! velhaco! sabe-te melhor o pão negro das terras brancas, do que a farinha branca das terras negras...

A conversação foi interrompida n'este ponto pela aproximação de Eugenio de Mello que, tendo avistado João Lazaro, dirigiu-se a elle familiarmente:

— Ó João — preveniu o bohemio — não te compromettas para amanhã á noite, porque temos ceia de rapazes em tua honra...

— Oh, diabo! — replicou o Lazaro, sempre com ares de grande senhor — Para amanhã não será possivel, porque tenho negocios importantes a resolver e não sei se de dia ficarão concluidos...

— Não sei; arranja-te como puderes, porque a rapaziada resolveu isto e é uma semsaboria se tu não appareces... Demais a mais, o elemento feminino, o elemento galante, faz-se representar, e tu não pódes deixar de ser gentil para com as damas.

— Está bem: irei.

E voltando-so para Jorge:

— Não se conhecem?

— Não tenho essa honra — disse Jorge.

João Lazaro então apresentou:

— O meu amigo Eugenio do Mello...

E para este:

— O meu amigo Jorge de Gusmão.

Os dois cortejaram-se.

— Estimo conhecer v. ex.ª — disse um.

— Igualmente — disse o outro.

E apertaram-se as mãos.

— Como se trata de uma festa intima, de amigos pessoaes do João — disse Eugenio de Mello, dirigindo-se a Jorge — V. ex.ª, que é tambem amigo d'elle, dar-nos-ha muito prazer, comparecendo. É no Palacio, ás 10 da noite.

— Agradeço, mas é-me absolutamente impossivel, o que muito sinto, associar-me a essa homenagem de estima ao nosso amigo, porque amanhã de tarde devo partir para Braga, aonde me chamam negocios urgentes e inaddiaveis — respondeu Jorge.

— Creia v. ex.ª — tornou Eugenio amavelmente — que teria immenso prazer em o vêr lá...

Jorge agradeceu com uma inclinação de cabeça.

O bohemio, que não se sentara á mesa, despediu-se, dizendo ao Lazaro:

— Vê lá! Se não nos virmos antes, ás 10, lá te esperamos. Fui encarregado de te dirigir o convite e agora não queiras collocar-me mal perante a rapaziada.

Quando Eugenio se afastou, Jorge que, pelo nome, reconhecera n'elle o rival de Paulo, perguntou:

— Quem é este rapaz?

O outro sorriu desdenhosamente.

— Um aventureiro! — respondeu.

— A classificação é pouco lisonjeira para ti e menos ainda para elle...

— De accordo. Mas é verdadeira. De resto, sabes que um homem politico tem por vezes a dolorosa e imprescindivel necessidade de se relacionar com a gente da mais baixa especie.

— Mas este rapaz é...?

— É um typo como ha muitos. Apresenta-se bem encadernado, insinua-se na confiança da gente fina e é util para muita coisa que nós outros não podemos fazer.

— E vive d'isso?

— Vive de tudo. A sua existencia é uma série de expedientes engenhosos.

— Suppunha-o rico. Tenho-o visto frequentando a melhor roda de rapazes e passa entre elles por ser possuidor de grande fortuna...

— Essa é a sua grande habilidade. Explora o jogo e o amor com tanta arte que, em vez de explorador, parece elle o explorado. Agora, por exemplo, gasta sommas enormes que lhe dão uma apparencia de rapaz rico, á custa de uma loura, que é a sanguesuga deliciosa do commendador Garcia... Conheces?

— Conheço o commendador Garcia perfeitamente.

— E a loura?

— Poderei tel-a visto, mas não estou certo.

— Não sabes nada! — volveu o João Lazaro desdenhoso.

— Mas como é que tu, chegando hontem ao Porto, já pudeste saber tudo isso?

— Disse-m'o elle, porque o conheço de Lisboa, e comigo não tem reservas. Conta-me tudo.

— Então, devia contar-te tambem que tem o casamento ajustado com uma rica herdeira...

— Elle!?

— Elle, sim!

— Oh, diabo! Não me disse nada a esse respeito. Fallas sério?

— Absolutamente sério. E o mais interessante é que o pae da noiva suppõe-n'o um rapaz riquissimo...

— É boa! E não me disse nada! Que grande patife!

— Pois é verdade.

— Tens bem a certeza?

— Conheço a noiva...

— Ella quem é?

— É filha de um capitalista, chamado Custodio de Jesus...

— Não conheço.

— Anda n'isso mettido um procurador chamado Belchior... Esse deves conhecer...

— De nome apenas... Tenho d'esse homem as peores referencias, já do tempo em que vivi no Porto.

— Pois mantem ainda hoje a boa reputação que já gosava no tempo em que ouviste fallar d'elle. O que ou não sabia era que especie de relações podiam ligar o procurador Belchior a este rapaz. Mas, visto dizeres-me que elle é um cavalheiro d'industria, está explicado o caso. Os dois combinaram-se para roubar o capitalista, apanhando-lhe a filha...

— É bonita essa pequena?

— Creio que sim.

— Crês?

— Nunca a vi, e por isso não a conheço pessoalmente. Mas tenho d'ella informações que a dão como uma belleza indiscutivel.

