Os Filhos do Padre Anselmo/XIV

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João Lazaro recolheu ao hotel e no dia seguinte batia á porta de Jorge. Era uma casa modesta, de homem só, em que se notava o natural desarranjo de quem não tem os cuidados intelligentes de uma mulher a dirigir o serviço domestico.

— Venho fazer-te a promettida visita — disse João Lazaro ao amigo que estava já sentado á banca no seu gabinete de trabalho.

— Bem vindo sejas, meu caro! — volveu-lhe Jorge, interrompendo a escripta e indicando-lhe uma cadeira.

— Sempre a trabalhar! — disse João Lazaro com um sorriso de curiosidade. — Em que diabo te occupas agora?

— Tomo apontamentos para um bosquejo historico... Bem vês, a historia é a minha paixão...

— Bonito entretenimento para quem não tem que fazer...

— Que queres? Em alguma coisa se hade matar o tempo...

— Olha lá, porque não collaboras tu no jornal que eu dirijo em Lisboa?

— Eu!

— Sim, que duvida? O teu auxilio podia ser-me de immensissima utilidade. Ha tão pouco quem escreva bem, e tu estás ahi a desperdiçar talento n'um trabalho obscuro que ninguem lerá, que a ninguem importa, quando podias brilhar entre os primeiros, tornares-te lido, popular... Queres?

— Eu não! Detesto os jornaes politicos, bem o sabes, e principalmente os da tua côr.

— Mas, homem, eu não te peço a collaboração politica, posto que ella me fosse extremamente agradavel e vantajosa... Mas, ao menos, a collaboração litteraria. A litteratura pertence a todos os campos e não impõe solidariedade de principios, nem sequer afinidade de ideias politicas. O meu jornal está a precisar de sangue novo... Eu esforço-me por fazer d'elle um jornal moderno, mas sou só e todo o meu esforço se perde por não ter uma penna vigorosa, uma penna brilhante que me secunde. Além d'isso, o publico não está educado, o publico não comprehende o que é bom nem o que é mau, e d'ahi resulta preferir o mau a que está habituado, deixando no olvido e na indifferença o que é bom!

— Por esse lado, tenho eu a certesa de que não me havia de escassear publico... — disse Jorge rindo. — Mas não, meu caro, eu não estou resolvido a collaborar em jornaes...

— Fazes mal! O jornal é ainda hoje uma arma formidavel, a unica que a sociedade respeita, porque é a unica que a faz tremer.

— Mas eu não pretendo amedrontar ninguem — tornou Jorge impassivel. — Não tenho ambições, não alimento a vaidade de querer tornar-me celebre por nenhum titulo, e portanto prefiro o socego, a tranquillidade do meu gabinete e a suave alegria de um estudo que me não cança á lucta violenta do jornalismo diario, famulento Minotauro, que consome vida, actividade, talento que a todos aproveita, menos a quem lh'o sacrifica. Deixemos isso, meu João, e dize-me: sempre partes hoje para Lisboa?

— Não. Demoro-me ainda por cá uns dias, não sei quantos...

— Bem! Folgo com a tua permanencia entre nós... É signal de que tiveste bom acolhimento por parte dos teus amigos...

João Lazaro fez uma carêta de despeito.

— Uns pulhas, os taes meus amigos!

— O que! Acaso não estás contente com elles?

— Queres que te falle com franqueza? A ti posso dizer tudo, porque és meu amigo...

— Bem sabes que não tenho o menor interesse em revelar as confidencias que me fazes.

— Pois bem; declaro-te que estou arrependido de me haver sacrificado por um partido de verdadeiros bilhostres!

— Ai, já?!

— Já! E, com franqueza, agora não me fica bem recuar... seria um escandalo compromettedor da minha popularidade, do meu nome... Mas, acredita, que se fosse coisa que eu pudesse fazer sem dar nas vistas, fazia-o sem a mais leve hesitação.

— Não pódes... isso com certeza não pódes — tornou Jorge.

