Os Filhos do Padre Anselmo/XV

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No escriptorio de Custodio de Jesus, discutiam animadamente o dono da casa e o seu amigo e confidente, o procurador Belchior.

— A coisa é esta: — dizia o procurador — com pannos quentes não se faz nada.

— Ai, já? Você já é da minha opinião? — replicou o Custodio, triumphante. — Pois, meu amigo, se eu, contra o meu genio, tenho usado de pannos quentes, a culpa foi toda sua... Quando eu queria usar da minha auctoridade de pae e levar a rapariga á força á igreja, você não deixou... Segui o seu parecer, tentei levar as coisas pela brandura, e agora é tarde para tomar outro caminho...

— Qual outro caminho?

— O caminho d'onde eu nunca devêra ter sahido... o caminho da auctoridade e do rigor paterno... Mas agora, depois de eu ter descido até ao ponto de chorar diante da rapariga e de a deixar levantar a crista, a julgar que estou dependente da sua protecção, como é que eu hei-de chegar ao pé d'ella e dar-lhe dois safanões e quatro berros que a façam entrar na ordem?

— Mas não é preciso nada d'isso, homem!

— Não é preciso? Pois você diz que com pannos quentes não se arranja nada e acha que não é preciso empregar a força?

— Acho que se póde empregar a força, sem que você passe por ser um pae cruel...

— Pois está claro que eu tambem não vou empregar a violencia diante de gente. O que se passa em minha casa escusa de se saber no meio da rua. Mas não posso... a rapariga perdeu-me o respeito, agora... boas noites!

— Homem, deixe-se de tolices... Ha uma força que nós podemos empregar muito bem e a que a pequena não terá remedio senão obedecer...

— Mas que força é essa então?

— É a força das circumstancias, homem! Quem é que não se dobra á força das circumstancias?

— Ó demonio, mas essa força já eu empreguei; já disse á pequena que as nossas circumstancias não podiam ser mais desgraçadas e nem assim consegui convencêl-a.

— Pois bem; mudemos de systema — disse o Belchior, piscando um olho.

— Mudemos do systema como? — perguntou o Custodio, sem comprehender.

— Se ella não quer largar o tal namorico, obriga-se o namorico a largal-a a ella...

— Quer você dizer que lhe mande eu dar uma carga de pau, qualquer noite quando elle cá vier á porta... Mas isso o que faz? A rapariga é capaz de tomar o freio nos dentes e então é que não haverá forças humanas que a obriguem a acceitar este casamento...

— Ninguem falla em empregar esses meios violentos...

— Não?

— Pois com certeza. Isso seria uma tolice sem resultado pratico. Aqui o caso é outro...

— Mas então diga lá.

O Belchior fitou demoradamente o Custodio e disse:

— A questão é você querer...

— Pois eu quero! Tomára eu... Diga lá, homem!

— O processo é um bocado exquisito, mas dá resultado...

— Se dá resultado, vamos a elle! — concordou o Custodio — Então como é isso?

— É d'uma maneira muito simples; rapta-se a pequena...

— Hein! O que? Rapta-se?

— É claro! Prepara-se um rapto, faz-se escandalo e conduzem-se as coisas de modo que a rapariga não tenha remedio senão casar com o Eugenio...

— Mas... — obtemperou o Custodio indeciso — torne a dizer, que eu não percebi bem?...

— Isto não tem que perceber: combina-se um passeio ao campo... Vae você com a pequena, vou eu com a minha mulher e minha cunhada... Andamos por lá, petiscamos, e a paginas tantas minha cunhada afasta-se para mais longe com a Beatriz, a admirar a paisagem...

— Sim... E depois?

— Depois, o Eugenio, que está emboscado com dois amigos, salta de lá, agarra na Beatriz, mette-se n'uma carruagem e parte com ella a todo o galope. Minha cunhada grita, tem um desmaio, nós acudimos, mas já é tarde — não lhe podemos valer... O resto segue-se depois naturalmente...

— O resto... Mas qual resto?

— Ora qual resto! O casamento. Pois que quer você que se siga senão o casamento depois d'isto? Beatriz, depois de raptada, não terá remedio senão acceitar por marido o homem que a raptou...

— Não sei... Ella é muito capaz de ainda assim recusar...

— Qual recusa! Quando ella reconhecer a impossibilidade de casar com esse pintalegrete que lhe endoideceu a cabeça ou com outro qualquer que não seja o Eugenio, não terá remedio senão resolver-se...

— E você sabe lá se o rapaz, ainda mesmo assim desiste?

— Pois desiste, porque a gente faz escandalo... E depois d'ella desacreditada, só se elle não tiver vergonha.

— Desacreditada! Então a rapariga ha de ficar desacreditada? Isso não... isso é que eu não consinto! Não é por mais nada... Mas emfim... ella usa o meu nome, passa por minha filha, e eu não estou para me sujeitar e andar fallado nas bôccas do mundo! — recusou honestamente o marido de D. Carlota.

— Que diabo! Você não sabe que tudo isto é uma planta-fórma para obrigar a pequena a casar? Que diabo tem que a rapariga seja raptada, uma vez que o raptor a receba por mulher?