— É pena, porque, se é formosa, merece outro marido que não um escroc... Mas que imbecil progenitor é esse, e demais a mais capitalista, que entrega assim a filha a um typo como é o Eugenio de Mello?

— Não sei. Naturalmente suppõe-n'o rico, como toda a gente.

— Pois, meu amigo, se te interessas por essa pequena, avisa o pae da cilada em que o querem fazer cahir.

— Eu! — replicou Jorge — Não tenho nada com isso... Deixemos lá o rapaz. Póde ser que a fortuna o regenere.

— A quem? Àquelle? É impossivel! Jogador, bebedo, extravagante, só está bem quando gasta ouro ás mãos cheias. Em Lisboa explorava o amôr de varias Messallinas da alta roda... Aqui, no Porto, segue o mesmo caminho, e com bastante felicidade pelo que vejo, pois que o encontro levando vida do principe e bellamente relacionado...

— E melhor estará d'aqui por alguns dias, porque o casamento, segundo se diz, está para breve...

— Os jornaes já deram noticia?

— Não. Este negocio trata-se no maior segredo. E é natural, porque elle não deve desejar que a formosa lourinha o saiba e lhe transtorne os planos...

— É curioso! — tornou o João Lazaro — Como as mulheres são estupidas nos seus amôres! Essa loura a que te referes teve a audacia de me resistir. Assediei-a durante muitos mezes, nos primeiros tempos da sua ligação com o commendador Garcia. Eu era incapaz de a explorar pecuniariamente... Contentava-me em que não me fizesse exigencias de dinheiro, porque para isso lá estava o outro. Escrevi-lhe cartas apaixonadas no meu estylo... tu sabes! todo litterario, que até era mal empregado n'aquella couçoeira de fórmas divinas, incapaz de me comprehender... Pois, meu caro, entrincheirou-se na sua fidelidade ao commendador e não houve de quê! Por fim, apparece este idiota, sem instrucção, sem elegancia, sem espirito, sem nada que o recommende, e conquista-a!

— É sempre assim, meu amigo. As mulheres teem uma tendencia especial para escolherem o peor.

— Não são só as mulheres. Toda a humanidade é assim. Segues uma estrada que se bifurca em dois caminhos, um dos quaes te conduz e outro te afasta do sitio a que te diriges. Escolhes ao acaso. Pois tem a certeza de que o que escolheste é sempre o peor. Mas o que me irrita é a fortuna estupida d'esse imbecil. Não vale a pena um homem ter talento, ser distincto, ser finamente superior a essas vulgaridades ignobeis que para ahi enxameiam, porque as mulheres, meu caro, hão-do ser sempre pela materia contra o espirito!

O João Lazaro atirou fóra o charuto com affectado desdem e levou o copo da cerveja aos labios com a solemnidade de quem estivesse dando exemplos de suprema elegancia n'um salão aristocratico.

Jorge Gusmão disfarçou um sorriso de motejo e disse:

— Quem te ouvir ha de julgar que tens sido infeliz com as damas...

— Não; não tenho sido. Muito pelo contrario, tenho sido alvo do carinhoso interesse de mulheres finas, elegantes, da primeira roda. Mas essas, impede-me a minha posição politica de lhes corresponder, porque se tal fizesse, as mediocridades do meu partido tratariam logo de lançar sobre mim a suspeição, accusando-me de me deixar subornar pela aristocracia.

— Sacrificas o amor á politica...

— Ao meu ideal sacrifico tudo!... E só assim, crê, é que um homem póde affirmar-se capaz de salvar um paiz á beira do abysmo...

— Mas, ó João, tu seriamente pensas em salvar os outros ou em te salvar a ti? Porque afinal, sejamos francos, tu que diabo tens sacrificado ou o que é que pódes sacrificar ainda? Tu és pobre, tu nunca possuiste dez reis, tu não passavas de um anonymo perdido na massa dos anonymos, dos obscuros, dos humildes. Chegou uma occasião em que julgaste poder especular com o sentimento patriotico do paiz e especulaste, sem criterio, sem fé, sem consciencia, armando á popularidade, muito disposto a sacrificar os que te escutavam ao teu interesse pessoal... Erraste no calculo, porque, na hora em que julgavas ter triumphado, cahiste. Depois, por coherencia com os teus planos de ambição, e tambem porque te era impossivel retrogradar, visto que não tinhas adquirido valôr que te desse direito a uma cotação rasoavel no campo adverso, seguiste ávante, simulando convicção onde só havia má fé.

— Não é tanto assim, meu caro — protestou o João Lazaro frouxamente.

— Que diabo! sabes que te conheço e porisso de nada te vale o fingimento para comigo... Tu és um especulador politico, como o teu amigo Eugenio de Mello é um especulador amorôso... Vives dos kalenderes do ideal como elle vive das infelizes sonhadoras do amôr. As tuas fontes de receita são tão occultas e tão inconfessaveis como as d'elle.

— Jorge, tu has-de ser sempre brutal com os amigos!

— Sincero, sincero e leal é que eu sou. Não admitto que os amigos, porque o são, vão julgando que me illudem e que não os conheço cabalmente.