— Pois esse é todo o meu desespero! Tenho de permanecer atrelado a estes imbecis que n'uma hora de irreflexão surprehenderam a minha camaradagem, e não posso tirar d'elles a vingança que merecem!

— Mas de que te queixas? Qual é o motivo do teu desgosto?

— São uns miseraveis! Não ha quem lhes apanhe dinheiro para nada... Estou compromettido, cheio de dividas, porque tenho gasto sommas enormes, tudo para honrar o partido e sustentar o brilho do meu nome, unica coisa que ainda dá importancia a esse agrupamento de idiotas...

— És modesto, João! — interrompeu Jorge rindo.

— Que diabo! entre amigos não ha necessidade de estarmos com cerimonias. A verdade é esta...

— Tens razão. Inter amicus non est gerigonça, dizia-se no meu tempo. Continua.

— Pois imagina que eu tinha phantasiado um projecto que não passava de um plano bem combinado para arranjar uma somma de que preciso para me livrar de apuros. Bato á porta dos correligionarios mais endinheirados de Lisboa e digo-lhes que preciso de vir ao norte combinar com os nossos amigos um golpe decisivo, mas que não posso vir sem dinheiro, porque elle é, ainda hoje como sempre, a grande arma, a suprema força. Claro está, eu não pedia para mim, pedia para o serviço do partido, para o triumpho da causa... Calcula lá as difficuldades que tive de vencer para lhes arrancar os magros cobres com que fiz a viagem?

— Calculo, calculo... o dinheiro é sangue!... — disse Jorge com sarcasmo.

— É sangue... mas não teem elles obrigação de dar o sangue pela patria?

— É que elles não estão talvez bem convencidos de que a patria és tu...

— Eu synthetiso a patria! sou a sua verdadeira imagem, pelintra e cheio de necessidades como ella! Dar-me dinheiro a mim é dal-o á patria, porque ella tem por dever sustentar-me, como eu tenho por nobre missão o salval-a! Pois os grandes burros não se capacitam d'isto!

— Mas, afinal, de que tens tu vivido?

— D'elles. Hoje um, amanhã outro, todos teem ido largando os cobres, persuadidos uns de que a coisa estava para já, outros pela simples vaidade de se aproximarem de mim e de partilharem da minha gloria... Mas agora começam a retrahir-se, e sei que alguns até já teem dito que lhes sou pesado em demasia! Vê tu lá, acham pesado o mais brilhante ornamento do seu partido!

— O mundo está cheio de ingratos, meu caro!

— Agora chego ao Porto, appello para o seu esforço, reclamo dinheiro á ordem para a realisação do meu plano, e contra a minha espectativa, em vez de pôrem á minha disposição os seus cofres, torcem o nariz e perguntam-me quanto é preciso, como se isto fosse uma sacca de arroz ou um costado de bacalhau que convém regatear! É inaudito, não achas?

— Acho... acho que vieste sem dinheiro e que voltas sem elle... Meu caro João, sejamos francos, tens levado uma vida de expedientes, uma vida de exploração politica que não podia durar sempre... Tu devias pensar que não ha minas inexgotaveis e que o mais vigoroso organismo não resiste a sangrias repetidas...

— É certo, mas eu não vim ao mundo para viver de ar e de esperanças... Tenho trabalhado, tenho sacrificado a minha mocidade, a minha vida, é justo que me auxiliem aquelles que eu auxilio...

— Mas, que diabo! o teu auxilio é perfeitamente inutil, improficuo, e os factos demonstram que, em vez de prestares auxilio, o verdadeiro auxiliado és tu...

— Estás muito enganado! Eu tenho segredos que valem dinheiro... Se eu quizesse fallar, se eu quizesse reduzir a dinheiro tudo o que sei, não teria difficuldades...

Jorge sorriu.

— Isso tambem eu creio — disse elle.

— E afinal é o que eu venho a fazer, se vir que elles não correspondem á sinceridade e dedicação com que eu os tenho servido...