O Custodio ficou silencioso e meditativo por alguns instantes como que ruminando o plano do seu amigo Belchior.

— A coisa — disse elle por fim — talvez desse bom resultado... Mas isso era um escandalo de seiscentos diabos!

— Pois era... era um escandalo bastante grande, e isso mesmo era o que convinha...

— O que! Convinha o escandalo — interrogou o Custodio escandalisado — Então você quer que eu, como pae — porque afinal ella não tem outro — goste e ver uma filha minha ou que passa por isso mettida em escandalos?

— Você não comprehende, Custodio, você não comprehende... Isto era escandalo e não era escandalo... E como naturalmente fazia barulho, a cidade alvorotava-se com a noticia do rapto e isso era justamente o que convinha...

— Mas convinha porque? — insistiu o Custodio.

— Convinha por todos os motivos. Em primeiro logar, Beatriz, depois d'este escandalo, comprehenderia que não podia casar com outro homem, senão com o Eugenio... Em segundo logar, ainda quando ella teimasse em alimentar no coração essa paixoneta pelo tal estudantelho que a namora, não teria remedio senão curar-se, porque o rapaz, depois d'ella desacreditada, não a queria e não lhe tornava a apparecer... Depois da praça abandonada, que remedio terá a pequena senão render-se?

— Sim... e demos o caso que esse tal Eugenio, emfim... como é rapaz e estroina, depois de a ter raptado, não se resolve a tomal-a por mulher, senão debaixo de certas condições?

— Quaes condições?

— Por exemplo... exigir que eu augmente o dote á rapariga e querer que se façam escripturas, de modo que o que é d'elle fique perfeitamente a coberto...

— O Eugenio não é capaz d'isso! — protestou o Belchior.

— Eu sei lá! A gente vê caras e não vê corações... Depois da rapariga perdida, eu não terei remedio senão sujeitar-me ás condições que elle impuzer... Nada, isso não é bom plano.

— Pois então, meu amigo, o melhor é desistirmos do negocio, porque não vejo outro meio...

— Desistir tambem não... Talvez que, se eu a mettesse n'um convento com ordem de a tratarem com rigor e de não a deixarem fallar nem escrever ao namoro, isso desse bom resultado.

— Não dá resultado nenhum. Que diabo! Você é um homem desconfiado com quem se não póde tratar nada a sério...

— O mal dos meus burricos é que me tem feito alveitar — volveu o Custodio coçando a suissa — Por eu ter confiado demais nos amigos é que aquelle ladrão do padre Anselmo me roubou a fortuna e a mulher... Depois é que eu vim a saber tudo... Mas era tarde, já lhe não podia dar remedio...

— Pois sim, mas agora não se trata de lidar com gente de sotaina... Você conhece-me ha muito tempo e sabe que tenho sempre zelado os seus interesses como se fossem meus...

— Bem sei isso, mas o caso não é propriamente com você, Belchior. Se fosse você que tivesse de casar, eu acceitava o plano com os olhos fechados, porque bem sei que você não era homem capaz de faltar ao que promettesse... Mas com esse rapaz o caso é outro...

— Não é outro nada... — replicou o Belchior. — Se elle se comprometter comigo a casar com a pequena nas mesma condições em que está tratado, cumpre com toda a certeza.

— E se não cumprir?

— Isso não póde ser... Mas se elle cahisse na asneira de faltar ao contracto, eu cahia-lhe em cima com uma querella, que elle havia de ir por uma barra fóra e nem tudo quanto tem lhe havia de chegar para a justiça...

— E o que lucrava eu com isso? — perguntou o Custodio com um sorriso velhaco.

— O que lucrava?

— Sim, o que lucrava eu, se a justiça lhe apanhasse todos os haveres pela maroteira feita a mim?

— Homem, ninguem quer metter-se em assados... Logo que elle visse que o caso era sério, chegava-se á razão... Você não comprehende?

— Comprehendo... isso comprehendo eu... — mascou o Custodio indeciso.

— Então, se comprehende, que mais quer?

— E você compromette-se a fazel-o cumprir?

— Está claro que comprometto! Eu fallo com elle, percebe? Fallo com elle e proponho-lhe o expediente do rapto como coisa minha... Não lhe digo que você está feito comnosco, porque, emfim, você é pae e é preciso salvar as apparencias...

— Sim, isso é bom... Mesmo para elle me não perder o respeito.

— Justissimo! É isso mesmo! — apoiou o procurador. — Offereço-me a proporcionar-lhe ensejo para a obra, mas imponho-lhe a condição de que ha de casar sem mais preambulos e sem mais contratos, logo que seja encontrado com ella.

— Justo! — disse o Custodio.

— Porque, se assim não fizer, compromette-me e então será comigo que elle terá de se haver... Está bem assim?

— Está optimo! — apoiou o Custodio radiante.

— E o dito dito — tornou o Belchior — eu levo a percentagem combinada...

— Isso está sabido. Arranje você as coisas de modo que o casamento se faça nas condições combinadas e o dinheiro passa-lhe logo para as unhas.