— Eu não quiz nem quero illudir-te... Confio demasiado na tua amizade para não ser sincero comtigo. Mas que demonio queres tu que eu faça n'estas circumstancias? Eu bem sei que foi um mau passo o que dei misturando-me com esta canalha... Mas agora que remedio tenho senão proseguir no caminho mau em que me lancei?

— Tambem não é tão mau como dizes. Que poderias tu esperar dentro das velhas normas? A manga d'alpaca e desoito a vinte mil reis por mez com papel dos officios para as intermittencias jornalisticas. Mais nada, porque as repartições estão atulhadas de ociosos e mais um importa já um verdadeiro attentado orçamental. Assim, dás-te ares de martyr, de principe desthronado, diante dos papalvos que vêem uma aureola de gloria a circumdar-te a fronte, e pedes-lhes dinheiro emprestado para poderes sustentar o prestigio da causa...

— Oh! mas estão já desmoralisados... São uns verdadeiros biltres! Imagina tu que, para vir ao Porto onde preciso de me mostrar, porque quem não apparece esquece, foram-me precisos seis idiotas dos mais fanaticos para, espremidos e quotisados, poderem dar-me duzentos mil reis!

— Pois sim, meu bom Lazaro... Concordo que nem tudo sejam rosas no teu caminho. Mas tu em certo modo tens tido a culpa.

— Eu?

— De certo. Tens habitos de grandeza, jantas como um principe, o que não custa a fazer quando se tem ás ordens a bolsa dos parvos. Mas os parvos tambem ás vezes ganham juizo...

— Que queres tu que eu faça? Nas circumstancias em que me encontro, se deixo de honrar a minha posição, apresentando-me em harmonia com o meu nome, sou um homem perdido, sou um homem morto pelo ridiculo!...

— E o que vens tu fazer ao Porto?

— Venho arranjar dinheiro...

— Para quem?

— Para mim.

— E suppões que t'o dêem?

— Ainda aqui ha gente de muito bôa fé...

— Mas da outra vez não deixaste a vinha vindimada?

— Isso já esqueceu. Agora o processo é outro...

— Bem; anda lá!

João Lazaro levantou-se.

— E tu, sempre o mesmo?

— O mesmo sempre.

— És um homem singular!

— Divirto-me com isto... Gosto de observar a humanidade, que é realmente o livro mais curioso e mais difficil de lêr.

— Um homem com o teu espirito, com a tua intelligencia e com a tua fortuna podia ir longe, se quizesse, n'este paiz onde só os audaciosos vencem.

— Não sou ambicioso e confio muito pouco nos homens. Conheço-os tão bem!

João Lazaro consultou o relogio.

— Ainda posso tornar a vêr-te antes de partir?

— Pódes. Sabes a minha casa. Encontras-me lá todos os dias até á uma hora da tarde.

— Irei dizer-te adeus.

— Pois sim.

Apertaram-se as mãos e despediram-se.

João Lazaro sahiu com ar altivo e magestoso, relanceando um olhar de despreso pelos frequentadores abancados ás mesas.

Já na rua, ia murmurando:

— Ora o patife do Eugenio de Mello, que vae abotoar-se com a filha de um capitalista!

Os labios grossos, de mulato, vincaram-se-lhe n'um sorriso mau. É que ao cerebro accudira-lhe um pensamento terrivel.

— Bôa occasiao de lhe empalmar a loura e de me vingar d'elle pelo cuidado com que occultou de mim o seu projecto de casamento! — rosnou por entre dentes — Decididamente, eu sou um homem de genio e não devo consentir que este idiota me passe adiante e se me avantage em amôr, em fortuna e em posição social.

João Lazaro, vaidoso, vingativo e perverso, raça de preto e branco, minado de inveja, roido d'ambições, irritava-se e agitava-o um rancor profundo quando algum dos seus amigos ou companheiros de mocidade, por esforço proprio, por acaso, ou por capricho da fortuna, melhorava de posição e subia mais um furo na escala das considerações sociaes.

A perspectiva de vêr Eugenio de Mello casado com a filha de um capitalista, pompeando grandezas e vivendo a vida feliz que o dinheiro dá, acendera-lhe um inferno de invejas na alma parda como um ceu de maio, prenhe de trovões, e como a propria parda brazileira de quem era filho e cujas feições retratava na côr bronzeada, nos labios grossos, nos dentes brancos, no nariz de ventas largas e acachapadas e no cabello, onde havia ainda uns longes de carapinha.

De resto, alto, entroncado, de andar desenvolto e um tanto gingado, de preto capoeira, tinha o quer que era de elegante e distincto, e chegaria mesmo a ser attrahente e sympathico, se não fôra a pretensão ridicula que se lhe trahia nos gestos e attitudes de grande senhor.

Tal era physica e moralmente João Lazaro, que o leitor terá occasião de apreciar melhor em capitulos subsequentes.

Por agora, deixemol-o ruminar o seu infame plano de anniquilar o amigo que o convidava para uma ceia em sua honra, e vamos nós travar relações com outros personagens importantes d'esta complicada mas veridica historia.