— Queres dizer, se não continuarem a corresponder...

— Pois está claro! Eu não tenho obrigação de respeitar mais os interesses d'elles do que os meus...

Houve um silencio de alguns minutos.

— É verdade, ainda te dás com o Avioso? — perguntou o Lazaro.

— Continuamos a ser amigos como sempre fomos.

— Esse homem é meu adversario politico, dos mais ferrenhos e intransigentes, mas eu pessoalmente sympathiso com elle.

— É um bello e generoso caracter. O peor defeito que lhe conheço é o de ser politico.

— Talvez me convenha aproximar-me d'elle...

— Quando quizeres, estou ao teu dispôr.

— Por emquanto não. Deixa ver no que isto pára... Mas, se me fôr preciso, conto comtigo, com a tua discreção, com a tua amizade...

— Já sabes que estou sempre ao teu dispôr...

— Bem; havemos de fallar.

N'estas meias palavras Jorge traduziu o pensamento intimo do aventureiro, e disse comsigo:

— Temos o chefe mudado em espião...

João Lazaro accendeu um charuto e passado um instante, expellindo uma fumaça:

— A vida está para os vadios, para os valdevinos, para os impostores... Olha aquelle rapaz por quem na dias me perguntaste no Suisso, o Eugenio de Mello, como vae casar-se com uma herdeira rica, hein!

— É verdade... Elle deu-te parte do seu projecto de casamento?

— Qual! muito meu amigo, muito intimo, mas a respeito d'esse negocio, nem pio! Os amigos, em geral, são assim... guardam o melhor para elles.

— É que não estará ainda definitivamente resolvido o enlace...

— Mas tu disseste-me que sim...

— Foi o que constou. Mas tu sabes o que são os homens de dinheiro. Primeiro que se resolvam a consentir no casamento de uma filha, tratam de indagar se o noivo tem bens que correspondam á fortuna que vae adquirir... E como tu dizes que elle não tem nada de seu...

— Não tem onde cáia morto, essa te posso eu jurar!

— Então ahi está! talvez que não sejas tu o unico a saber essa particularidade com respeito ao teu amigo, e d'ahi sobreviessem difficuldades... Apesar de que o procurador Belchior affirma, segundo ouvi, que elle possue importantes propriedades no Alemtejo.

— O procurador Belchior? Que sabe o procurador Belchior ácerca do Eugenio?

— Não sei... talvez indagasse.

— Pois se indagou e diz que elle é rico, mente! Ahi ha de haver por força grande embrulhada.

— Talvez. No emtanto, o Belchior é muito amigo d'esse tal Eugenio, que, não obstante, gasta dinheiro a rodos e sustenta bisarramente a fama de rapaz rico...

— Á custa do commendador Garcia...

— Será, não contesto. Mas para ser dinheiro fornecido por uma mulher n'essas condições, parece-me demasiado... Salvo se ella tambem é rica...

— Não é, mas o commendador dispende muito com ella.

— Ainda assim! Esse rapaz deve ter outra fonte de receita para tamanha dissipação...

— Elle tambem joga, e ás vezes a sorte favorece-o.

— O jogo constitue uma ruinosa verba de despeza e nunca uma fonte de receita, tu bem o sabes...

— Pois é verdade; mas como tem cambiantes, permitte a illusão...

— Nada! Com tão pobres elementos, ser-lhe-ia impossivel viver como vive, dispender como dispende, e, sobretudo, conquistar a amizade do procurador Belchior... Alli deve haver mais alguma coisa...

— A não ser que o procurador vá feito com elle para embarrilar o capitalista... — aventurou João Lazaro.

— Tambem póde ser. Julgo o Belchior muito capaz d'isso.

— Hei de averiguar! — tornou o João Lazaro.

— Que interesse tens tu em o saber?

— O interesse que tem todo o homem em conhecer as patifarias do seu semelhante... Imagina tu que este Eugenio de Mello ámanhã me apparece rico, senhor de grandes capitaes, personagem importante na politica e que, por uma d'estas reviravoltas tão frequentes no homem que muda de posição para melhor, acaba por se esquecer de mim, a quem hoje chama amigo e offerece ceias?...

— E se tal acontecer, que te importas tu com isso? É mais um biltre que ficas conhecendo...

— Pois sim, mas é um biltre que me offenderá impunemente, se eu não tiver o cuidado de ir archivando as notas das suas patifarias d'hoje, para lhe dar com ellas na cara ámanhã, quando elle se fizer fino...

— Eu, no teu logar, e realisada semelhante hypothese, nem mais me lembrava d'elle... O meu despreso seria castigo sufficiente á sua canalhice...

— Nada, nada, menino! — protestou João Lazaro — Quem o inimigo poupa nas mãos lhe morre...

— Elle, porém, não é teu inimigo...

— Mas póde ainda vir a sel-o... E a experiencia tem demonstrado que o homem previdente está sempre a coberto dos maiores perigos...

— Tu és extraordinario, João! Se procedes assim com os amigos, como procederás com aquelles a quem odeias?...

— Queres ver? Olha!

João Lazaro metteu a mão no bolso e tirou d'elle uma carteira que abriu.

— Tenho aqui — disse elle — uma relação dos meus inimigos — a quem hei-de um dia dar lembranças minhas... É uma espécie de lista da loteria em que só estão os nomes dos individuos premiados... Vê!

Apresentou a Jorge uma longa relação de nomes conhecidos.

— Para que é isto? — perguntou Jorge.

— Para que? São crédores meus a quem tenciono pagar um dia... Ha-de ser uma liquidação completa!

E fez um gesto de quem aperta um laço.

— Serias capaz d'isso, João? — disse Jorge n'um tom sombrio.

— Oh! os candieiros não se fizeram para outra coisa! Has-de vêr... Hei-de dar-te o espectaculo duma illuminação como nunca viste.

— Não darás...

— Porque?

— Porque se a festa se preparar, eu já sei que, para evitar o espectaculo de uma semelhante illuminação, tenho de te procurar e metter-te uma bala na cabeça antes de mais nada.

— Tu!

— Eu.

— Mas o caso não é comtigo. Tu não és meu inimigo.

— Mas posso vir a parecêl-o, e com um homem como tu, é preciso estar sempre prevenido...

João Lazaro estremeceu. Cobarde até ao extremo, teve mêdo de Jorge.

— Tu bem sabes que sou muito teu amigo e que não posso nunca duvidar da tua amizade. Alem d'isso, eu estava gracejando...

— E a gracejar confeccionaste esta lista...

— Para apavorar simplesmente. É uma fórma inoffensiva de vingança — aterrar os que são meus inimigos, os que me fizeram mal!...

Jorge sorriu com despreso:

— Mau processo é esse de apavorar os inimigos com ameaças que não tencionas realisar... — disse elle.

— Ao menos sobresalto-lhes as noites... — replicou o João Lazaro.

— Sobresaltas-lhes as noites sem reparares que compromettes os teus dias... Queres um conselho, João?

— Dize lá?...

— Rasga essa relação de nomes, que é o mais infame documento que pódes dar do teu caracter... e se a mais alguem, sem ser eu, tiveste a leviandade de a mostrar, pede-lhe que esqueça tamanha indignidade.

— Jorge, vejo que levas muito mais longe do que eu suppunha um caso de mera brincadeira da minha parte! — disse João Lazaro, verdadeiramente compromettido.

— É que a mim revoltam-me os actos de cobardia, mesmo quando não passam d'uma invenção absurda e idiota.

Fez-se um silencio constrangido entre os dois.

— A prova de que nem sequer houve ou ha da minha parte a intenção de realisar a vingança quo te disse contra os individuos cujos nomes figuram n'esta relação, está em que t'a mostro justamente no momento em que mais afastado vou ficar do campo que lhes é hostil..

Jorge encarou-o.

— Vaes então mudar de campo de acção politica? — perguntou.

— Não vou mudar, mas vou conservar-me inactivo, indifferente. Não me entendo com semelhante canalha!

— Entendamo-nos. Se conseguires que elles te deem dinheiro para a realisação do teu decantado plano, o que farás?

— Ao dinheiro? Gasto-o.

— E ao plano?

— O plano vou realisal-o para Hespanha; e é possivel que eu por lá fique e mais elle...

Jorge riu-se.

— É então ainda uma mystificação que projectas?

— Mystificação, propriamente dita, não é... Estreitarei relações com os principaes vultos da peninsula, darei importancia ao meu partido, farei que se falle n'elle e se julgue uma força muito mais consideravel do que é... Isto creio que é serviço de algum valor e que bem vale o dinheiro que me derem...

— E se não conseguires que te dêem coisa alguma?

— Terei que pedir emprestado aos adversarios — que, mais avisados, não me recusarão o que os meus correligionarios me negam...

— Sejamos francos: foi para isso que me perguntaste se eu estou ainda em boas relações com o Avioso?

— Foi.

— Mas tu sabes que o Avioso não confiará em ti, se eu não te apresentar.

— E tu apresentar-me-has. Tens duvida n'isso?

— Conforme. Se te comprometteres comigo a não abusar da boa fé do Avioso, estou ao teu dispôr. Do contrario, não.

— Até faço mais... Isto para tu veres a minha lealdade...

— Dize lá!

— Eu não me aproximo do Avioso, para não dar nas vistas nem despertar suspeitas... Faço-te as communicações a ti para tu lh'as transmittires. Já vês que assim assumo a responsabilidade inteira para comtigo. Acceitas?

— Está combinado. Acceito.

— Mas... tu comprehendes... a minha situação financeira é difficil...

— Já sei. Quanto?

— Por uma vez só?

— Não. Por mez.

— Diabo! Eu não sou um espião vulgar...

— O que é bom paga-se bem. Quanto?

— Duzentos mil reis será muito?

— Não sou eu que hei-de dizel-o...

— Pois quem?

— Tu e mais ninguem. Não se compra o homem, compra-se o serviço...

— Pois bem; que me assegurem duzentos mil reis por mez e eu prestarei serviço que valerá muito mais.

— Têl-os-has.

— Mas — observou João Lazaro com uma certa hesitação — ha ainda uma coisa...

— Dize.

— Eu estou crivado de dividas... tenho compromissos serios que não posso protelar por mais tempo.

— Bem sei, precisas de um adiantamento...

— É isso.

— Quanto calculas que te seja preciso?

— N'esta data, seiscentos mil reis não era tudo, mas era um grande auxilio.

— Não ha duvida. Eu creio que o Avioso fará o adiantamento. Mas, tu bem sabes, elle é curioso, excessivamente curioso mesmo...

— Comprehendo.

— Então, se comprehendes, não perderei tempo a explicar-te qual a maneira de obteres do Avioso a somma que desejas.

— Olha lá: uma relação completa dos que mais se salientaram nas ultimas reuniões secretas e das resoluções n'ellas tomadas bastará por emquanto?

— Basta.

— Nesse caso, ámanhã, se, como eu supponho, as minhas difficuldades não forem removidas por outra fórma, trarei tudo isso.

— Está bem.

— Visto isso, falas ainda esta noite com o Avioso?

— Fallo.

— Mas recommenda-lhe o maior segredo e discrecção. Que isto não transpire por modo algum.

— A quem mais interessa guardar segredo é a elle. Bem vês que, inutilisado o agente, de nada serviria gastar dinheiro com elle.

— É precisamente isso.

— Não ha, pois, que recommendar-lhe um segredo que a elle proprio convem guardar.

João Lazaro accendeu outro charuto.

— Só a tua grande amizade e dedicação me poderia levar a isto!

Jorge sorriu.

— A minha amizade e a sovinice sordida dos teus amigos...

— É claro. Mas se não confiasse tanto como confio em ti, eu não acceitaria uma aproximação de semelhante natureza com o Avioso.

— E eu, se não fosse tão teu amigo como sou e não sentisse um grande desejo de te auxiliar na situação difficil em que te encontras, tambem não tomaria sobre mim o encargo de resolver o Avioso a dar-te dinheiro. A proposito: sempre partes breve para Lisboa?

— Já, já, não. Demoro-me aqui ainda alguns dias. Mas quando partir para Lisboa, de lá mesmo nos entenderemos.

— Perfeitamente. Outra coisa: sempre tencionas indagar a especie de relações que existem entre Eugenio de Mello e o procurador Belchior?

— Estou resolvido a tratar d'isso.

— Não me disseste que esse Eugenio tem uns amores inconfessaveis, occulta fonte de receita que equilibra o largo orçamento em que estão representados todos os vicios com as respectivas verbas de despeza?

— Digo e sustento. E a ti, como amigo, direi mais: essa loura, ciumenta como um demonio e apaixonada como uma gata, já sabe que Eugenio projecta casar-se.

— Sabe? Quem lh'o disse?

— Eu. Tu não me pediste segredo.

— Nem me interessa que ella o não saiba.

— Pois bem; essa loura repudiou-me quando eu me propuz, e tomou amores com Eugenio de Mello. A hora da minha vingança havia de chegar, e chegou. Accendi-lhe um inferno de ciumes no coração, e a esta hora está ella esperando impaciente que eu lhe leve as minhas informações e as minhas ordens.

— Eu já sabia isso.

João Lazaro encarou o amigo com espanto.

— Já?! — perguntou.

— Já.

— Como o soubeste?

— Eu sei tudo.

— Não suppuz que te interessassem os meus actos a ponto de me mandares espionar.

— Não fui eu. Bem sabes que alguem mais do que eu se interessa em saber a tua conducta.

— Ah! sim... — fez João Lazaro reflectindo. — Mas esta visita que eu fiz não tinha caracter politico — e não acho correcto que me espionem e me sigam n'uma aventura galante com o mesmo encarniçamento com que me perseguem quando eu conspiro...

— Vamos a saber — disse Jorge. — Tens interesse em que Eugenio de Mello não realise o casamento com a filha do capitalista?

João Lazaro fez uma carêta.

— Não me importo absolutamente nada com isso. O meu empenho é só castigál-o pela sua falta de franqueza e lealdade para comigo. Devia ter-me dito que ia casar, visto que se affirma meu amigo... Isto pelo que lhe diz respeito a elle. Agora pelo que respeita a Leonor, vingo-me e preparo o terreno para occupar a praça, que vae ficar abandonada.

— Se Eugenio casar...

— Quer case, quer não, Leonor não lhe perdoará. Convencida do que o amante quiz trahil-a casando com outra, cortará immediatamente as suas relações com elle, e, para se vingar, tratará de o substituir pelo maior amigo do perfido. Ora ella sabe que o maior amigo de Eugenio sou eu...

— E portanto, és tu o que reune as maiores probabilidades de vir a ser admittido ao logar vago...

— Justo!

— É curiosa essa aventura!

— É curiosa, mas muito vulgar entre amigos.

— Será, mas entendo que deves proceder com cautela...

— Porque?

— Porque não te fica bem que se torne publico o teu papel nada invejavel n'essa intriga. Queres fazer uma coisa?

— Dize.

— Não envolvas essa endiabrada lourinha em qualquer aventura sem me consultares primeiro. Valeu?

— Está dito. Mas não te esqueças de fallar ao Avioso. Estou immensamente precisado de dinheiro...

— Não me esqueço.

O aventureiro estendeu a mão a Jorge, despedindo-se.

— Adeus — disse elle — Amanhã procuro-te.

— Pois sim. Adeus.

Quando João Lazaro sahiu, Jorge, que o acompanhou com a vista até elle transpôr a porta da sala, murmurou:

— Sempre o mesmo biltre! Sempre o mesmo miseravel!